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António Sérgio Pedagogo e Político Sérgio (página 4)

Carlos Alberto de Magalhães Gomes Mota
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6

3. 12. Polémicas de António Sérgio.

Podemos considerar que nem todas as polémicas sergianas têm interesse directo para um trabalho de tipo Pedagógico. É verdade, curiosamente, que uma das polémicas com maior interesse no campo Pedagógico foi a que Sérgio manteve, na 2ª Série da Revista Águia com Teixeira de Pascoaes, não tanto pelos textos de Pascoaes, mas fundamentalmente pelos de Sérgio. No entanto, as suas principais polémicas são importantes no domínio da Pedagogia, pois demonstram o tipo de Homem que o nosso autor pretendia formar ou o tipo de influência que queria realizar.

1) Polémica António Sérgio-Jaime Cortesão sobre o conceito de parasitismo (1913).

António Sérgio considerou que "o dado inicial e a causa do aparecimento do «espírito de parasita» foi o espírito conquistador, (...)" 151.

O Português, habituou-se a ter escravos, a nada fazer, a praticar uma vida de transporte e negócios, o que viria a reflectir-se no futuro da Nação: Portugal perdeu o sentido de fabricar, de trabalhar. Jaime Cortesão não concordava com isto e respondeu com o artigo "O parasitismo e o anti-historismo". Não podemos, pensa Jaime Cortesão, cair num evidente reducionismo histórico. Para Jaime Cortesão a História e o seu conhecimento são fundamentais;considera que "as vantagens do historismo são as de procurarmos as virtudes do génio nacional para as adaptarmos à luta moderna" 152.

Para António Sérgio o parasitismo foi uma das principais causas da decadência, que associa a uma educação "de Expansão" e ao facto de não se ter incentivado a actividade produtora, o que completa o quadro da nossa desgraça nacional.

Para Sérgio, os portugueses possuem qualidades e virtudes como os ingleses ou holandeses, mas os condicionalismos históricos, e a apatia causaram o nosso atraso relativamente a outros países europeus, que também praticaram a "expansão pelas armas", não tendo, no entanto, descurado o desenvolvimento pelo trabalho, nas suas «metrópoles».

2) Polémica com Teixeira de Pascoaes sobre «Saudade» e «Saudosismo»(1913/14).

A Polémica entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes teve grande repercussão no pensamento pedagógico português. Os dois autores, preocupados com questões ético-políticas, não tendo sido Pedagogos, no sentido tradicional do termo – isto é – escolar, tiveram grande influência no pensamento de inúmeros leitores, muitos dos quais com responsabilidades educativas. A polémica a respeito da Saudade e do Saudosismo entre António Sérgio e Teixeira de Pascoaes, ficou registada na 2ª Série da Revista Águia. A polémica passa pelos textos aonde foi escrita, embora os transcenda largamente, porque os dois autores são muito maiores que ela mesma. Mas, como dizia Sérgio, "deixando de lado os devaneios (...)" veja-se o que foi escrito.

Na "Epístola aos Saudosistas", refere Sérgio ser necessário esclarecer:

- o que é a saudade;

- o que representou nas nossas letras;

- o que poderia representar hoje.

Pascoaes sustenta que saudade é "a velha lembrança gerando um novo desejo".

Ora, segundo esta definição, um cão espancado por alguém, ao rever essa pessoa, passados dias, tem um "desejo de sentir a carne do agressor comprimida entre os seus caninos". Que se passava ? Para Sérgio fora a saudade, na definição proposta por Pascoaes.

O Saudosismo é descrito como uma ideia artificial e convencional da literatura. Acrescenta: "Vocês teimam em ressuscitar o que não tem hoje condições de vida, obcecados pela ideia absurda de que cada maneira de certa época é uma maneira absoluta". E ainda: "Para vocês (os saudosistas) (...) pacatamente instalados na pátria amada (...) vocês, proprietários uns, professores ou filhos – famílias outros, vivendo todos uma vida sem grandes lutas nem paixões de que raio têm saudades vocês todos, santo Deus. "

Para Sérgio, "ao contrário do que pretendem os saudosistas, a afirmação característica e fundamental do espírito contemporâneo é o mobilismo, o avanço, a tendência para diante (...). Ora, a saudade é o contrário de tudo isso: imobilismo, inércia, contemplação do passado, amor de cristalizar ou mumificar o que já foi". E, ainda Sérgio: "Quem é que vive principalmente na saudade? Os velhos e os desgraçados a quem a morte levou uma pessoa muito querida. Ora, em ambos os casos se nota, acompanhando sempre a saudade, o horror do novo, o ódio ao movimento, um protesto contra a lei da mobilidade (...)".

A mãe que vive na saudade do filho morto, quantas vezes lhe ouvimos nós, mostrando-nos um quarto ou um gabinete – "está tudo exactamente como ele deixou. Não consenti que se movesse uma pena". A saudade, refere António Sérgio, é por isso um gesto amargo, gosto do passado e a amargura da mudança. Refere em seguida Sérgio que Pascoaes considera o vocábulo saudade como intraduzível, nos outros idiomas, encerrando todo o sentido da alma lusitana153. Sérgio contrapõe que a palavra existe em galego, catalão, italiano, romeno, sueco, dinamarquês ou islandês. Este artigo de Sérgio parece central nos argumentos e no estilo que o autor adoptará até ao fim da polémica. Procura, em síntese:

1 - Ridicularizar a definição proposta por Pascoaes para Saudade;

2 - Sustentar que não é conveniente ao País uma eterna contemplação do passado;

3 - Notar que noutras línguas existe a mesma palavra, a que corresponde o mesmo sentimento.

No artigo "Regeneração e Tradição, Moral e Economia", que Sérgio dedica a Pascoaes, refere-se-lhe como "poeta amabilíssimo".

"Ah, Pascoais, Pascoais meu querido amigo: você é um puro, excelso e nobilíssimo poeta, mas uma vítima também desse ambiente social, como nós todos: desse horrível isolamento que V. louva e eu maldigo (...) V. adora e bemdiz a Purificação e o Isolamento. "

E afirma adiante que a Europa, o mundo civilizado da electricidade não é tão suja, bronca, céptica, encarvoada, como parece em Amarante; e não é connosco que a Inglaterra manufactureira aprendeu o idealismo. Para Sérgio "não se grangeiam energias no passado; (...) as energias vêm primeiro do presente (...)não são as energias do passado que suscitam as do presente, mas as energias do presente que ressuscitam as do passado".

Neste passo, esta polémica tem semelhanças, do ponto de vista de Sérgio, com a que manteve com Jaime Cortesão. Citando os opúsculos de Alexandre Herculano, afirma Sérgio "que são essas palavras retumbantes de regeneração pelas tradições, se não sons ocos, que não correspondem a nenhuma ideia? " (...) num País onde a riqueza passageira destruiu os hábitos do trabalho e da Economia, entorpeceu pela miséria, resultado infalível da prosperidade fictícia. Cita também Antero de Quental: "quebrar resolutamente com o passado" 154.

Para Sérgio, o progresso espiritual (moral) de um povo está dependente do progresso económico e não o contrário"155. "Já pensou Pascoais no que seria o seu espírito se tivesse nascido na miséria e sido obrigado de criancinha a trabalhar espasmodicamente?" 156. "Nos anos em que sobe o preço do trigo diminui a prostituição e viceversa."

Termina António Sérgio, afirmando que não é céptico. Responde Pascoaes dizendo que Sérgio está enclausurado numa visão positivista. "É com tristeza, meu caro amigo, que o vejo tomar essa atitude, hirta e deserta, perante a vida". Pascoaes considerava que "na raça portuguesa, o sangue semita e o ária existem em partes equivalentes" 157.

  • O ária trouxe à Ibéria o naturalismo.

  • O semita o espiritualismo.

Estes dois sangues combinam-se amorosamente no Português.

No seu texto "Pela Pedagogia do Trabalho", Sérgio retoma uma ideia cara a Antero quando afirma: "Nós portugueses, fixados num tipo social obsoleto por longuíssimos anos de educação depredadora e de isolamento sistemático, apresentamos o acabado exemplo de uma sociedade cuja estrutura guerreira não conseguiu ainda adaptar-se ao ambiente industrial da moderna civilização" 158.

Sérgio considera a política do isolamento um grave erro, sustentando que a nossa pedagogia deve ser uma pedagogia do trabalho e de organização social do trabalho. Fernando Pessoa terá procurado, segundo Jacinto do Prado Coelho "demonstrar friamente, com raciocínios e cinzentas análises, a justeza das intuições proféticas de Pascoaes, pondo em termos de compreensibilidade lógica o valor e a significação do movimento saudosista."

A polémica Sérgio/Pascoaes é o entrechoque de personalidades, discursos e intenções diferentes. Nenhum assumiu uma atitude de diálogo. Para Sérgio tratava-se de ser Pedagógico; Pascoaes era apologético. A linguagem não foi, portanto, convergente, a vida dos dois homens seguiu rumos diferentes. Sérgio seria um «industrialista», Pascoaes um «ruralista». Mas, no fundo, nem um nem outro seriam só isso. Pascoaes sentia que o ruralismo era necessário, tinha valor em si mesmo; Sérgio era um optimista e nesse optimismo englobava a industrialização159.

