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Fides et Ratio: notas para uma crítica ao discurso religioso (página 2)

Sylvio Fausto Gil Filho

Na primeira está representado todo elo com o passado que autoriza de forma arquetípica o discurso presente e nos faz reconhecer a validade da ação performática contemporânea.

  • A segunda, de outro modo, prognostica a recomposição dos significados dos enunciados passados em uma lógica plausível para o futuro.

  • Muito do que possamos compreender das diversas reformulações na constituição do discurso depara-se com a reafirmação, qualitativamente superior, de verdades outrora inculcadas que assumem nova indumentária e pressupõem um novo habitus. Sendo a tradição o princípio revelador da idéia de continuidade, o apego a esta demonstra sobremaneira a tentativa de manter o fio condutor que mantém a instituição Igreja Católica Romana. Até onde podemos analisar, o discurso devidamente autorizado se faz novo, por quanto tradicional ele o é.

    Contudo, por que Fides et Ratio? Porque se a Rerum Novarum antecipa uma doutrina social da Igreja, sem dúvida a Mater et Magistra e a Pacem Terris reafirmam este aspecto diante de um mundo com o equilíbrio abalado no período pós-guerras. Interessante pesar o papel de Fides et Ratio no contexto do final do século XX. Fides et Ratio éum discurso elaborado muito mais para se contrapor à fragmentação do mundo das idéias do que pela multiplicidade da prática social dita pós-moderna. Trata-se de uma mensagem destinada ao mundo da filosofia e da teologia na tentativa de resguardar a perenidade da Igreja como mantenedora da "única verdade" diante da pluralidade do pensamento científico e especulativo.

    Orlandi, na tentativa de definir o discurso religioso, introduz a noção de reversibilidade colocando-a como condição do discurso, ou seja, sem esta dinâmica na relação de interlocução o discurso não teria continuidade, não se realizaria na plenitude. Adjacente à reversibilidade está o critério de polissemia, pois em todo discurso o sentido escapa ao seu locutor. Sob este aspecto, o discurso autoritário tende a reter a polissemia e almejar a monossemia. Assim como o discurso autoritário, o discurso religioso assumiria uma ilusão de reversibilidade que lhe conotaria a tendência para a monossemia[4]

    Esta tipologia no que se refere ao discurso religioso parte de Althusser, que configura como exemplo a ideologia religiosa cristã[5]Nessa reflexão ele afirma que a ideologia religiosa tende sempre a transformar os indivíduos em sujeitos submissos à condição de escolha passiva em relação ao Sujeito principal ao qual todo enunciado se refere. Este outro Sujeito Único, Absoluto, ou seja, Deus. Assim, a "interpelação dos indivíduos como sujeitos supõe a existência de um outro Sujeito, Único, em Nome do qual a ideologia religiosa interpela todos os indivíduos como sujeitos."[6] Neste contexto, caracteriza-se o discurso religioso como aquele em que fala a voz de Deus e qualquer representante Seu é a voz da Divindade.

    Todavia, seremos seletivos em relação a esta tipologia esboçada. A primeira condição é a multiplicidade das estruturas religiosas dificulta padronizar uma tipologia constante para todo e qualquer discurso por estas instituições elaborado.

    Outrossim, podemos considerar que a noção de ilusão de reversibilidade que aproxima o discurso religioso do discurso autoritário é precipitada. O reconhecimento do Sujeito da Divindade como enunciador e dos sujeitos como enunciatários interpelados não reduz a possibilidade de mudança de posição no plano discursivo. Atinentes a esta possibilidade reconhecemos dois subsistemas dialógicos[7]no que tange ao discurso religioso:

    • O primeiro refere-se ao discurso do enunciador devidamente consagrado em relação ao discurso feito e sacralizado em texto que se reporta ao plano da Divindade;

    • O segundo refere-se ao discurso do enunciador institucionalmente autorizado em relação aos enunciatários no plano temporal.

    A intermediação destes dois subsistemas dialógicos, ao nosso ver, possibilita a aproximação da característica que identifica essencialmente o discurso religioso, ou seja, o seu caráter sagrado.

    O problema está justamente na redução do discurso religioso a simples ideologia, o que poderíamos cooptar conceitos do discurso político e relegar a um plano secundário o caráter sacro do mesmo, este último simbólico e signatário do termo de distinção do profano. Além disso a temporalidade do discurso religioso difere da temporalidade do discurso político de modo significativo. Neste sentido, podemos caracterizar o discurso religioso como discurso daquele que fala do sagrado. Neste sentido enfatizamos a presença da ruptura qualitativa do sagrado na formação discursiva que em última instância aponta a situação dos sujeitos do discurso.

    2 – O DISCURSO DA IGREJA: TEXTO E CONTEXTO

    Tanto no Oriente como no Ocidente, é possível entrever um caminho que, ao longo dos séculos, levou a humanidade a encontrar-se progressivamente com a verdade e a confrontar-se com ela. Aliás, basta um simples olhar pela história antiga para ver com toda a clareza como surgiram simultaneamente, em diversas partes da terra animadas por culturas diferentes, as questões fundamentais que caracterizam o percurso da existência humana: Quem sou eu? Donde venho e para onde vou? Porque existe o mal? O que é que existirá depois desta vida? Estas perguntas encontramse nos escritos sagrados de Israel, mas aparecem também nos Vedas e no Avestá; achamo-las tanto nos escritos de Confúcio e Lao-Tse, como na pregação de Tirtankara e de Buda (... )[8].

