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Nem Santos nem demônios. Imagem social e auto-imagem dos deficientes físicos em São Paulo (página 2)

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Um exemplo pode ser dado pela seguinte quadro :

Este quadro está intimamente ligado ao  fato de que em nossa cultura, a palavra "deficiente" tem um significado muito marcado e estigmatizante, fazendo com que os indivíduos tentem fugir dessa categoria, onde a aparência de normalidade ou a invisibilidade do desvio em relação à norma são o principal elemento de inclusão ou exclusão. Tem-se assim um quadro classificatório dos tipos de deficiências em relação à normalidade, que se relaciona a um segundo quadro em que a possibilidade de comunicação maior ou menor situa os indivíduos em melhores ou piores posições:

Um aspecto interessante a ser observado é a maneira como alguns deficientes vêem seu defeito. Um deficiente visual que tenha 5% de visão, por exemplo, não se considera cego; alguns deficientes auditivos deixam de usar o aparelho auditivo - embora ouçam muito melhor com ele - porque assim, dizem. conseguem passar por normais e sofrem menos tensões. Por outro lado, alguns deficientes físicos que andam apoiados em muletas dizem, muitas vezes, que "não andam", como se o fato de usar apoios descaracterizasse completamente o ato de andar. Este comportamento está relacionado especialmente a necessidade de parecer normal e, no caso do deficiente físico com as muletas, não negar a norma, o padrão, e parecer incapaz de enfrentar a realidade.

Os gregos, que tinham muito conhecimento sobre recursos visuais, criaram o termo estigma para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o "status" de quem os apresentava. Atualmente, o termo é amplamente usado de modo semelhante ao sentido literal original, mas tem sido mais usado para designar a própria marca do que à sua evidência física (GOFFMAN, 1982:16). No que diz respeito à deficiência física, os sinais corporais conotativos da diferença da "normalidade" são particularmente visíveis. Um olho opaco, uma perna que falta. Isso pode levar ao engano de se pensar que a natureza do estigma do deficiente é meramente física. Ao contrário, um estigma, que pode ser físico, é também morale é sempre uma marca socialmente imposta. As sociedades geralmente estabelecem uma série de categorias entre as pessoas, e dão os critérios para que a categorização possa ser feita: sexo, cor da pele, cor dos cabelos,altura, religião, classe social etc. Além disso, as sociedades definem a possibilidade de deparar cada uma destas categorias nos diversos ambientes sociais, e que relacionamento entre elas é possível acontecer. Qualquer pessoa que não caiba nas qualificações previstas ou que não esteja no lugar pré-determinado torna-se problemática e pode vir a ser socialmente marcada. Assim, um deficiente físico não é portador nato de um estigma. É o fato daquele tipo de corpo, de "diferença física", não ser aceito socialmente como normal que torna o seu portador uma pessoa estigmatizada. Em outros termos, o que é visto como problema e estigmatiza numa sociedade, pode não ter o mesmo sentido nem estigmatizar em outra.

 

Sobre corpos e regras

Todos os homens se defrontam, em todas as culturas, com a realidade do mundo que os cerca e, de alguma forma, elaboram os dados que obtêm da percepção da realidade. A percepção se dá a partir dos sentidos e, portanto. do corpo que cada homem possui.

"O corpo é a unidade máxima de representação do ser humano e por isso adquire importância para toda vida e cultura. Para viver é necessária a mediação do corpo, que é o primeiro dos objetos culturais, o portador dos comportamentos. Vive-se com o corpo. Toda percepção exterior é imediatamente sinônima de certa percepção do corpo, como toda percepção do corpo se explicita na linguagem da percepção exterior" (MERLEAU-PONTY,1971:15 grifos meus).

Quem, no entanto, ou o quê,  nos dá as fronteiras entre as imagens? Entre o ponto e o fundo, que a teoria gestaltista nos diz ser o dado mais simples que a percepção humana pode obter? Quem ou o quê nos mostra qual é o universo possível de percepções?

A verdade é que não existe, no sentido estrito, aquilo que se diz ser o "mundo real", já que o mundo é inconscientemente construído a partir de códigos da sociedade em sistemas de representação, que agem como uma espécie de grade classificatória sobre o mundo, sempre procurando organizá-lo, classificá-lo, codificá-lo e traduzir suas dimensões sensíveis em outras, inteligíveis. José Carlos Rodrigues, estudando os tabus referentes ao corpo, diz que os sistemas de representação de uma cultura são como uma rede, "cujas malhas instituem os domínios da experiência sobre um terreno antes indiferenciado e estabelecem os limites dos comportamentos dos indivíduos e grupos" (1983:12).