Pascoaes se vivesse hoje seria provavelmente um ecologista, mas hoje, talvez Sérgio também o fosse.

A um Sérgio político, empenhado, corresponde um Pascoaes em que a acção política não está ao mesmo nível que a sua produção literária. De resto, a sua obra "de um português ibérico" segundo Unamuno, é um campo quase inacessível ao homem comum.

3) Polémica com Carlos Malheiro Dias a propósito do "Sebastianismo" (1924)

A origem desta polémica pode ser encontrada no Bosquejo da História de Portugal, obra que teria constituído uma pequena introdução histórica ao Guia de Portugal, a editar pela Biblioteca Nacional de Lisboa sob a direcção de Raúl Proença, onde Sérgio define D. Sebastião como "um fanfarrão e um mentecapto. "

Algum tempo decorrido António Sérgio leu no jornal O Dia alguns trechos do livro de Carlos Malheiro Dias, Exortação à Mocidade, onde o autor atacando a apreciação que Sérgio faz de D. Sebastião, o apresenta como herói, um modelo exemplar para a mocidade portuguesa. Com aquela obra, Malheiro Dias, pretendeu lutar contra o que ele denominava pensamento desnacionalizador e de alguma forma contribuir para a regeneração do espírito patriótico. Afirma que a sua intenção foi chamar a atenção da mocidade para a "função do espiritualismo na reabilitação do sentimento patriótico" 160.

Considera que o racionalismo não responde aos problemas de Portugal, apelando ao Nacionalismo, que julga crucial. Defendia Carlos Malheiro Dias a figura de D. Sebastião. Sérgio escreveria uma "Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão do Desejado" na Seara Nova em 1925161. Esta polémica, tal como outras que António Sérgio manteve, não nada a ver, numa primeira abordagem, com questões de Pedagogia. No entanto, numa abordagem mais atenta, pode considerar-se de interesse pedagógico por dois motivos: primeiro porque Sérgio pretendeu, com as Polémicas lançar luz sobre assuntos de interesse nacional e realizar uma importante divulgação cultural através das polémicas; aliás, elas realizaram-se em jornais e revistas; em segundo lugar, porque tendo sido Sérgio um 'Educador de Gerações', fora do sistema de ensino formal – fundamentalmente por causa das suas opções políticas – encontramos nas Polémicas as suas ideias quanto ao «Modelo de Pessoa» a formar pelo Sistema Educativo – e tal aspecto é fundamental; – não há Sistema Educativo cujo fim último não seja, precisamente formar as pessoas num determinado sentido e não noutro(s).

4) Polémica com José Marinho sobre o Idealismo (1934)

António Sérgio procedeu a uma homenagem a Antero de Quental, – autor que sempre disse admirar. José Marinho manifestou-lhe muitas dúvidas quanto à capacidade da inteligência humana em compreender a própria totalidade do ser humano.

António Sérgio dirá que a inteligência científica não deve ser entendida como discursiva, à maneira aristotélica. Inversamente, ela é relacionativa, equacionativa, matematicativa e o trabalho científico desacredita a intuição sensível; mais uma vez, António Sérgio se definirá como idealista, e recusa qualquer possibilidade de leituras «realistas» na relação cognitiva, pois para Sérgio, esta trata da luta entre um realismo do senso comum e um idealismo racional e crítico; assim, não aceita [nunca o fará] o anti-intelectualismo de Henri Bergson e de todos os que acreditam como evidência que o mundo «exterior» é mais fácil de ser conhecido que o homem, só porque o primeiro é «exterior».

José Marinho dirá que grande parte das ideias de António Sérgio estão em decadência [o idealismo, a sua filosofia do conhecimento, a definição sergiana de cultura, a valorização do cartesianismo] pensando que Sérgio coloca a questão gnoseológica num dilema.

José Marinho não se definirá como realista ou como idealista. Diz-se "amigo do pensar inclassificado", pois para ele "o pensamento verdadeiro se não encontra (...) pela exclusão do real estranho ao pensar, mas pela aceitação dele".

Replicando a este escrito de Marinho, António Sérgio diz considerar que entre a atitude filosófica e a atitude científica existe muito em comum. Sérgio terminará esta polémica com uma certa ironia que diz considerar "a mais filosófica das atitudes do espírito"162. Como vimos nas anteriores polémicas em que se envolveu António Sérgio, existe por sua parte uma «constância» de pensamento e uma grande força interior para afirmar e reafirmar esse mesmo pensamento.

No que diz respeito ao «Idealismo», Sérgio sempre o defenderá, em consequência da sua bagagem intelectual no domínio da Física, como se referiu já.

5) Polémica António Sérgio – Sant'Ana Dionísio sobre Leonardo Coimbra (1936)

Esta polémica surgiu não por grandes motivos, em relação à obra de Leonardo Coimbra, mas pela forma como Sant' Ana Dionísio o elogiou, tendo citado Raúl Proença.

É António Sérgio quem refere que "no princípio foi só o desejo de defender o Proença contra uma assimilação que me pareceu ultrajante e um testemunho errado a seu respeito [que o moveu] isso e nada mais" 163. Note-se este traço da personalidade de Sérgio: defender aqueles que julga terem razão; já disse neste texto que tratamos de um autor de combate – e veja-se em que época histórica se situa esta polémica – em 1936, com os vários fascismos cheios de força. Era preciso coragem, neste tempo, algo que as actuais gerações – felizmente – já não conheceram – para se lutar publicamente, ainda que no plano das ideias. Sant' Ana Dionisio comparou Leonardo Coimbra, com Antero de Quental, considerando-os como quem constituiu "o mais alto grau de sinceridade, de constância diligente, na procura do que mais importa ao homem."

Para Sérgio, se bem que existissem largos motivos para admirar Quental no contexto da Cultura Portuguesa, tal não se passava com Leonardo Coimbra. Sant' Ana Dionísio sustentava que Raúl Proença definia Leonardo Coimbra "como um pensador sério com um espírito dotado de invulgares dotes especulativos".

António Sérgio considerava ter existido deturpação do pensamento de Raúl Proença, que em 1931, tinha afirmado a propósito de Leonardo Coimbra é: "um prosador que escreveu poesia – e muitas vezes mirabolante retórica – em torno de assuntos tratados pelos filósofos."

Em 1922, a Seara Nova, sob a direcção de Raúl Proença não se pronunciara sobre um artigo a propósito de Leonardo Coimbra, porque "Raúl Proença só se sentiria «obrigado» a opor-se aos artigos da própria Seara Nova quando tais artigos eram de natureza política, e contrários, em doutrina à orientação da (...) revista".

António Sérgio afirmou que Sant'Ana Dionísio fez uma distorção das afirmações de Proença e referiu a conduta ético-política de Coimbra, pondo em causa a seriedade do seu pensamento; Sant' Ana Dionísio, a partir dessas considerações pensou que para Sérgio a seriedade ético-política seria a forma de medir a seriedade metafísica. Ora, para António Sérgio o Homem é uma Totalidade, composta por elementos interligados; assim, como admirar um homem que diz pensar de uma forma e age de outra? – seria, para Sérgio, o caso de Leonardo Coimbra; Sant' Ana Dionísio replicou apontando Antero, que seria exemplo da coexistência de contradições nos seres humanos, mas António Sérgio considerou que em Antero as suas contradições eram igualmente dirigidas para as mais altas aspirações éticas. Deste modo, para Sérgio, "a dualidade ética de Leonardo Coimbra é a de uma alta ética declamada em retórica e de uma baixista ética realmente vivida" 164.

Para António Sérgio, sempre fiel a uma linha coerente de pensamento, Leonardo Coimbra terá falhado precisamente nesse aspecto, não demonstrando coerência, ao nível da vida e escritos.

6) Polémica António Sérgio – Abel Salazar sobre a «divulgação cultural» (1937).

Abel Salazar, em 1937, escreve na Seara Nova um artigo intitulado "Pensamento lógico, pré-lógico, pseudológico. Pensamento emotivo, pensamento lógico e empiro-lógico". Neste artigo, defendia o empirismo lógico. Para o artigo em causa, Sérgio faz uma pequena introdução, parecendo estar de acordo com o autor165. Um mês depois, já Sérgio afirmava: "Apresentar as teses dos de Viena afigura-se-nos obra meritória e útil: afirmá-las, porém com inabalável certeza, seria excessivo como manifestação de fé" 166.

António Sérgio parece concordar com as intenções do articulista, mas não com a forma como ela é realizada.

Assim, diz: "Quando vejo um cientista de tanto mérito como o nosso querido camarada e amigo, o Dr. Abel Salazar, por zelo apostólico de vulgarização filosófica, abismar-se em pélagos de simplificações colossais, resignado à necessidade de desprezar distinguos, subtilezas, rigorismos, exactidões, pergunto-me se esta prova não será decisiva, e se alguém jamais poderá ter êxito onde um Abel Salazar não conseguiu vencer" 167.