    Havíamos comentado o cerne da questão que envolve o presente texto, ou seja, o discurso da verdade para a verdade; a primeira, consagrada única em conceito, intrínseca à realidade humana absoluta em essência; a segunda refere-se ao caminho que os sujeitos constroem ligados ao discurso fundador já dado e permanente. A premissa do enunciado funda-se no conceito de que fé e razão procuram ou deveriam procurar essa Única e mesma verdade.

    A Igreja não é alheia, nem pode sê-lo, a este caminho de pesquisa. Desde que recebeu, no Mistério Pascal, o dom da verdade última sobre a vida do homem, ela fez-se peregrina pelas estradas do mundo, para anunciar que Jesus Cristo é « o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14, 6). De entre os vários serviços que ela deve oferecer à humanidade, há um cuja responsabilidade lhe cabe de modo absolutamente peculiar: é a diaconia da verdade[9]Na base de toda a reflexão feita pela Igreja, está a consciência de ser depositária duma mensagem, que tem a sua origem no próprio Deus (cf. 2 Cor 4, 1-2)[10].

    Como afirma Bourdieu, "a especificidade do discurso de autoridade reside no fato de que não basta que ele seja compreendido (...), é preciso que ele seja reconhecido enquanto tal para que possa exercer efeito próprio." O reconhecimento se concretiza na medida da vidência em certas condições que o legitimam[11]Ao reapresentar a evidencia de que a Igreja é depositária de uma mensagem que provém da própria Divindade ela legitima o seu discurso produzindo as condições necessárias para emitir juízos sobre o pensamento especulativo, científico ou mesmo teológico que se relativiza diante deste contexto.

    A verdade da revelação cristã, que se encontra em Jesus de Nazaré, permite a quem quer que seja perceber o « mistério » da própria vida. Enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo em que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a se abrir à transcendência. Aqui, a relação entre liberdade e verdade atinge o seu máximo grau, podendo-se compreender plenamente esta palavra do Senhor: « Conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á » (Jo 8, 32).

    A alavanca pela qual o discurso institucional se realiza encontra no pensamento dogmático a própria eficácia. Se o homem pode atingir a verdadeira orientação dada pela revelação cristã, escapa o acesso do que legitima esta revelação. Ao afirmar o mistério da revelação a Igreja realiza a ruptura pela qual se reconhece o sagrado, sendo este legível enquanto fenômeno, todavia dogmático enquanto realidade essencial. É interessante observar a eficácia simbólica das palavras, pois, embora a revelação não encontre realização nela própria, ela se torna reconhecível no cotidiano e no plano da história.

    As radicalizações mais influentes são bem conhecidas e visíveis, sobretudo na história do Ocidente. Não é exagerado afirmar que boa parte do pensamento filosófico moderno se desenvolveu num progressivo afastamento da revelação cristã até chegar explicitamente à contraposição. No século passado, este movimento tocou o seu apogeu. Alguns representantes do idealismo procuraram, de diversos modos, transformar a fé e os seus conteúdos, inclusive o mistério da morte e ressurreição de Jesus Cristo, em estruturas dialécticas racionalmente compreensíveis. Mas a esta concepção, opuseram-se diversas formas de humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, que apontaram a fé como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão. Não tiveram medo de se apresentar como novas religiões, dando base a projectos que desembocaram, no plano político e social, em sistemas totalitários traumáticos para a humanidade[12]

    A crítica aos desvios da filosofia remete à crise da eficácia simbólica do discurso religioso contemporâneo. É sintomático que embora a busca da verdade seja reconhecida ela escapa ao controle dogmático na medida em que possibilita o não-reconhecimento da autoridade do discurso fundador.

    Cabe ressaltar o caráter do que se denomina verdade religiosa, pois esta pode assumir várias características em diferentes tradições religiosas. PANIKKAR apud MAY[13]reconhece a questão da pluralidade religiosa como impactante do pensamento Téo

    lógico e especulativo contemporâneo. Seis grupos tipológicos são possíveis nesta discussão:

    (i) A perspectiva dos reclames falsos: toda religião é falsa pois sua base de legitimação é falsa. Não existe um destino último ou realidade.

    (ii) Subjetivismo: toda religião é verdadeira na perspectiva de que é a verdade para os seus adeptos.

    (iii) Exclusivismo: apenas uma religião é verdadeira. As outras são apenas, no melhor das hipóteses, aproximações.

    (iv) Inclusivismo (tradição primordial): todas as religiões participam de uma mesma essência e em última análise suas aproximações recaem em uma mesma verdade.

    (v) Processo Histórico e Relativismo Histórico: as religiões são meros produtos da história, com semelhanças e diferenças de acordo com os contextos históricos que as produzem.