A existência de um sistema de representações que oferece sentido e ordenação ao mundo perceptível é o que se chama de cultura, ou seja, é aquilo que assegura a existência de um grupo humano como tal. Tudo o que foge à ordenação da cultura, tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, tudo que é intersticial e ambíguo, tudo o que é anômalo, tudo o que é desestruturado, pré-estruturado e antiestruturado, tudo o que está a meio caminho entre o que é próximo e previsível e o que está longínquo e fora de nossas preocupações, tudo o que está simultaneamente em nossa proximidade imediata e fora de nosso controle é germe de inquietação e terror: converte-se imediatamente em fonte de perigo. E o perigo é claro: negando a ordenação do mundo estabelecida pelo grupo, nega-se a experiência do próprio grupo.

Seguindo por este caminho, podemos perceber por que os deficientes são considerados tão diferentes e agrupados como se fossem parte de uma outra "etnia", de costumes desconhecidos e portanto até certo ponto capazes de surpreender os demais.  E,  ainda,  podemos compreender por que se espera que os deficientes apresentem um comportamento moral fora do comum, seja o de mártir sofredor resignado, espírito elevado pelo sofrimento, seja o de malévolo, amargurado e rancoroso, de espírito torturado pelo sofrimento, invejoso capaz dos piores atos de covardia. Pensa-se assim porque suas percepções são entendidas como diferentes, já que seu corpo é indubitavelmente "diferente". O corpo deficiente nega, sob vários aspectos, a própria cultura em que se insere. Mas este corpo deficiente existe e é concebido pelos não-deficientes como um instrumento inadequado para a mediação plena da vida, sendo portanto incapaz de perceber seu sentido total. Torna-se, assim, suspeito de ser um portador de comportamento capaz de surpreender. É quase como se o corpo deficiente não apreendesse o mundo (ou o apreendesse de modo diferente, o que o impediria de compartilhar códigos de comunicação com os não-deficientes) e suas explicitações fossem resultado de uma percepção distorcida. Como um espelho que deforma a imagem. Baseando-se nestas pré-concepções a sociedade as transforma em expectativas normativas, em exigências que aparecem de forma sistemática, ainda que ignoremos tal fato até que se apresente um momento em que esta questão se objetiva. Nestes momentos acontece o conflito entre os princípios classificatórios, o imaginário cultural veiculados pelas religiões, literatura, cinema etc e a concretude da experiência de contato entre o deficiente e o normal. Tentemos pensar estas questões focalizando os casos das deficiências visual e auditiva, que se encontram em diferentes pontos em nossas escalas de aparência e comunicabilidade e, portanto, de manipulação/aceitação durante as interações com pessoas não deficientes . 

 

Sobre visão e audição

Em primeiro lugar é preciso compreender o papel da visão e da audição em nossa cultura e, para isto, parece importante destacar, já de início, que o valor que se dá a estes dois sentidos na cultura ocidental não é um fenômeno universal, ou seja, compartilhado por toda a humanidade, como crê o senso comum. Vejamos, como exemplo o modo como a visão e audição são concebidas entre os índios brasileiros Suyá, estudados por Anthony Seeger.

Para os Suyá a visão é antitética à audição. Entre os Suyá, a fala e a audição são os sentidos mais valorizados e os mais elaborados simbolicamente. Por esta razão, as orelhas e os lábios são constantemente marcados de forma altamente simbólica por perfurações, por adornos, modificação (como é o caso dos discos labiais, dos adornos plumários e dos discos nas orelhas).

"Os Suyá definem-se como uma tribo diferente de outros grupos por usarem discos nos lábios e nas orelhas e por cantarem num estilo particular. Afirmam que nenhum outro grupo tem estes três atributos e por isso nenhum outro grupo é completamente humano" (SEEGER,1980:45).

Portanto, o uso da fala e da audição - dois sentidos complementares - é o que define os Suyá enquanto grupo."Os Suyá recebem informações com todos os sentidos, mas enfatizam  mais a audição e a fala como faculdades eminentemente sociais" (idem,.p.45). Como em qualquer cultura, é por meio da fala e da audição que se dá a socialização entre os Suyá. E pela fala que transmitem os códigos e as normas de conduta, que devem ser ouvidos e bem retidos. "Quando os Suyá aprendem alguma coisa, mesmo algo visual como por exemplo, um padrão de tecelagem, dizem 'está no meu ouvido'" (SEEGER,1980:47). 