António Sérgio considera Abel Salazar dogmático, pois168 apresenta conclusões, sem explicar os passos dados e sem clareza expositiva, "(...) não o pregar conclusões ou sínteses (desacompanhadas da fundamentação respectiva) mas esclarecer intelectos".

Abel Salazar responde às críticas de Sérgio dizendo que não é possível realizar divulgações como Sérgio pensa;é necessário distinguir os problemas em discussão e as conclusões; no entanto, considera absurdo discutir os pontos ambíguos dessas teorias quando se trata de vulgarização, porque tais análises obrigariam a "condições intelectuais e uma posse completa do assunto, que o público não pode atingir; as conclusões, essas, pelo contrário, formulam-se em poucas palavras, e são acessíveis a toda a gente".

A vulgarização será, para Abel Salazar um factor de consciencialização intelectual do povo. Será assim um trabalho "estimulante e fecundante". Nesta altura Sérgio considera o tipo de vulgarização filosófica de Abel Salazar como propaganda das conclusões, sem as apresentar com método, Assim, tal vulgarização, pode acabar por ser perniciosa.

A esta argumentação, responde Abel Salazar, que seria "fazer andar o carro à frente dos bois."

António Sérgio inicia em Julho de 1937 a publicação na Seara Nova de artigos sob o título "Cartesianismo ideal e Cartesianismo real", onde retoma as críticas a Abel Salazar, embora não o citando. Mostra-se contra o "vício de orientação pedagógica, isto é, os divulgadores de um novo filósofo ou sistema filosófico, apresentarem novas teorias como dogmas de uma nova fé".

Em Janeiro de 1938, Abel Salazar publicou o artigo "O Bluff António Sérgio". Nele caracteriza António Sérgio como um "completo exemplo de vacuidade intelectual, de inépcia filosófica, de inaptidão crítica, de pífia dialéctica, de mísera sofística (...) e acusa-o de ser mero plagiador de Brunschvigc e da sua obra La pensée intuitive chez Descartes et les cartesiens nos seus últimos artigos "Cartesianismo ideal e cartesianismo real".

Sérgio escreve ainda um artigo intitulado "Em torno de um complicado caso de consciência", recusando todas as críticas que lhe foram feitas A. Salazar. Uma semana depois, no jornal Sol Nascente Abel Salazar responde, reiterando as críticas a António Sérgio e considera: "(...) isto deu em pura comédia, triste comédia... ". Esta polémica terminou com uma carta de Abel Salazar ao director do Sol Nascente aonde pediu a suspensão dos dez artigos, sobre a "triste personagem, que é o Sr. António Sérgio". Abel Salazar foi um oposicionista a Oliveira Salazar; hoje existe na Universidade do Porto, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, em honra deste homem, que foi também um grande médico e humanista. Esta polémica que teve com Sérgio, mostra como às vezes os homens, mesmo lutando por causas comuns, não se conseguem entender.

7) Polémica António Sérgio com Bento de Jesus Caraça sobre de Platão. (1945)

António Sérgio ao ler Os Conceitos Fundamentais de Matemática (2º volume) de Bento de Jesus Caraça169 , considerou que este tinha, no seu livro, conclusões contrárias às teses platónicas, por erro de leitura. Será só no final desta polémica, em "Explicações para os que entendem a língua que eu falo", que dirá: "Quero aqui acentuá-lo: foi somente para dissipar a ridiculez vexante com que na prosa de Caraça me apareceu Platão – foi só para isso, tão só – que eu acudi à pena; e por delicadeza para com ele que o não confessei de início" 170.

O interesse de Sérgio seria tornar a noção de «forma» platónica mais compreensível, mostrando a sua actualidade, segundo ele patente na investigação científica. Sérgio desenvolve estas ideias, "considerando a ciência o resultado de toda a ideação, que se traduziu num sistema de «formas»" 171.

Sérgio defende que o desenvolvimento das ciências actuais, confirma as traves-mestras do pensamento de Platão, das teses platónicas. Diz Sérgio [que o livro de Albert Einstein Como Vejo o Mundo ] mostra que Einstein usa o mesmo tipo de linguagem de Platão; "o de Einstein é o de Platão (...) traduzido na linguagem do nosso tempo" 172.

Bento de Jesus Caraça replicará que "a Física post-galileana é caracterizada pela interacção da teoria e da experiência" 173. Caraça define "a filosofia platónica como o pensamento de um homem que deu satisfação às suas aspirações de homem de classe e influenciado pelo ambiente da sua época e da sua terra" 174.

Bento de Jesus Caraça diz sobre Platão: "Toda a sua obra respira o desdém aristocrático pelos sentidos e pelas artes manuais que lhes estão ligadas". A propósito desta polémica com Sérgio, Caraça dirá que tal "infeliz discussão pode ser intitulada como episódio substancial da comédia da vida".

8) Polémica António Sérgio – António José Saraiva acerca do materialismo histórico. (1950-52).

António José Saraiva publicou na Vértice, um artigo "Sobre a 2ª edição dos Ensaios de António Sérgio" em Maio de 1950. Embora reconheça o labor sergiano a bem da cultura em Portugal, critica-lhe o seu Idealismo. Remete os leitores para o "Prefácio" de António Sérgio a Problemas da Filosofia de Bertrand Russell175.

Já na conclusão do seu artigo, António José Saraiva considera que "Sérgio no seu ensaio sobre a tomada de Ceuta deseja que ele seja entendido à luz do idealismo, quando tal não é possível, porque se trata de uma interpretação materialista de um facto histórico, ao contrário das ideias de Sérgio" Em "Notas de esclarecimento"176 , Sérgio começa por afirmar que António José Saraiva "não percebeu coisa alguma da minha doutrina gnosiológica, (...)" 177 , reafirmando o seu Idealismo que nunca é confundível com materialismo, porque "as ideias podem ser suscitadas por necessidades económicas, mas não propriamente determinadas por elas" 178.

Ser experimentalista também "não implica a necessidade de se ser materialista; pelo contrário a experiência é logo de início gerada e estruturada por intervenção de ideias".

Para confirmar as suas teses, Sérgio recorre a exemplos retirados das ciências – a noção de átomo – criada pelo intelecto. O que se deve entender por mundo exterior?

Desta forma, "o termo exterior leva-nos a uma ilusão, porque o exterior só existe mediatizado por cada um de nós. A realidade física é sempre construída, ultrapassando e contrariando a intuição sensível, servindo-se dela, mas resistindo à sua "tirania"; diz ainda que nunca duvidei de que iria ser, no meu próprio país, o precursor de uma corrente de materialismo histórico".

Esta polémica não terminou aqui. Em 1952, António José Saraiva editou no Porto, O caprichismo polémico do Sr. António Sérgio. Para ele não tinha sido esclarecido sobre a de contradição entre o idealismo sergiano e a filosofia da história do ensaio sobre a tomada de Ceuta.

António José Saraiva cita o escrito sergiano "O Reino Cadaveroso ou o Problema da Cultura em Portugal ", no qual este defendera [segundo Saraiva] que o desenvolvimento da indústria e do comércio, levou a Europa do Renascimento à mudança de mentalidade. A ser assim, as ideias seriam condicionadas por factores concretos – tais como o desenvolvimento da indústria. António José Saraiva, acaba por considerar António Sérgio como aquele em que "o que tudo se resume numa palavra: Caprichismo" 179.

Esta polémica envolveu – mais uma vez – dois adversários políticos de Salazar, tendo António José Saraiva – falecido em 1993 – contribuído grandemente para a História de Portugal.

3.13. António Sérgio Pedagogo e político: teoria e prática.

Para a compreensão do labor político de António Sérgio, consultei alguns autores, de forma a obter um testemunho dessa faceta da sua vida. Henrique de Barros e Fernando Ferreira da Costa, foram amigos de Sérgio, e, como ele, opositores ao regime de Salazar. Curiosamente, consideram-no utópico. Vejamos alguns excertos da obra que publicaram180:" Sérgio, com efeito, recusava abertamente o «materialismo dialéctico», como se depreende de vários passos da sua obra demonstrativos de que conhecia bem a doutrina marxista, à qual até recusava o qualificativo de «materialismo»: «Por mim, não aceito nem um ápice dessa tese metafísica» (assim a chamava ele), «e creio que o socialismo só teria a ganhar se se desprendesse dessa farragem do «materialismo dialéctico» que o torna antipático ao sentir de muitos». No seu entender, «as interpretações económicas dos acontecimentos históricos não têm coisa alguma de materialista»; para ele, «os sucessos resultam das ideias dos homens (...)» 181. Prosseguem os autores "(...)Da Utopia, ou antes de certas utopias de Sérgio, vamos pois tratar. Referir-nos-emos, claro está, às utopias do homem público, do doutrinador social, do reformador não violento, do pedagogo da política; jamais ousaríamos ocuparmo-nos, se é que as houve, das utopias do pensador puro, do filósofo em suma: seria atrevimento indesculpável tentar penetrar, armados apenas com as nossas «plebeias tecnologias», no edifício imponente das «aristocráticas humanidades»". Para estes dois autores, Sérgio foi utópico também porque acreditou naquilo a que "poderão dar-se os nomes de «República cooperativa», «Ordem cooperativa»,«Cooperativização integral», «Pancooperativismo» e porventura ainda outras, todas pretendendo significar que se não trata nem de capitalismo nem de socialismo marxista, mas sim de algo diferente e original: um socialismo associativista, libertador ou mesmo libertário, a criar de dentro para fora, pacificamente, pela extensão gradual mas ilimitada do princípio cooperativo. Sérgio, homem cultíssimo e de grande curiosidade mental, leitor permanente e crítico, filósofo convicto de que « a missão do filósofo é atenuar negrumes nos problemas mais árduos com que se defronta o intelecto», conhecia bem as obras de Marx e não ignorava a vida e as acções deste, mas nunca foi marxista nem revelou tendência para o ser, como é geralmente sabido e já aqui começámos, logo por fazer notar".