    (vi) Radical pluralismo: a verdade é plural, e como tal as religiões apresentam perspectivas únicas e circunstanciais em múltiplas aproximações.

    Podemos considerar que o presente discurso da Igreja tende ao exclusivismo, pois, embora se reconheça a busca da verdade, em outras tradições e opções do pensamento especulativo reserva-se a tese do fideicomisso da única verdade cristã.

    Não houve uma solução, mesmo teológica, para a questão do pluralismo religioso. Sob este ponto de vista não há no discurso possibilidade de inclusivismo pois a base de construção ainda é dogmática e hierarquizada.

    E, todavia, vimos, na história, os extravios e erros em que várias vezes incorreu o pensamento filosófico, sobretudo moderno. Não é função nem competência do Magistério intervir para colmar as lacunas dum discurso filosófico carente. Mas já é sua obrigação reagir, de forma clara e vigorosa, quando teses filosóficas discutíveis ameaçam a recta compreensão do dado revelado e quando se difundem teorias falsas e sectárias que semeiam erros graves, perturbando a simplicidade e a pureza da fé do povo de Deus[14]

    Na crítica ao pensamento científico e filosófico é sintomática a presença de várias questões mal-resolvidas no último século. A fragmentação do conhecimento e da ação recompõe a possibilidade do contradiscurso. A diversificação do discurso religioso e filosófico autônomo denota a redefinição do contrato de delegação dado ao clero e aos teólogos. Esta crise de autoridade discursiva solapa a salvaguarda da Igreja como depositária da Verdade Última. Há uma relativização do reconhecimento, pelos enunciatários, do ato que autoriza o enunciador a proferir o discurso. No dizer de Bordieu "a eficácia simbólica das palavras se exerce apenas na medida em que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como podendo exercê-la de direito." Ainda mais, "tal eficácia repousa completamente na crença que constitui o fundamento do ministério, esta ficção social, e que é muito mais profunda do que as crenças e os ministérios professados e garantidos pelo ministério."[15]. O autor repassa a crise religiosa além do universo de representações e a coloca no plano das relações sociais.

    Sob o ponto de vista social o rito em muito investiu de sentido o dizer institucional, pois o mesmo consagra alguns em relação a outros para a experiência do sagrado ou a autorizada experiência do sagrado. A dessacralização do mundo promoveu a ruptura entre o sistema ritual e o sistema semântico, esvaziando o sentido e recolocando o discurso religioso fora de contexto.

    Como cada rito visa consagrar e legitimar, ou seja, permitir a ação reconhecida no mundo social, na medida em que o rito de instituição é relativizado coloca-se em dubiedade a ação performática. Tal relatividade está presente na pluralidade, na multiplicidade dos sentidos, onde o conteúdo de que se fala não encontra referências na prática social.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    No tocante aos limites do presente artigo, que centrou a argumentação em torno de alguns aspectos pinçados da Carta Encíclica, podemos considerar o seguinte:

    • A dialética entre o único e o plural como dinâmica na articulação do discurso.

    • A tipologia do discurso religioso como sacro ou em direção ao sagrado.

    • A verificação de dois subsistemas dialógicos entre o Sujeito ideal, Divindade/ Instituição Igreja e Instituição Igreja/ enunciatários, representando um sistema dialógico com três categorias de enunciados hierarquizados, dependendo da posição dos sujeitos.

    • O exclusivismo como referência dialogal em situação de crise diante do contexto hodierno.

     

     

    Autor:

    Prof. Sylvio Fausto Gil Filho

    faustogil[arroba]ufpr.br

    Doutor em História UFPR Mestre em Geografia UNESP Professor do Departamento de Geografia UFPR


    [1] Entendido como relação de um discurso com outros discursos. No interdiscurso procura-se compreender a interação entre formações discursivas diferentes.

    [2] MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas SP: PONTES ED UNICAMP, 1997.

    [3] FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

    [4] ORLANDI, E. P. A Linguagem e seu Funcionamento, Campinas SP: Pontes, 1996.

    [5] ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado, Rio de Janeiro: Graal, 1985.

    [6] Ibid p. 11.

    [7] Dialógico, no sentido amplo (iniciado por Bakhtin), é a relação que qualquer enunciado sobre um objeto mantém com enunciados anteriores produzidos pelo mesmo objeto.

    [8] JOÃO PAULO II, Fides et Ratio, Vaticano: Vaticano Ed., 1998. Introdução, 01.

    [9] Ibid. Introdução, 02.

    [10] Ibid. I,07.

    [11] BOURDIEU, P.. A Economia das Trocas Lingüísticas, São Paulo: EDUSP, 1996. p. 95.

    [12] op. cit. II, 28.

    [13] MAY, D. J. The Bahá'í Principle of Religious Unity: A Dynamic Perspectivism in MCLEAN, J. (org.) Revisioning The Sacred - New Perpectives on a Bahá'í Theology, Loa Angeles: Kalimat, 1997. p. 17.

    [14] op. cit. V, 49.

    [15] BOURDIEU, P.. A Economia das Trocas Lingüísticas, São Paulo: EDUSP, 1996.p. 95.



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