Por ser a fala a dimensão mais eminentemente social, as partes do corpo que se relacionam a ela - os lábios e as orelhas (falar e ouvir) - são ornamentados, perfurados, deformados, marcados enfim. Aqui é preciso lembrar Pierre Clastres (1978:128) quando diz que "a sociedade imprime suas marcas no corpo dos jovens (...) o corpo é uma memória". No caso dos Suyá, essa marca é feita justamente nos pontos do corpo onde estão os sentidos privilegiados.

Já a visão tem, para os Suyá do Xingu, um papel secundário. Mais, até: um papel perigoso, desviante:

"Homens, mulheres e crianças são socialmente definidos pela audição e fala, e os feiticeiros pela sua visão extraordinária" (SEEGER,1980:45)

Os atributos de uma boa visão são usados para qualificar os animais e, por extensão, as atitudes que fogem ao controle social, como a dos feiticeiros. Uma pessoa torna-se feiticeira quando o feitiço invisível entra nos seus olhos, o que acontece somente com certas pessoas e em circunstâncias especiais. 

"A 'coisa' nos olhos permite à pessoa literalmente 'ver tudo'.Pode olhar para cima e ver a aldeia dos mortos no céu; pode olhar para baixo e ver as fogueiras das pessoas que moram debaixo da terra e podem olhar à volta e ver índios inimigos nas tribos distantes. O feitiço nem é congênito nem é herdado. Só entra no olho de alguma pessoa que está de alguma forma 'añi mbai kidi', está em perigo de se tornar feiticeira" .(SEEGER, 180:47).

Como a visão não é valorizada de maneira especial, é claro que aos olhos não se dá nenhum adorno  por ocasião de festas ou mesmo no dia-a-dia. A importância reduzida da visão é tão clara que, em festas, onde o canto é extremamente valorizado, só ouvir é suficiente. Ou seja: "entre os Suyá a visão é antitética à audição e à moral" (SEEGER, 980:56), não tendo importância no aprendizado social. A visão só tem significado simbólico ligado à feitiçaria, ao que é imoral e amoral. 

Na cultura ocidental, a audição, também tem um grande valor pois, como entre os Suyá, está diretamente ligada à transmissão dos valores culturais da sociedade. Isto pode ser observado, por  exemplo, nos Provérbios, um dos livros da Bíblia, um dos pilares da cultura ocidental

"Escuta, meu filho, a disciplina de teu pai, não desprezes a instrução de tua mãe [...]." (Provérbios,1,8 grifos meus).

"Se aceitares, meu filho, minhas palavras, e conservares os meus preceitos, dando ouvidos à sabedoria e inclinando teu coração à prudência [...]." (Provérbios, 2, 1 grifos meus)

"Meu filho, escuta e recebe minhas palavras e serão longos os anos de tua vida" (Provérbios. 4, 10,  grifos meus).

"Meu filho, sê atento às minhas palavras, dá ouvidos às minhas sentenças. Não se afastem os teus olhos. Guarda-as dentro do coração" (Provérbios. 4,20-24, grifos meus)

As passagens bíblicas igualam ouvir a obedecer e no que concerne à linguagem o importante a ressaltar é que a surdez dificulta a comunicação, distanciando o homem da característica que o distingue de outros animais. Também quando dizemos "você parece surdo", estamos nos referindo a uma pessoa que não obedece, que não segue corretamente as instruções dadas. Talvez por isto se diga que a surdez é "pior" que a cegueira. O cego deixa de aproveitar certos aspectos do mundo concreto, mas não perde comunicação com os demais.

A audição tem importância fundamental exatamente por estar relacionada à fala e portanto à linguagem. Esta, evidentemente é uma situação universal, pois todas as culturas humanas apresentam linguagem oral. Sendo a audição um meio essencial para a aquisição e uso da linguagem, ela é um sentido essencial  à socialização de qualquer ser humano. Sob este aspecto é que a surdez passa a ser entendida como especialmente dramática quando ocorre na infância, já que ela dificulta a inserção e adaptação ao meio social. Poderíamos dizer, no entanto, que se a audição não fosse o canal fundamental para a aquisição da linguagem, déficits nessa área trariam prejuízos mínimos, comparáveis à perda da capacidade olfativa ou gustativa. Isto é, o homem se utiliza muito pouco de informações auditivas diretas e não simbólicas. Assim, se for possível superar os prejuízos de comunicação oral ocasionados pela deficiência de audição, será possível integrar o deficiente auditivo no meio social.