É preciso sublinhar, porém, que Sérgio, grande impulsionador do cooperativismo em Portugal, sabia que "para qualquer cooperativista de visão segura, o que primeiro interessa não é que existam cooperativas: é, sim, que haja espírito cooperativo; é que não faltem maneiras verdadeiramente cooperativas de pensar as coisas e de orientar os actos. Isto é: o apreço das práticas de auxílio mútuo; o apego ao princípio da associação de pessoas (e não de capitais); o desejo de abolir divergências de interesses e distinções de classe de origem económica; o de suprimir intermediários; o anseio de elevar cada um dos sócios à máxima plenitude de uma vida pessoal, e também o conjunto dos sócios da cooperativa à máxima beleza de uma vida em sociedade O empenho de, por uma obra persistente de educação do povo, preparar os homens para a vida cooperativa, e por esta elevá-los acima de si mesmos, lançar os alicerces de uma civilização mais nobre" 182.

E acrescentam ainda Henrique de Barros e F. F. Costa: "tal era o apego de Sérgio ao ideal que abraçara que, tendo chegado nos seus últimos anos de vida, recolhido em casa, à estranha conclusão de que a sua obra falhara, ressalvava contudo o seu combate pelo Cooperativismo como a única coisa que daquela se aproveitava e assim legaria ao seu país. Isto mesmo declarou ele a diversos amigos, que o visitavam na sua acolhedora casa da Travessa do Moinho de Vento, à Lapa, entre eles a nós próprios, ao afirmar a convicção em que estava, naquela passagem da década dos 50 para a dos 60, de que a sua obra resultara estéril, essa obra sem par entre nós de Filósofo, Ensaísta, Doutrinador Político, agitador social fecundo, fomentador de novas ideias, Professor vocacionado, crítico literário arguto e inconformista, Historiador original sempre com os olhos postos no futuro, prosador admirável e dúctil, Poeta talentoso, Dramaturgo interessante, jornalista que aliava a acessibilidade do texto à elevação dos conceitos".

Para estes autores António Sérgio era incapaz de ódios pessoais mas abominava intelectualmente António de Oliveira Salazar, esse protótipo do «segundo homem» da sua trilogia183. "Não podemos evidentemente garantir que, em atitude de reciprocidade, Salazar abominasse Sérgio intelectualmente (estamos até em crer que, no íntimo, lhe tinha algum respeito), mas assiste-nos o direito de afirmar que o perseguiu abominavelmente, não hesitando em mandá-lo prender várias vezes e em ordenar a apreensão de livros dele: «Este pequeno compêndio de pedagogia Educação Cívica, editado em 1914, e que se pretendeu reeditar em 1946 ou 1947) ficou sendo o quinto dos meus volumes perseguidos pelo regime" 184;185.

Curioso é o episódio a seguir narrado: "Seja como for, nem A. S. nem O. S. , presumimos nós, devem ter apreciado um elogio simultâneo que, em hora infeliz, Gilberto Freire se lembrou de fazer dos «dois Antónios»" 186 , já que nenhumas outras similitudes, salvo a de serem ambos inteligentes e essa da igualdade do nome próprio, entre eles existia, e a não ser talvez também a de ambos gostarem de se apresentarem publicamente como humildes, quando afinal tanto um como o outro eram orgulhosos e seguros da excepcionalidade do seu valor. Assumido o poder pelo homem forte, gélido e astuto importado de Coimbra, e estabelecido nas leis e nas instituições o «corporativismo» fruste versão portuguesa do fascismo italiano, a luta política de Sérgio contra o regime não parou e só esmorecia quando as circunstâncias eram por de mais impeditivas da expressão do pensamento187. Tendo acabado por se convencer, após o seu regresso ao país em 1933 e até ao insucesso da candidatura Norton de Matos, de que o sistema nunca se liberalizaria a ponto de procurar quem o continuasse ou lhe sucedesse recorrendo a eleições honestas, o pensador teorizante voltou a ser conspirador activo e passou de novo a privilegiar uma solução de índole militar e a procurar contactos com os que nela estavam ou pareciam estar envolvidos ou susceptíveis de se envolver, desta vez porém generais e oficiais superiores. Ainda se dedicou, por sinal empenhadamente, a um esforço difícil de propaganda que ficou conhecido por «campanha de promoção do voto», e que tinha simplesmente por objectivo imediato convidar os cidadãos a recensearem-se, mas o malogro desta e as perseguições movidas aos que nela mais activamente participaram deve tê-lo convencido da inanidade de tal via perante a cega obstinação do poder.

"Também, como é sabido e mais adiante lembraremos melhor, o escritor esteve intensamente envolvido na preparação e na execução da candidatura presidencial de Humberto Delgado, mas já então mais convencido de que esta redundaria num golpe militar em vez de umas tranquilas eleições democráticas. (...)".

Para Henrique de Barros e Fernando Ferreira da Costa, "Quem um dia conseguir fazer a história meticulosa da resistência militar ao antigo regime, após a grande guerra, com as suas muitas conjuras e raras sublevações, comprovadora de que as Forças Armadas, embora continuassem a ser o suporte principal do status quo, nunca estiveram coesas na defesa deste, como não haviam estado antes da guerra mundial, há-de certamente deparar a cada passo com a figura «intrometida» de António Sérgio. (...) Foi Sérgio quem, após com ele se ter relacionado com finalidades conspiratórias, lançou o nome de Humberto Delgado, recém mas veementemente convertido à Democracia, para candidato oposicionista apto a vencer as eleições presidenciais de 1958. Com o seu temperamento dadivoso e combativo, foi também ele, Sérgio, um dos que mais intensamente se empenhou na luta pela aceitação desta candidatura por todas as forças oposicionistas, como veio a acontecer após a desistência de Arlindo Vicente, e um dos que mais se envolveu na ingrata campanha que o «general sem medo» conduziu e que acabou por o levar, poucos anos depois, à horrorosa tragédia que os portugueses jamais deverão esquecer" 188.

Já em 1993, José Freire Antunes, na obra Salazar Caetano cartas secretas 1932-1968, volta a reafirmar o papel crucial de António Sérgio na desintegração do salazarismo, dizendo que o Presidente da República de então, Craveiro Lopes, exigiu a Salazar a demissão de Santos Costa, grande apoiante do chefe do governo – tendo Salazar cedido, depois de se sentir ameaçado por Craveiro Lopes, que o poderia ter demitido. "Quando Delgado surgiu como candidato, o PCP chamou-lhe «general Coca-Cola», mas depois foi a reboque. António Sérgio tornou-se o principal congregador de apoios civis para a candidatura. A campanha eleitoral de Delgado («à americana») mobilizou multidões, convulsionando literalmente um país a que Salazar incutira a habitualidade bloqueadora das emoções".

Sérgio e Humberto Delgado contactaram muito no ano de 1958. Quanto à natureza do salazarismo, sublinhese, de acordo com Braga da Cruz que "sem tolerar que se pense no regresso ao parlamentarismo e ao sistema de partidos, Salazar aceita que, por períodos curtos e espaçados, e sempre sob rígido controle do poder estabelecido – a PVDE é reorganizada e passa a chamar-se PIDE em Outubro de 1945, – se formem o que Mário de Figueiredo classifica impropriamente de «partidos ocasionais»" 189.

O mesmo Braga da Cruz acentua que os opositores eram perseguidos, tendo muitos sido afastados de cargos que detinham na função pública por assinarem requerimentos de legalização de movimentos eleitorais de oposição. Parece evidente – quiçá como no caso do franquismo – que o governo de Salazar se firmou no poder devido às suas próprias manobras na conjuntura internacional. Assim, no período da «Guerra Fria», Portugal adere à NATO e usa, livremente, em África, armas compradas para servirem na Europa. É de salientar igualmente, a importância que os Estados Unidos conferiam à sua base aérea nos Açores.

Igualmente, para Sottomayor Cardia, a oposição ao regime foi-se diluindo e, tristemente, em muitos casos, antagonizando. Várias das «polémicas» de Sérgio deram-se, lamentavelmente, com opositores do regime e são exemplo do que acabo de dizer. Havia com efeito «Oposições» e não uma Oposição. Era completamente diferente a acção do Partido Comunista da de personagens de tipo social-democrata, entre as quais o próprio Sérgio. Como nota Manuel Braga da Cruz, pessoas houve que colocando-se "sempre escrupulosamente dentro da mais estrita legalidade» – caso de Norton de Matos, querem democratizar o país sem sair dos limites constitucionais" 190.

