Histórias esquecidas - um estudo sobre as obras: Memórias do Cárcere e Cemitério dos Vivos



"Como é que eu, em vinte e quatro horas,deixava de ser um funcionário do Estado,com ficha na sociedade e lugar no orçamento,para ser um mendigo sem eira nem beira,atirado para ali como um desclassificado?"

(Lima Barreto, in Cemitério dos Vivos)

 

Esse texto procura descrever e comparar as visões de mundo dos narradores das obras Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos e Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto. Os narradores dessas obras apresentam as experiências de enclausuramento forçado vividas por seus respectivos autores, embora sejam obras de ficção.

Graciliano Ramos foi preso político durante a ditadura de Getúlio Vargas sem nunca saber a real razão de ter sido mandado para a cadeia, pois não houve contra ele nenhum processo. Ele permaneceu preso por onze meses: esteve num navio, passou por diversas delegacias, ficou um tempo no Pavilhão dos Primários, foi mandado para a Colônia Correcional, e por último ficou na Casa de Correção. Todas essas mudanças foram feitas sem nenhuma justificativa:

"Via-me submetido a cegos caprichos de inimigos ferozes, irresponsáveis, causadores de males inúteis. Essas trapalhadas obedeciam certamente a um plano; em vão esforçava-me por entendê-las e propendia a julgá-las estúpidas. Sem dúvida tencionavam provar-nos que eram fortes, podiam fazer conosco um jogo de gato com rato" (vol I, p. 343) (1)

Graciliano não era comunista no momento em que foi preso, ele só entrou para o PCB em 1945, nove anos após ter sido libertado. É provável que ele tenha sido preso graças ao exercício de seu mandato de prefeito de Palmeira dos Índios, no qual lutou contra o coronelismo que reinava na região. Foi um grande político, mas em favor do povo, diferente dos anteriores e provavelmente dos que o sucederam, ou seja, ele se afastou do comportamento mais comum: de exploração e corrupção.

Desse fato se pode notar que Graciliano Ramos, assim como Lima Barreto, está totalmente imerso na história daqueles que foram na contra-mão da ordem vigente, ou seja, contam uma história diferente da oficial, a que é contada por historiadores dos historicismos [2] , ou seja, os historiadores que se identificam com o dominador.

Essa é uma das semelhanças fundamentais entre os narradores em questão, ou seja, eles foram excluídos do convívio social e utilizam a literatura para contarem suas experiências, pois a arte é um lugar especial para que essas histórias cheguem ao conhecimento das pessoas.

Lima Barreto foi mandado para o hospício devido ao seu vício: o álcool. Ele foi internado duas vezes, a primeira por ordem policial e a segunda por decisão de seu irmão. Essa relação entre polícia e manicômio é estranhamente íntima.

"Logo após o café, fui chamado à presença de um jovem médico, muito simpático, pouco certo de seus podêres para curar-me. Fêz-me umas perguntas, e senti mesmo que seu desejo era mandar-me embora. Disse-me mais ou menos isso, ou melhor, as suas palavras foram estas, depois de dizer o que eu tinha tido:

      – Não há dúvida... Mas o senhor ou você – não me recordo – veio pela polícia, tem que se demorar um pouco".(p. 178)

Esse episódio demonstra que o modo como a autoridade define as normas numa cadeia é muito próxima ao modo como são definidas as normas num hospício, embora suas justificativas sejam bastante distintas: uma cadeia recebe criminosos, pessoas que devem pagar por erros cometidos; um hospício recebe pessoas que não estão em equilíbrio normal e devem ser afastadas do convívio social. Ambos os ambientes têm uma espécie de busca da redenção, de possibilitar a reabilitação dos indivíduos para viver em sociedade.

A leitura das obras escolhidas para esse trabalho faz notar o quanto decidir quem merece ser preso é, muitas vezes, um ato arbitrário e injusto e o quanto são perigosas as classificações de uma pessoa: seja como criminosa, seja como louca. Isso sem entrar no mérito das definições de crime e loucura, o que seria tema suficiente para inúmeras páginas; cabe a esse texto notar apenas as falhas dessas classificações.

O presídio e o hospício são armas nas mãos dos que estão no poder, dos que podem decidir quem é, ou não, apto a viver em sociedade. Têm função muito útil para a realização do "progresso" da humanidade que mantém a ordem de dominação já presente nas sociedades de classes. O filósofo Walter Benjamin não acredita em uma evolução natural do mundo, mas sim que há uma constante luta entre opressores e oprimidos, na qual os opressores saem campeões na grande maioria das vezes e a ordem de classes se mantém. Nesse sentido, as instituições em questão são interessantes para afastar aqueles que não se adaptam à ordem vigente, portanto as obras referidas nesse trabalho têm, sem dúvida, um tom de protesto e de denúncia. Pois a história segundo a teoria de Benjamin pode ser vista de duas formas:

"com implicações políticas evidentes para o presente: a confortável doutrina "progressista", para a qual o progresso histórico, a evolução das sociedades no sentido de mais democracia, liberdade e paz, é a norma, e aquela que ele afirma ser seu desejo, situada do ponto de vista da tradição dos oprimidos, para a qual a norma, a regra da história é, ao contrário, a opressão, a barbárie, a violência dos vencedores". (p. 83) (3)


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