Por sua vez, a importância da visão em relação à audição nas culturas de tradição ocidental é bem diversa da que é dada, por exemplo, na cultura Suyá. Se a audição ocupa em ambas uma posição de destaque como transmissora da cultura, a mesma proximidade não se dá em relação à visão. Ao contrário da sociedade Suyá, na sociedade ocidental a visão tem extrema importância, embora lhe seja reservado um caráter ambíguo. Tanto é assim que a maioria das artes ocidentals é predominantemente visual. Mesmo a música, arte feita para ser ouvida, vem adquirindo um plano visual através da vídeo-música, dos vídeoclips. A própria linguagem, inclusive, adquiriu um plano visual, a escrita, que exige decodificação visual.

Também ao contrário dos Suyá, os olhos são, para os ocidentais, uma parte do corpo valorizada e privilegiada. Os olhos são um espaço do corpo constantemente adornado e seletivamente exposto ou protegido conforme se deseje ou não expor a própria pessoa, pois se pensa que "os olhos são o espelho da alma". Os olhos são os órgãos que podem trazer imediatamente informações à mente e, por este motivo, extremamente privilegiados no quadro simbólico onde se encontram os sentidos. Como os contatos interpessoais dentro do ambiente urbano são marcados pela funcionalidade e eficiência com que possam se dar, a necessidade de um acesso rápido à informação é entendida como essencial. Nesse contexto, as informações visuais são necessárias e vitais, pois são as formas mais rápidas de absorção das informações.

A visão, porém, apresenta caráter ambíguo: do mesmo modo que pode absorver informações precisas e extensas (no sentido de corresponder à realidade), pode também elaborar  ilusões, falsas impressões e até mesmo impressões não classificáveis nas categorias estabelecidas pela cultura. Informações falsas e "erros" ocorrem facilmente, já que o aspecto exterior de uma coisa ou de uma pessoa não revela o mecanismo interno que a rege. Nossa cultura admite isto. Basta lembrarmos do ditado: "quem vê cara não vê coração".

As percepções não-classificadas nos padrões culturais costumam ser absorvidas e incorporadas no plano da visão. "É o fato de ver um fantasma que produz medo. É o fato de ver o impossível realizado num milagre que produz a conversão nos presentes, enquanto que aqueles que ouvem falar do fato freqüentemente nele não acreditam" (SEEGER , 1980:57). Exemplos destes dois tipos de "percepções não-classificadas" são encontrados na literatura clássica mundial. Tomemos como exemplo, aqui, a Bíblia, a peça teatral de Shakespeare, "Hamlet" e a tragédia grega "Édipo Rei", de Sófocles.

"Bem sabe Deus, eu não podia acreditar faltando a garantia sensitiva e exata destes meus olhos" (Fala de Horácio, amigo de Hamlet, no X ato da peça de Shakespeare, ao ver o fantasma do pai de Hamlet).

"Um dos doze, Thomé, [...] não estava com eles quando veio Jesus. Os outros discípulos então lhe disseram: `vimos o Senhor'. Mas ele lhes disse: `se eu não vir em suas mãos o lugar dos cravos e se não puser meu dedo no lugar dos cravos e minha mão no seu lado, não acreditarei'.[...] Jesus veio e [...] disse depois a Thomé: `põe o teu dedo aqui e vê minhas mãos; estende a tua mão e põe-na no meu lado e não sejas incrédulo, mas acredita!'. Responde-lhe Thomé: `meu Senhor e meu Deus!'. Jesus lhe disse: `porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram'." (Evangelho de -são João, cap.20,versículos 24-29).

Lembremos ainda que proezas consideradas impossíveis ou muito improváveis, como atos de heroísmo ou fenômenos de difícil explicação ou compreensão tomam nova cor e credibilidade quando existem referências à visão dos fenômenos ou à existência de testemunhas oculares.