Seria a questão colonial o grande problema do governo de Salazar. É preciso não esquecer, de resto, a pequena dimensão de Portugal – que torna o País esquecido – e a fronteira terrestre com a Espanha, governada por Franco, excelente amigo de Salazar.

Por estas razões, creio que Sérgio tinha razão quando pensava em atrair os militares para a oposição, criando as condições para um golpe de estado, já que um «levantamento popular» não parecia de modo algum eminente. "As eleições de 1957 vão porém inverter curiosamente as posições no seio da oposição ainda dividida, e onde a Comissão Promotora do Voto de António Sérgio continua a pugnar pela dignidade cívica e moral das eleições" 191.

Já em 1958, com a candidatura do General Humberto Delgado – um ex-salazarista convertido à democracia – "o Governo, [ficara] surpreendido com a força da Oposição e com o impacto da candidatura de Delgado, procura dificultar os movimentos do General, intimidando-o a ele e aos seus apoiantes. Várias medidas repressivas, limitativas ou intimidativas, são ou consentidas ou promovidas, desde ataques «anónimos» à residência de Delgado em Lisboa, à prisão de activistas da oposição (...) às cargas da polícia sobre manifestantes (...) Tudo isso justificava o governo a pretexto de que «em vez do esclarecimento do eleitorado, se procurava criar um clima de agitação social, de desordem e intranquilidade pública»" 192. Acrescenta Manuel Braga da Cruz que "hoje não há apenas dúvidas mas a certeza de que os resultados finais oficialmente publicados, foram viciados. É o próprio Marcelo Caetano, que, nas suas "Memórias" o admite, embora em termos que não alterariam o resultado do voto" 193.

António Sérgio viria a declarar que as eleições tinham sido uma "farsa indecorosa". Humberto Delgado disse em público uma célebre frase, em relação a Salazar, caso eleito Presidente da República: "obviamente demito-o". Mas em 1965, Humberto Delgado foi assassinado e Portugal mergulhou cada vez mais nas guerras de África – desde 1961 – em Angola, Moçambique e Guiné. Em 1968 Salazar é substituído por Marcelo Caetano e em 1974 os militares, finalmente, derrubaram o regime que eles próprios tinham começado, em 1926. É extremamente interessante notar que quatro importantes Generais do tempo da Guerra Colonial portuguesa, criticam em livro posterior ao 25 de Abril de 1974, utilizando uma visão política nitidamente de direita, António Sérgio e os "Sergianos". Revelam assim a importância que o regime de Salazar reconhecia à acção de Pedagogia Social que Sérgio fez. Criticando os "erros de visão (...) e aberrantes falsidades" [a respeito da História de Portugal] lê-se: "pensamos em António Sérgio (...) e na acção dos seus discípulos, dos sergianos" 194.

Quando preso, em 1935, Sérgio respondeu na então denominada "PVDE", mais tarde "PIDE" e DGS, no tempo de Marcelo Caetano, que "as suas funções foram sempre doutrinárias, que essas doutrinas estão expostas em numerosos livros e artigos, nos quais sempre preconizei os métodos pacíficos e de persuasão, como poderia demonstrar por numerosíssimos passos das suas obras. E mais não disse, conclui o auto do interrogatório(...)" 195.

Segundo Jacinto Baptista "a 5 de Novembro de 1935 em carta expedida para a Corunha, Luísa Sérgio agradece o interesse do[antigo Presidente da República] e bom amigo Bernardino Machado, que a 16 de Setembro, na Galiza, estava informado do encarceramento de António Sérgio. (...) A 14 de Novembro, segundo a sua biografia prisional, Sérgio é transferido para a enfermaria da cadeia do Limoeiro (...) e, a 21 – continuamos a seguir a biografia prisional, Sérgio é efectivamente «posto na fronteira, por ter sido banido do Território Nacional por tempo indeterminado»" 196. Vemos hoje o que foi a vida de luta de Sérgio pela seguinte síntese: "Sérgio foi preso em 1910, 1933, 1935, 1948 e 1958. E a propósito das últimas quatro vezes pensou (e depois escreveu) que foi na prisão que encontrou a verdadeira «união nacional» – de oposição à ditadura militar, primeiramente, e, depois, a Salazar, ao Estado Novo, ao fascismo". Penso ter explanado o essencial da actividade política de Sérgio, sempre enquadrável com o seu aspecto teórico – a ligação à Democracia, à liberdade, como via para a Educação e Cultura.

Releitura da obra sergiana: enquadramento com escritos actuais

4. 1. Introdução.

Pelo que foi referido anteriormente, Sérgio é um continuador de pensadores ligados à Educação que vêm já da Grécia: ele próprio fala com entusiasmo de Platão e não se pode esquecer que os Atenienses ou os Espartanos tinham conceitos sobre Educação que correspondem ao que Sérgio defendeu: preparar as crianças para virem a assumir os seus deveres de cidadãos. A República de Platão, trata a Educação com pormenor, dividindo-a em elementar, secundária e superior. O mesmo Platão entenderá já a Educação como assunto do Estado – no que será continuado pelo seu discípulo Aristóteles, professor de Alexandre (O Grande) da Macedónia – o que nos faz pensar na noção sergiana de "formação de elites", com o intuito, nomeadamente, de formar bons governantes. Sérgio não parece destacar Roma como um exemplo no campo educativo; no entanto, refere a Companhia de Jesus pela disciplina e rigor dos seus estudos e, ao mesmo tempo, destaca a figura de Jean-Jacques Rousseau, cujos princípios educativos foram adoptados largamente, incluindo-se entre os seus seguidores o próprio Sérgio; de resto, Sérgio considerava a obra de Rousseau actual sob todos os seus aspectos197. Quando sabemos a importância que Rousseau vê numa visão «global» da Educação, como processo moral, físico, social e intelectual, quando vemos o valor que Rousseau dá ao trabalho manual, compreendemos que as obras de Pestalozzi, Herbart, Fröbel, Montessori, Decroly, Dewey, Kerschensteiner198,[e outros]surgem na sequência lógica da obra de Rousseau, visando um melhor entendimento da infância, levantando o problema das metodologias de ensino e combatendo o ambiente meramente livresco das escolas, procurando captar o interesse das crianças por meio de inovações pedagógicas que não esqueciam o ambiente que as rodeava, fazendo-as participativas em vez de passivas. Os autores da Escola Nova são seguidores das ideias gerais de Rousseau: é aliás curioso que tanto Sérgio como Faria de Vasconcelos, passaram (como já vimos) pelo Instituto Jean-Jacques Rousseau, em Genebra.

4. 2. A Obra Pedagógica sergiana: traços fundamentais.

Pelo que antes disse, e pelo próprio título que proponho para este escrito, depreende-se que António Sérgio não escreveu Pedagogia de forma sistemática – em livros, "Tratados", "opúsculos", etc. , antes sendo obrigatório ir buscando aqui e ali, na sua vasta obra, os seus conceitos fundamentais a respeito das questões Pedagógicas. Tal deve-se ao facto de Sérgio ter escrito "Ensaios" – como já referi; também se deve ao facto de interligar as questões Educativas com outras, a saber, as Culturais e Políticas em geral.

Creio que o fez por convicção; foi um homem de acção e nesse sentido, a sua obra Pedagógica teórica é mais difícil de descrever, do que a de muitos outros Pedagogos – como por exemplo Faria de Vasconcelos. Este foi um Professor e Pedagogo que procurou isolar as questões que tratou, por forma a raciocinar sobre elas esclarecendo-as. Não cabe aqui uma comparação entre pessoas; direi apenas que a forma de escrita e de intervenção política e social de António Sérgio o levariam ao tipo de escrita que adoptou. Deste modo, encontraremos inúmeras vezes citados textos seus completamente diferentes no título e interesse, aonde topamos – numa expressão muito cara a Sérgio – com as suas ideias Pedagógicas, inseparáveis das questões Políticas – tendo a Democracia como meta crucial – e a Cultura; e no entanto, é perfeitamente possível explanar com «clareza e distinção» – à maneira cartesiana que Sérgio enalteceu – as suas ideias fundamentais sobre Educação. "A sua obra é vasta, porque variada e rica era a sua cultura, e para a cultivar e pôr em rendimento social, era humaníssimo e incansável o seu espírito apostólico. A crítica literária, a filosofia, a história, a sociologia, a pedagogia, as ciências físicas, de conhecimento indispensável a uma perfeita cultura geral, tudo o interessava e tudo podia ensinar com modelar proficiência. O que não podia, porém, era despreocupar-se por muito tempo do objectivo que lhe empolgava a alma e o espírito: os destinos do homem – e do homem português." 199.

4. 3. A Pedagogia Sergiana descrita pelo seu autor.