Os dois predicados principais da visão - o de ser um sentido muito usado na vida cotidiana como fonte de informações imediatas, necessárias ao convívio social e o de ser a principal forma de acesso ao mundo e ao prazer estético, são utilizados para pensar e rotular a deficiência  visual. No Ocidente o indivíduo cego é pensado, desde a Antiguidade, como portador, juntamente com sua  deficiência, do caráter de um "escolhido", mediador entre os deuses e os homens, alguém que "vê" além das aparências porque tem uma "outra visão", mais penetrante e mais precisa. Ou o caráter de um "condenado", que deve expiar sua culpa pela privação do prazer de ver e receber informações que os "normais" e não "culpados" de nenhum pecado ou crime que merecesse tal punição experimentam cotidianamente. O cego é visto como "divino" ou "incapaz". Semideus ou "bicho-ruim". Um exemplo do que estamos dizendo está contido na tragédia Édipo.

Observemos, em primeiro lugar, o caso do cego Tirésias. A ele é dado, primeiramente, o caráter positivo da cegueira, o caráter de "vidente espiritual", de capaz de ver até mesmo o futuro. Sua imagem mudará, contudo, conforme mudam as circunstâncias ou contexto em que ele se insere como cego. Vejamos o que diz Corifeu sobre Tirésias quando este é chamado a solucionar o enigma da desgraça que ocorre em Tebas e seu significado.

Corifeu - Mas está aí quem pode descobrir o criminoso! Afinal trazem o vidente iluminado! Se algum mortal tem acesso à verdade, é ele!

Édipo - Tirésias! Tu que tudo percebes, do mais claro ao mais denso dos mistérios, alto nos céus ou rasteiro na terra, tu hás de sentir, mesmo sem poder ver, a desgraça que assola a cidade..." (pg.22).

Este caráter é reforçado pelo próprio Tirésias que, ao mesmo tempo em que o justifica, indica a possibilidade de erro da visão. Quando ele declara que Édipo vive em pecado, maritalmente, com sua mãe, Édipo inverte sua perspectiva e humilha Tirésias. Este, defende-se apontando a "pobreza" da visão diante da "cegueira" do espírito.

Tirésias - Digo que tu, sem o saberes, coabitas com gente tua em sórdida concupiscência e nem percebes a ignomínia a que chegastes!

Édipo - Pensas que vais continuar falando assim impunemente?

Tirésias - Se algum valor tem a verdade, sim.

Édipo - Tem. Mas não para ti, pobre coitado! Cego dos olhos, dos ouvidos e do espírito!

Tirésias - Tu és o rei, mas o direito manda que de igual para igual eu te responda. O que é um direito! Um privilégio meu! Não é a ti que eu sirvo e sim a um deus! Nunca estive a serviço de Creonte! E eu a ti digo, já que me ofendes por minha cegueira: os dois olhos que tens pouco adiantam, pois não vês a miséria que te cerca, nem a casa em que vives, nem com quem...Sabes, ao menos, de quem és nascido ? (pg.29).

Ao saber que vivia incestuosamente com a própria mãe, Édipo impõe-se o que considera o maior dos castigos, como punição: a cegueira,. que surge assim como expiação de seu "pecado", ao mesmo que lhe serve de refúgio  para não ter de enfrentar a vergonha diante do mundo que o acusará.

Édipo - Maldito aquele que na montanha desprendeu meus pés e me salvou [...] se lá me tivesse abandonado pouparia todo esse sofrimento a mim e à minha gente! [...] Eu não viria a assassinar meu pai nem seria culpado como amante da criatura que me pôs no mundo [...] Se existe um mal maior que o próprio mal, esse é o quinhão de Édipo!

Coro - Não sei dizer se agiste sabiamente... morto estarias melhor do que cego!

Édipo - Não me venhais dizer que não fiz bem assim. Já não careço de conselhos. Se eu ainda enxergasse, com que olhos fitaria meu pai ou minha mãe, entre os mortos, depois de cometer tais crimes contra os dois, crimes que nem na forca estariam bem pagos? [...] Ver meus filhos não me alegraria, nem mais a cidade com seus muros, seus templos e as imagens de seus deuses? [...] como iria eu olhar de frente o povo? Não! E se ainda soubesse de algum meio de fazer silêncio nos ouvidos eu vedaria ainda mais por completo esta triste carcaça - e me faria, além de cego, inteiramente surdo! (pp.82-84).

Como se vê nesta fala de Édipo, a cegueira e a surdez são pensadas como fatores de distanciamento do indivíduo da vida social. E mesmo neste sentido a ambigüidade se mantém, pois se por um lado, são vistas como defeito, por outro também podem ser entendidas como virtudes, quando se pensa que este distanciamento permite ao deficiente "viver" numa outra realidade, outro mundo, o das percepções extra-sensoriais.

 

Sobre deficiência e papéis

O maior problema social da deficiência pode ser o que ela representa para o projeto de vida do indivíduo. Espera-se do ser humano normal que cumpra com êxito os papéis pré-determinados pela sociedade. Um lugar de destaque na profissão, casamento e uma família "bem organizada" servem como exemplo deste "êxito" para o senso comum. A questão é que esse mesmo senso comum veta ou diminui muito as chances deste "sucesso" para os deficientes, ao transforma-los em "gênios", "heróis" ou "rochas de coragem", - seres ainda assim destituídos da normalidade - os deficientes que conseguem ser "bem sucedidos"  e em complexados, fracassados, incapazes os que não atingem os objetivos propostos pela cultura a seus membros.

Se em nossa sociedade a visão é um sentido valorizado e privilegiado; conseqüentemente, aparência pessoal é um fator decisivo nas relações. Para os portadores de deficiência as possibilidades de relacionamento são bastante diminuídas a princípio, pois sua "diferença" é bastante reforçada pela aparência e posturas corporais. Para os deficientes físicos  a situação é ainda mais crítica que para os demais, já que seu "defeito" é inocultável. Ao vermos uma pessoa numa cadeira de rodas é muito difícil que a associação imediata ao adjetivo "aleijado " e tudo que ela significa culturalmente deixe de acontecer. O mesmo acontece ao estendermos a mão para uma pessoa sem um braço. Estas situações são tensas para ambos os lados - normal e deficiente - o que faz com que alguns deficientes tenham uma "piada" a respeito da deficiência para quebrar a tensão. Isso acontece porque o confronto visual, no caso dos deficientes físicos é imediato e principalmente visual. No limite, é um contato carregado de "primeira impressão".

"Eu costumo quebrar o mal estar dizendo que um cara ali atrás me pediu uma mãozinha e ainda não devolveu" (Marco, 34, amputado do braço direito).

Para os cegos, é a questão da postura corporal a mais forte, pois um conjunto de práticas gestuais, ainda que relacionadas às necessidades biológicas, são socialmente aprendidas por meio de imitação, que é um mecanismo basicamente visual. Sentar, andar, falar, segurar, puxar, mastigar, beber, beijar, acariciar etc. são exemplos de práticas do corpo que têm suas formas decodificadas e transmitidas de um modo pouco acessível para os cegos.

"Em todos esses elementos da arte de utilizar o corpo humano os fatos da educação dominam. A noção de educação poderia sobrepor-se à noção de imitação. Pois há crianças em particular que têm faculdades muito grandes de imitação, outras que as têm bem fracas, mas todas passam pela mesma educação, de sorte que podemos compreender a seqüência dos encadeamentos. O que se passa é uma imitação prodigiosa. A criança, como o adulto, imita atos que obtiveram êxito e que ela viu serem bem sucedidos em pessoas que têm autoridade sobre ela. O ato impõe-se fora, do alto, ainda que seja um ato exclusivamente biológico e concernente ao corpo. O indivíduo toma emprestada a série de movimentos de que se compõe o ato executado à sua frente ou com ele pelos outros" (MAUSS, 1974:215).

Já o caso dos deficientes auditivos é diferente. Eles não são, à primeira vista, identificados como deficientes. Podem caminhar pelas ruas tranqüilamente, tomar um ônibus sem que lhe "cedam lugar", sem se tornar objeto da compaixão pública. Sua deficiência só se manifesta quando são exigidos a se comunicar e, mesmo assim, ela pode ser dissimulada, como nos casos em que o surdo fala ou consegue se fazer passar por normal, assumindo o comportamento de alguém que "finge" não ouvir, de uma pessoa "desatenta" ou esnobe, mal educada. Só é manifesto o caso em que o deficiente auditivo usa o aparelho de audição de modo muito visível, o que vem se tornando cada vez mais raro com a descoberta dos chips que permitem reduzi-los cada vez mais. Ou, ainda, quando o grau de surdez não permite o uso de aparelho e o surdo é obrigado a se comunicar. De qualquer modo, a administração da informação para qualquer deficiente faz parte da construção de suas relações e portanto de sua identidade cultural,social, e pessoal.