"Se quisesse definir em poucas palavras a pedagogia que preconizo, desde há doze ou quinze anos, diria que é uma pedagogia do Trabalho, contra a pedagogia da Leitura; uma pedagogia da Produção, contra a Armazenagem de conhecimentos; uma pedagogia de Acção Social, contra a pedagogia das Ideias Abstractas – essa tradicional pedagogia que, separando absurdamente a prática da teoria, o trabalho da ciência, a vida do saber, – esteriliza as inteligências, torna parasitas os que estudaram, e cava assim separações entre as classes sociais: de um lado, uma falsa ciência puramente especulativa, uma ciência inútil e de vadiagem; do outro, uma prática de puro empirismo, rotineira. Este ensino, separado da vida, que as escolas tradicionais nos têm dado, divide a sociedade em duas castas: os chamados «intelectuais» (que melhor se diriam os «bizantinos») só sabedores de abstracções; e os chamados «manuais», que são máquinas de ganhar pão: e de aí lutas e incompreensões. Ora, a pedagogia nova de que vos falo, reunindo no mesmo ensino a escola e a oficina, tomaria para seu objecto o manualizar os intelectuais, por assim dizer, e intelectualizar os manuais: unir o pensamento e a vida comum, a ciência e o trabalho; fazer da sociedade uma coisa una, fraterna, em que as diferenças de hierarquia, necessárias à disciplina, não fossem diferenças de qualidade. Por outras palavras: a pedagogia que preconizo não vê no aluno um indivíduo – uma alma abstracta, isolada, inteligência pura; vê nele um futuro trabalhador, uma célula social, um membro de Corporação, uma parte componente duma oficina ou de uma granja; o que na aula se irá aprender é o serviço social, a política corporativista, a associação no trabalho e a respectiva disciplina". Para António Sérgio, Educar, é "favorecer o crescimento da capacidade de racionalização, de espiritualização, de universalidade, de superação dos limites vários" 200.

Educar será levar o aluno a dirigir-se a ele próprio; o professor deve guiar mas não deve permanecer como figura tutelar. A educação será o caminho que leva à liberdade de escolha, só possível por quem seja esclarecido. Dirá Sérgio que "o primeiro escopo do educador é o desenvolvimento da razão" 201. As escolhas terão sempre, como valor fundamental a Democracia. Sérgio vê a Educação como uma questão «global» no sentido em que entende que qualquer processo educativo tem finalidades dadas à partida, finalidades essas baseadas em valores. Destes destaca os relacionados com a actividade Ético-Política. Para que se viva em Democracia, tem de existir opinião pública; para que exista opinião pública, a população tem de ser educada. Assim, uma escola autoritária, seria uma escola deformante.

A Democracia é um regime preferível à Ditadura, mas não é isenta de críticas.

"Chamar-lhe regime de incompetentes é, como se sabe, uma das maiores pauladas de alto a baixo dos adversários da Democracia; das maiores, das mais repetidas, das mais certeiras". Sérgio afirma que "o princípio essencial da Democracia é o de não nos fiarmos em quem nos governa" 202. Para o autor, a Democracia é o regime mais característico da nossa época pois "a tendência democrática

hoje, espadana de várias fontes" 203 e o Sistema Educativo é aquilo que pode evitar a tomada de poder pelos homens incompetentes ou sem escrúpulos; assim, as reformas têm que começar pelo aspecto Pedagógico e Educar é uma actividade estruturadora da Sociedade, pois as reformas sociais, políticas, económicas, começam pela reforma Pedagógica. A Educação terá uma dupla função: por um lado será criadora de elites (de onde sairão os dirigentes), por outro elevará o nível cultural médio da população. Sérgio é elitista mas defende as elites como representantes da inteligência e não da força; sempre o dirá204. Pela generalização do acesso à Educação e à Cultura surge a verdadeira Democracia – "o governo da nação por elites naturais, criadoras da opinião pública e executantes da opinião pública: o governo da persuasão pelo escol da inteligência" 205 Sérgio pretende "(...) um regime social sem lucro e sem classes, e por isso mesmo compatível (e o único de facto compatível, com a inspiração moral dos evangelhos"206.

A Educação deveria ainda evitar os excessos de especialismo, que ao retirarem ao homem a visão global o tornam igualmente incapaz de uma acção cívica consciente. Já nesta altura Sérgio afirma que "o princípio da Democracia pode conciliar-se com a competência, com vantagem para os serviços, quando se coloque junto do especialista, do técnico permanente, um representante da opinião pública (sabedor dos problemas gerais do país, mas não ele próprio especialista técnico)" 207.

A Educação é vista como actividade criadora e generalizadora do espírito crítico, como prática que leva à instauração do regime da crítica e da discussão dos assuntos de todos;Educar é uma actividade libertadora do homem, conducente ao cidadão activo – não comprometido com partidos políticos. Sérgio condena os falsos democratas, mas fálo sempre ao mesmo tempo que repudia a tirania. "A aspiração democrática é imorredoura: trazemo-la gravada na consciência, e vem lá do fundo da História humana, através da Grécia e da Roma antigas, do Cristianismo e da Revolução. Ninguém no mundo a destruirá" 208.

A Educação, será sempre vista por Sérgio como motor da democratização do País porque é a Educação, que é capaz de "criar autónomos, forjar espíritos, ligar a reforma da vida pública à reforma intelectual do indivíduo interior, ao severo exercício da disciplina crítica, sem nunca esquecer o condicionamento económico: a verdadeira Democracia nos virá de aí" 209.

A Escola Primária teria como finalidade começar este trabalho de preparação das crianças com vista ao futuro. Em Sobre Educação Primária e Infantil diz-nos: "tudo no mundo se repercute em tudo, constituindo um círculo de acções recíprocas: e é desses planos de viver futuro que poderá resultar para os Portugueses de hoje uma verdadeira consciência social. A vida é tensão, actividade, avanço; não é ser, mas devir; não é estar, mas ir-sendo: e o laço fraterno e unificante não se há-de buscar numa coisa estática, como o acervo histórico e tradicional: o que dá vida a um povo é um plano de acção, o querer um futuro, o correr para uma meta, – a ideia-força de um melhor amanhã que iremos criar por uma faina estrénua, por um plano sugestivo de porvir comum, por uma ideia compreensiva de melhoramento social. Não é o tradicionalismo, mas o futurismo, o que dá robustez e coesão a um povo; é o amanhã o que organiza o hoje, e a ideia de uma empresa a realizar com alma o que infunde estrutura a uma nação" 210.

Para o nosso autor, é de admirar a impossibilidade de fazer ver aos técnicos portugueses em matéria de instrução pública, os que executam programas, fazem compêndios, que a mera divulgação de conhecimentos não tem valor Cultural e Pedagógico, e que, no ensino, o trabalho efectivo deve ser de investigação, de relacionar e de compreender os fenómenos.

Assim, o estudo das línguas estrangeiras, poderá valer mais que o estudo rotineiro de matérias científicas porque se o aluno tem que traduzir um texto que ignora, faz um esforço próprio, superior, como tal, ao de receber passivamente as conclusões de qualquer ciência, "transmitidas quase sempre – pelo menos nas primeiras classes, que são precisamente as mais importantes, – de maneira absurda e desconexa, ininteligente e muito dogmática, como nos nossos compêndios e nas nossas aulas, porque assim mesmo o exige o programa" 211.

4. 4. A Escola como vista como "Modelo" para a Sociedade.

A Escola, deve ser encarada como uma instituição inserida no Ambiente Social global. Não sendo uma espécie de ilha, mas, pelo contrário, está vocacionada para preparar, pela prática da Democracia, o cidadão consciente, cívico, as elites dirigentes e os profissionais em geral. Mais ainda: a Escola será o "Modelo" para as transformações sociais que Sérgio julga imperioso realizar. Este papel quase totalizante da escola é uma antecipação de pensadores mais tardios, que julgam ser a mudança de mentalidades, o fulcro e motivo de todas as mudanças sociais212.

No entanto, esta visão da "Escola-Modelo", faz lembrar a filosofia platónica e a sua concepção de "Forma" – o que parece um traço utópico no pensamento Pedagógico sergiano. Sérgio defende uma vertente de pensamento duplamente anti-Marxista:

— primeiro porque vê na Escola213, o factor das transformações sociais, e não numa classe social específica, que para Karl Marx é o proletariado; observe-se ainda que parece esperar demasiado da capacidade de intervenção e transformação políticas por parte dos professores.

— segundo, porque na Escola, poderiam todos obter a mentalidade cooperativa, de colaboração entre classes, esta uma visão muito distante da de Marx, que supõe a da luta de classes.

A Escola seria um microcosmos social. Como Sérgio afirma, importa proceder "considerando a escola uma sociedade e até organizando-a em sociedades: sindicatos, cooperativas, escritórios, oficinas". A escola deve estar organizada de forma a interligar-se com o meio social. Procedendo de outro modo,não tendo isto em conta, "é que o ensino, tal como existe, nos dá a impressão de ser um cadáver" 214.

Desconfiando dos políticos profissionais, elogiando os apartidários215 – Sérgio, como já se viu, persegue objectivos políticos, e advoga a existência do cidadão consciente, crítico e interventor. A Escola formará o «cidadãomodelo» da Pedagogia sergiana: cidadão participativo, desconfiado de quem o governa, apartidário mas empenhado, consciente, e por isso mesmo, ele próprio um espírito crítico.