 

Sobre a Identidade Pessoal

Por ser visivelmente manifesta, a diferença dos deficientes é um elemento absolutamente essencial para a construção do que Goffman (1982:116) chama de "Identidade Pessoal". A identidade pessoal,  construída pelos outros, é a imagem que as pessoas têm sobre o indivíduo deficiente. Essa imagem criada e que pode não corresponder (e em geral não corresponde) à realidade, influi fortemente no relacionamento do estigmatizado com as pessoas que ele encontra cotidianamente, pois não são todas que o conhecem pessoalmente ou têm informações suficientes a respeito de sua deficiência para tratá-lo em vista de sua pessoa e não em vista do estereótipo da deficiência.

O próprio indivíduo também tem uma auto-imagem, nomeada por Goffman de "Identidade do Eu" (Goffman, 1982:41;44), que em geral é construída com os elementos que o senso comum usa para montar o quadro da identidade pessoal. Mas estes elementos podem ser combinados de modo a resultar numa elaboração final mais coerente com a real dimensão da deficiência. Se essa auto-imagem, ao formar-se, for muito influenciada pelo senso comum, o indivíduo corre o risco de introjetar em si os mesmos preconceitos que a sociedade tem em relação a ele (passando a ter preconceito contra si mesmo) resultando, não raro, em insegurança e angústia profunda.

A identidade do eu e a identidade pessoal do deficiente, sua auto-imagem enfim, dependem muito do modo pelo qual o indivíduo adquiriu a deficiência. Segundo Goffman (1982), três modelos de "carreiras morais" ou tipos básicos de história de vida podem ser identificadas entre pessoas deficientes:

  • os que têm uma deficiência congênita e são socializados dentro de uma situação de desvantagem;
  • · os que têm uma deficiência congênita e são socializados dentro de uma situação de proteção (dentro de uma cápsula protetora);
  • · os que adquirem a deficiência muito tarde (depois da fase de socialização). 

De todos esses tipos de história de vida, as que incluem a socialização dentro da deficiência são aquelas em que as funções da família e da educação são essenciais para que a criança possa se inserir no meio social com um mínimo de tensões. No segundo modelo, em que há a socialização dentro de uma situação de proteção é o caso onde a atuação da família e da instituição educativa são nefastos, pois leva a uma "cristalização" da deficiência (o fechamento do deficiente dentro de um mundo irreal) com a possibilidade de tensões máximas quando do contato deste deficiente com o mundo exterior. Para os que adquirem a deficiência depois de socializados (terceiro modelo) já houve tempo e condições para que houvesse a aquisição de certos preconceitos contra deficientes. Será preciso superá-los, mas será mais difícil, pois ele tenderá a ver a si próprio como costumava ver o outro. A maior dificuldade, contudo, parece ser a adaptação à nova condição, processo onde existe grande responsabilidade, ainda, por parte da família e da instituição de reabilitação.

Qualquer que seja a forma pela qual o indivíduo tenha adquirido a deficiência, ela tem profundas implicações psicológicas. Desde a rejeição pura e simples até a dificuldade de elaborar a própria diferença em relação aos outros. O aspecto social, juntamente com o psicológico e o biológico forma um tripé  sobre o qual se apóia a experiência vivida de cada pessoa, deficiente ou não. Deve-se mencionar que o deficiente não precisa administrar o estigma no mesmo nível o tempo todo. Fundamentalmente, o trato  com o estigma que gera os maiores problemas acontece na vida pública, no relacionamento com pessoas estranhas ou meras "conhecidas". O deficiente pode se confrontar com sua identidade de "desviante" no momento em que lhe é negado um emprego (nem sempre por causa de sua deficiência, é claro, mas isto será sempre uma interrogação, como nos demais fracassos) ou acesso a determinado cargo, área do conhecimento ou durante as relações amorosas . Nas relações íntimas, com pessoas mais conhecidas, o estigma não conta decisivamente. Como as relações em nível afetivo/amoroso têm muito peso (e dificuldades) para os deficientes, sua noção de pessoa e sua auto-estima estão intimamente relacionadas com a possibilidade de serem aceitos como parceiros nas relações afetivas. A relação entre noção de pessoa e lógica de conduta é dual -entre físico e psicológico, individual e social, corpo e alma. Esta concepção surge de fora para dentro. Sua identidade, portanto, é aprendida, construída a partir de papéis conflitivos entre sua auto-imagem e sua imagem social.

Poderíamos dizer  que o cotidiano de relações de uma pessoa deficiente, seja qual for o tipo de sua deficiência, faz parte de um "continuum" entre dois extremos, ou seja, a relação com o completo desconhecido, onde o estigma aflora com toda a sua força, chegando até a relação com o conhecido onde a afeição e a compreensão são o que realmente conta. Ela não é e nem quer ser vista como inferior, incapaz, má ou invejosa, nem também como superior, iluminada ou santo suportando na carne o sofrimento que edifica. Assim, também com relação ao conhecimento da deficiência  pelos não deficientes podemos estabelecer um continuum em  que quanto mais familiar e conhecidos são a deficiência e o deficiente, mais se dilui o estigma e mais o portador é percebido como uma pessoa comum.

 

A familiaridade mostra que pessoas deficientes não são piores nem melhores que as outras em razão de sua deficiência – apenas diferentes - e são capazes de olhar para a vida incluindo nela sua condição de deficiente. Como a identidade se constrói contrastivamente, é em cada relação que os indivíduos se constroem, sendo bons ou não, leais ou não, santos ou malditos.

 

Conclusão

O que desejamos mostrar aqui foi que o quadro completo da deficiência e do deficiente não se define apenas por um conjunto de possibilidades dadas pelo corpo, como a capacidade de cegos serem digitadores e não poderem ser motoristas de táxi, por exemplo. Evidentemente, o aspecto biológico influi e pode mesmo determinar certas situações na vida de um deficiente. Mas a grande carga simbólica só pode ser dada pelo aspecto cultural. Com o que podemos concluir que em terra de cego, nem sempre quem tem um olho é rei. Pode ser feiticeiro; vidente iluminado. Ou maldito. Depende.

O que se observa é que a questão da identidade do deficiente, apesar de ser constantemente justificada pela dimensão biológica, é, na verdade, fortemente influenciada pela dimensão cultural. Não se deve, é claro, confundir essa influência com um determinismo cultural. A questão da deficiência deve ser tratada sob o ponto de vista do "homem total". Quando dizemos que o social dá uma grande contribuição na definição da identidade do deficiente não estamos querendo afirmar nenhum determinismo social e nem dizer que as sociedades são rigidamente organizadas, sem nenhum espaço para qualquer desviante. É claro que qualquer "desviante" da "normalidade" em qualquer sociedade, seja a Suyá, seja a ocidental, não é inserido nos grupos e padrões sociais sem tensões. Existem indivíduos que não aceitam tais critérios e até mesmo forçam as sociedades a reelaborá-los, como acontece com os homossexuais , como aconteceu com os judeus e as mulheres e como vêm fazendo os negros e deficientes ultimamente. É preciso deixar claro que as sociedades são realidades vivas e, portanto, dinâmicas, sempre sujeitas a tensões e ajustes que tentam dar conta dos problemas concretos e históricos que se lhes apresentam.

 Bibliografia

  • Bíblia de Jerusalém - São Paulo, Edições Paulinas, s/d.
  • CLASTRES, Pierre. - A sociedade contra o Estado. - -Rio de Janeiro, -Francisco Alves Editora, 1978.
  • DIDEROT, D. - Carta sobre os cegos. in: Textos Escolhidos - São Paulo, Abril Cultural, 1979.
  • GODINHO, E. - Surdez e significado social. - São Paulo, Cortez Editora, s/d.
  • GOFFMAN, E. - Estigma - notas sobre a manipulação da identidade deteriorada - Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1982.
  • MAUSS, Marcel. - Antropologia e Sociologia - São Paulo, EPU, 1974.
  • MERLEAU-PONTY, M. - Fenomenologia da percepção. - Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos,1971.
  • RODRIGUES, José Carlos. - -Tabu do corpo - Rio de Janeiro, Ed. Achiamé, 1983.
  • SEEGER, Anthony. - Os índios e nós. Estudos sobre sociedades tribais brasileiras. - Rio de Janeiro, 1980.
  • SHAKESPEARE, W. - Hamlet - São Paulo, Abril Cultural, 1976.
  • SÓFOCLES - Édipo Rei --São Paulo, Abril Cultural, 1976.

 

(*) Os Urbanitas - REVISTA DIGITAL DE ANTROPOLOGIA URBANA :::::: ISSN: 1806-0528 

Rita Amaral  e Antônio Carlos Coelho 
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