O espírito crítico que deve ser fomentado na Escola, por forma a permitir o surgimento de uma opinião pública capaz de evitar excessos e erros na governação do País. A escola sergiana é assim Política. Sérgio critica a tirania, o poder de um só, tantas vezes glorificado e tornado mito: "um chefe único, absoluto, tende a sacrificar os interesses gerais aos interesses dos seus e da sua pessoa" 216.

Sérgio afirma-se democrata porque o homem partidário não se identifica com uma dada ideia, mas sim com os seus chefes. As propostas sergianas só seriam possíveis transformando todo o Sistema Educativo existente porque é óbvio que ele não cumpre os objectivos que Sérgio julga fundamentais. Para ele, "a escola pública, com o seu programa, visa a atulhar o capa-e-batina como um armazém de bacalhoeiro, desprezando o carácter e a iniciativa" 217.

Como já disse podem parecer estranhas as concepções sergianas porque ele próprio, não foi um professor, exceptuando períodos muito curtos: a sua reflexão Teórico-Pedagógica, era assim, de carácter mais amplo, nomeadamente, de cariz Político218. No plano vivencial, podemos considerar completamente contraditório o facto de António Sérgio se afirmar Pedagogo e não Político, pois sabemos que toda a sua obra buscou objectivos eminentemente político-pedagógicos e que ele próprio exerceu enorme actividade política ao longo de toda a sua vida, como Ministro, e depois como Opositor político a Salazar219. Aos que argumentam contra a sua visão, na minha opinião utópica, de encarar a Escola como local para obter a colaboração e cooperação entre todos, responde Sérgio que na sua opinião, "O cooperador contribui para o seu próprio bem em todos os seus actos a favor do próximo, abolindo toda a espécie de competição económica, de lutas de classes: porque destrói pela raiz todas as distinções de classe. O cooperativismo é um movimento de ascensão moral, de reforma social, que se serve, como instrumento, das necessidades económicas dos homens" 220.

António Sérgio, que sempre se afirmará idealista221 era-o no sentido total do termo: não só no plano epistemológico, mas igualmente porque perseguiu, de forma ímpar, os seus ideais. A Escola seria o ambiente a partir do qual a luta de classes seria eliminada. Mas serviria também para eliminar a "alienação do homem" que Sérgio considera o vício principal do regime capitalista222.

A grande transformação pretendida por Sérgio é a reforma total da Educação, que passaria a construir um cidadão de novo tipo, cooperativista; acabará por concluir que "a verdadeira luta não é a de operários e patrões mas a de produtores e não produtores" 223.

Aí considera também muito negativa a acção do político profissional.

4. 5. A Escola encarada como uma das bases da Democracia.

"os males de que nos queixamos são fatalíssima consequência da estrutura da sociedade, – e que só portanto terão remédio se nos metermos firmemente a transformar essa estrutura, o que não é possível com pregações, nem com políticas de autoritarismo, nem com reformas só pedagógicas, – mas com reformas sociais e pedagógicas concatenadas, entrelaçadas como fios de um tecido único (as quais preparem o nosso povo para o uso razoável da liberdade e para empreender por si mesmo a sua emancipação social-económica)". António Sérgio, "As Duas Políticas Nacionais", Ensaios, tomo II, p. 66.

Para Sérgio, os jovens deviam ser treinados em hábitos democráticos na Escola, desde cedo, seriam habituados à vivência Democrática, a expressar pensamentos, trocar opiniões e colaborar com os outros.

Mas para se constituir como Modelo224 a Escola teria efectivamente de o ser; a escola não poderia nunca deixar de ser Democrática. Ora, A escola do seu tempo é por ele definida como "uma verdadeira calamidade pública, e uma das causas mais poderosas da lúgubre situação em que nos encontramos" 225.

A Escola Sergiana não é, portanto a "escola real", do tempo em que o autor escreve. Essa "escola real" é criticada por Sérgio, por ser a escola do amestramento. Normalmente o professor baseia a sua actuação no "poder autoritativo" quando deveria baseá-la nos conhecimentos que possui e que deve transmitir ao aluno. Sérgio concede importância ao "poder cognoscitivo" e ao "normativo", porque Educar é transmitir valores, existindo assim a inseparável ligação entre a Educação e uma escolha Ético-Política. Uma escola em que as relações professor-alunos se baseiem na posição oficial de superioridade do professor em relação ao aluno é característica de uma sociedade em que a obediência à autoridade é encarada como uma finalidade da educação e uma finalidade global do conjunto da própria sociedade; Sérgio entende que tal culto da obediência pura é característico dos regimes autoritários, algo que precisamente, sempre combateu. Deste modo, o autor para quem "nos alicerces dos problemas cívicos está sempre o problema da preparação do espírito – o da concentração reflexiva da inteligência crítica, no pólo oposto da embriaguez emotiva" 226 , entendia por Educar, treinar os jovens na iniciativa, no trabalho do espírito criador e livre, no governo autónomo da sociedade escolar, (na discussão dos problemas sociais-económicos), na mentalidade crítica e experimental. Segundo António Sérgio, precisamos de uma escola inteiramente diversa de tudo que tivemos até aqui; de uma grande reforma Pedagógica. Para tal não se deveriam poupar os esforços de toda a ordem. "Buscai o reino de Deus e a sua justiça, e todas as outras cousas vos serão acrescentadas", disse Jesus Cristo no seu Sermão; "revolucionai a educação do povo (na Escola e na Cooperativa) e todas as outras cousas vos serão acrescentadas", peço eu licença para sustentar" 227.

Sérgio não pretende atingir a chamada 'neutralidade axiológica' no ensino, porque se terá dado conta de que tal é impossível; o que encontramos a cada passo é aquilo a que podemos chamar 'dogmatismo axiológico', descoberto historicamente pelos sofistas que, a troco de dinheiro ensinavam a arte de atingir o poder; como vimos, Sérgio é um herdeiro de Platão e Rousseau que atribuíram à Pedagogia a mais alta dignidade. Com a Revolução Francesa e o Iluminismo, encontramos novas ideias sobre o Homem e a Natureza, que se propagaram à Educação, sendo as principais reveladoras de grande optimismo: a Natureza é cognoscível e dominável; a Ciência acabará por atingir esse conhecimento e domínio, oferecendo ao homem a riqueza e a felicidade. Segundo A. Campos Matos, António Sérgio, afirma: "os escritores que mais influíram na minha formação intelectual foram um Platão 228, um Descartes, um Espinosa, um Kant(...). Quando li filósofos e conheci Platão, já a Matemática fizera de mim uma espécie de candidato ao platonismo, uma espécie de platonismo desconhecedor de Platão".

Percebe-se constantemente que o nosso autor é, tal como os Iluministas, portador de um grande optimismo antropológico nomeadamente quando fala sobre a elevação moral e cívica do povo português.

Os escritos Pedagógicos Sergianos, que dizem respeito às crianças, aos mais jovens, Sérgio referem-se fundamentalmente à educação de crianças desligadas da família229. António Sérgio parece esquecer o papel da família quando fala da educação dos mais jovens e ao pretender inculcar nos alunos o pensamento autónomo e o espírito crítico, não parece notar, que o "pensar autónomo" e o "sentido crítico", dos alunos, serão sempre definidos em função da escala de valores do Educador. É de facto difícil conciliar a transmissão de valores, inerente à Educação, com o espírito crítico e autónomo que Sérgio pretendia desenvolver. Mas o autor continua: "Um dos escolhos de natureza Moral que mais têm dificultado a democracia – é que a educação, até hoje, continuou a fazer-se nas escolas públicas segundo os princípios do Absolutismo. Os processos escolares ainda hoje usados domesticam as crianças para serem súbditos: não criam a mentalidade do cidadão consciente (renovador do Mundo). Para que preparemos cidadãos autênticos, capazes de progredirem democraticamente, o primeiro passo é libertar o aluno (...)" 230.

Para Sérgio, "Educar uma criança enviando-a à actual escola é como preparar um automobilista metendo-o no Museu dos Coches Reais" 231. É necessário Educar para a liberdade num mundo em que existimos com os outros. É este o mais elevado ideal do processo educativo. O eu, o outro, o mundo vão-se constituindo, havendo abertura para uma infinidade de atitudes possíveis. "Educar é levar o educando à consciência de poder ser mais, a reconhecer que é chamado a ser um verdadeiro eu-no-mundo-com-o-outro, num empreendimento comum e solidário" 232. O traço que julgo utópico nas propostas Pedagógicas de Sérgio, prende-se com o facto de se conseguir que a Escola seja motor de transformação social, em vez de ser reflexo das condições sociais que se querem transformar.

4. 6. Educação e Elite.

Desde o Nazismo e a Segunda Guerra Mundial, passou a existir uma natural reserva mental quando se vê alguém apelar às Elites, que, para António Sérgio são uma necessidade fundamental.

Sérgio entende a elite, segundo parece, como o fazia Einstein233: homens e mulheres mais capazes, mais dotados intelectual e culturalmente, mas também mais nobres, no sentido Ético; António Sérgio não fala da necessidade de uma Elite num sentido agressivo, mas pelo contrário, num sentido construtivo; assim, a Elite não seria formada por gente cientificamente preparada e com elevada inteligência mas baixas intenções morais, mas seria formada por pessoas inteligentes, competentes e eticamente superiores. Tratava-se de conseguir, por meio da Elite, a elevação moral e espiritual de todos, uma vez que a governação estaria bem entregue, nos seus vários níveis. Os homens têm capacidades e aptidões específicas diferentes; ignorá-lo é um erro. É preciso, para o nosso Pedagogo, proporcionar a todos as mesmas condições à partida, mas não pretender idênticos pontos de chegada para todos. A Elite seria 'Aristocracia Democrática', filha da Cultura e das Ciências, caldeada pela Educação Cívica, tolerante mas regida por objectivos a longo prazo, ditados segundo os interesses mais gerais da Nação. Sérgio não defende uma massificação pura e simples do ensino conjugada com abaixamento do seu nível de exigência, pois tal não leva à elevação cultural real: conduz, quando muito, a resultados aparentes e enganadores. "Não: não pretendemos que atinjam todos o mesmo ponto de chegada; sabemos ser isso um impossível. As condições internas dos indivíduos, as faculdades de cada um, não as podemos modificar" 234. Propõe que não se coloquem obstáculos de ordem burocrática aos que desejam estudar, ou até ensinar, independentemente dos graus académicos que possuam, o que teria sido muito útil, em Portugal, se se tivesse feito com cuidado, dada a enorme falta de quadros técnicos e científicos, que se reflectiu no Sistema Educativo.

"Não há razão alguma para que se dificulte o ensino numa escola superior aos que demonstraram pelos seus trabalhos ser os mais competentes no assunto, e tenham ou não tenham feito, na sua mocidade, o curso da matéria que se propõem ensinar" 235.

Sérgio desconfia dos títulos, da mera habilitação literária sem provas dadas, porque critica em geral a visão burocrática da sociedade, para mais sujeita aos problemas de corrupção a que alude: "o Estado estabelece a selecção por meio de exames e de concursos, teias de aranha para a empenhoca" 236.

António Sérgio não confia nos títulos conferidos pela Escola tradicional, no fundo porque nesta não se produzem espíritos livres, de onde poderiam saír as elites, pois apenas se estimula a obediência e a reprodução do conhecimento do mestre. O conhecimento científico é questionável e não é algo a ser ministrado dogmaticamente e adorado pelos alunos.

"A chamada educação «jesuíta» (memória e obediência) é justamente a burocrática, e não dura (como dizem) por culpa eterna dos Jesuítas, mas por obra e graça do burocratismo: é a educação para um povo de funcionários, fardados e não fardados".

As formulações Pedagógicas de carácter teórico por parte de António Sérgio são, no essencial, as que acabei de descrever.

No entanto, mesmo a este nível – meramente teórico – o autor foi mais longe e especificou melhor as suas ideias, conforme veremos, embora de forma dispersa por inúmeros escritos, facto que se consegue depreender pela leitura desta parte do presente trabalho.

4. 7. A Educação Cívica: sua necessidade e funções.

É necessário que o cientista tenha igualmente conhecimentos de carácter ético, pois as ciências são criações humanas, sujeitas ao erro e (como já tantas vezes se verificou) a um muito mau uso daquilo que criam. Esta questão era clara para António Sérgio que já em 1915 escreveu a sua Educação Cívica237. De resto, para Sérgio, a Educação Cívica devia ser para todos e não só para os cientistas, pois afirma: "Num país de gente como esta nossa, de educação cívica imperfeitíssima, sem treino mental na objectividade e na crítica, de estrutura económica parasitária, de efervescente sensibilidade, sem auto-domínio, – todos os partidos entre si se acusam de males de que realmente nenhum deles tem culpa, que procedem de condições da Natureza e da História, e que são os da Grei a que pertencem todos" 238.

O Direito não abarca as normas de conduta da Sociedade: ele é mais uma das intenções normativas sobre o social, que deve ser completado pela Ética e pelo Humanismo, segundo Sérgio. Vemos nesta concepção traços que permanecem perfeitamente actuais. O ser humano dos nossos dias, "ainda muito jovem, deve decidir-se por uma determinada especialidade, e tudo o que aí tiver para aprender ocupa de tal modo o seu tempo que deixa de ter ocasião e energia para se ocupar de outros campos do saber (...) A força que nos impele para a especialização não só nos limita, como torna o nosso mundo irritantemente aborrecido. Estou profundamente convicto de que o esvaziamento de sentido do mundo, sobre o qual Victor Frankl tão propositadamente falou, é em boa parte uma consequência das especializações. Quando, nomeadamente, perdemos a visão de conjunto do mundo como um todo também não podemos perceber como ele é belo e interessante" 239.

O Pedagogo, ou mais correntemente cada profissional da Educação, não pode alhear-se das questões de cariz Ético-Social deste fim de século. De facto, a Pedagogia tem de ser eminentemente Social: não pode viver num isolamento em relação ao Mundo – o que a tornaria um imenso conjunto de elocubrações teóricas sem qualquer sentido. Pode dizer-se que tomando esta posição, o professor quer ser político; não é preciso voltar a Aristóteles que definiu o Homem como animal da «Pólis», cidade, logo como Político; o professor tem o direito, (ou será o dever?), neste sentido, de ser político, pois é ele quem molda tantos indivíduos, ou, pelo menos, quem os influencia profundamente.

No final do Século XX, por toda a parte, vivendo entre multidões, sendo um ser social por natureza, a pessoa sente-se cada vez mais isolada, por causa das preocupações que a atormentam e dos desejos que sente incapaz de satisfazer, desejos esses, cada vez mais unidimensionalizados por factores de mera ordem material. A cidade, as Nações no seu conjunto, parecem cada vez mais voltadas para o incremento da produção, amarrando o homem ao seu trabalho e destruindo, progressivamente as próprias relações familiares, não permitindo a realização plena da personalidade – que em muito ultrapassa as necessidades de ordem material.

A civilização tecnológica pode, em muitos aspectos, empobrecer a comunicação interpessoal, automatizando, simplificando e acelerando os ritmos de vida, mutilando o espaço ao trabalho criador. A desumanização consiste em equiparar o valor da Pessoa à quantidade da sua produção; a impessoalidade impera nas relações familiares, escolares, hospitalares, comerciais e entre os Países – reflectindo-se esta falta de comunicação na Guerra – acto complexo de impessoalidade, desumanidade e de falta de diálogo, levado às últimas consequências; o processo de usar e ser usado condiciona respostas de tipo manipulativo em que passa a contar quase exclusivamente a vontade de sobreviver.

A carência de amor – por si mesmo e pelos outros – gerou as maiores aberrações comportamentais; pior ainda, a «exportação» de modelos sociais deste tipo gerou fracturas mentais tremendas, mesmo em Países não industrializados. A África tem sido um exemplo claro disto mesmo (para não falar da antiga Jugoslávia); em 1994, conflitos como os da Irlanda do Norte ou do Líbano, deixaram já de ser grande "manchete"; depois da tragédia da Etiópia, de Angola ou de Moçambique, assistimos à da Somália e depois à do Ruanda, aonde se pratica, com toda a cobertura jornalística, um enorme genocídio; o próprio espectador já não se preocupa com estas questões, pois é permanentemente massacrado com notícias que o «Educam» nesse sentido. Não tenhamos, de resto, ilusões: as televisões, os jornais, a propaganda, a linguagem publicitária, «educam» com grande capacidade de acção, pois escolhem, seleccionam, dão ou tiram voz, «formatam» as suas audiências. O profissional da Educação não pode ignorar questões de ordem social e política pois "as convicções que podemos ter sobre o problema da educação cívica dependem das que tivermos sobre a educação em geral, sobre a sociedade e sobre política" 240.

As posições sergianas sobre Educação continuam actuais e podem ver-se expressas em inúmeros autores, dos nossos dias, que não se dizendo sergianos, as adoptam, pela razão de que estão correctas. A ligação entre Educação e Filosofia – tal como defendeu Sérgio, parece evidente num texto muito recente de José Ribeiro Dias: "O trinómio ensino-aprendizagem-estudo constitui a face mais visível do sistema escolar e apresenta um processo histórico complexo (...) a partir da emergência da Escola Nova e das pedagogias activas, vem-se pondo ao serviço da aprendizagem entendida como um processo de assimilação, organização e estruturação pessoal de conhecimentos, ou melhor, de todo o tipo de impressões recebidas do meio ambiente, adquiridas pela experiência e geradoras de modificações nas pautas de conduta do indivíduo. Ao trabalho de aprendizagem que é de per si natural e espontâneo, o estudo acrescenta o caracter de intencionalidade e sistematização, através de dedicação, empenho e esforço persistentes, orientados para a consecução de objectivos pré-fixados. No contexto das modernas pedagogias problematizadora e de projecto, vem-se aprofundando o sentido de ensino-aprendizagem-estudo: não se trata de aprender conhecimentos, reflexões, pensamentos, investigações ou resoluções alheias ou impessoais dos problemas, mas sim de aprender a aprender, a reflectir, a pensar, a investigar e a encontrar pessoalmente as soluções. Não se trata portanto de desenvolver a actividade de entender mas, através dela, a própria capacidade do entendimento" 241.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


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