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Poemas mágicos (página 3)

Igor Zanoni Constant Carneiro Leão
Partes: 1, 2, 3

Manhã

os ônibus passando

estremecem o solo do bairro

sob o sol os passarinhos

cantam e ciscam risonhos

a louça na pia grita

em tins de vidro e alumínio

tudo soa tudo quer viver

e nós também

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Mar

eu descerei o rio

que passa na minha aldeia

até o grande porto que dá saída

para o imenso mar

com os instrumentos que testarei

e que eu mesmo fabriquei

imaginando o mar

vendo correr o rio de minha aldeia

hei de ver o mundo como puder

como suponho

mas deixarei olhos para a maravilha

o inesperado que exalta

e pode enlouquecer quando se vê

uma imagem em algo

subitamente novo

e mesmo que eu torne um dia

à minha aldeia

sei que na verdade o retorno

é impossível

e que serei bem outro

e já sem berço em minha aldeia

terei todo o mundo para pouso

e os meus sonhos serão a imagem

dos sonhos desse grande mundo

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Margarida

você não decide

se bem me quer ou mal me quer

na dúvida se desnuda

restando apenas um coração

amarelo à mostra

espalhada pelo chão

o vento leva você onde bem quer

mas a empregada que quer

a varanda limpa

empunha a vassoura

como um insano quixote

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Materiais do mundo

a massa de pão fermentando

e o cimento fresco

têm em comum serem materiais

de construção do homem e do mundo

limpos como mãos de médico

cheirosos como bebês no banho

perfeitos como o ovo e a laranja

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Maturidade

na idade madura quase sempre

pensamos saber como agiremos

nas contingências da vida

quando essa ilusão se dissipa

pela violência das emoções

e não podemos ter o contrapeso

da juventude

culpamo-nos amargos ou deliciados

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Mendigo

o belo tem de ser recolhido

com as mãos postas

entre os restos recicláveis de lixo

desde há muito acumulamos

civilização demais

ela é estranha dá medo

a nossa tragédia se cumpriu

o bom e o racional morreram

de excessos

agora é preciso refazer os votos

com a vida

erguer as mãos recolhendo

os restos de beleza e de bem

perdidos na fala e nos gestos

de cada dia

enquanto é dia

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Minas

o pior são as saudades de Minas

a Minas de Pedro Nava

da formação mineira

de onde se lança para o Brasil

e para o mundo

com um conhecimento prévio

de seu núcleo mineiro

a vontade de novamente

ouvir os poetas e músicos lá

e de madrugada mijar tranqüilo

nos muros

com a sensação de que já realizou

metade de sua tarefa na vida

quem conhece o seu coração

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Mingau

você é doce

quente e macia como mingau

de maizena

adoro você antes de dormir

ou quando estou neurótico

zanzando pela casa

sem porto

você me conforta

preenche meu vazio existencial

eu me acostumei

a ver você como indispensável

à minha felicidade

como as mães e as avós

só não posso viver de mingau

não é bom para a saúde

e um dia eu tenho de crescer

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Monge

não há quem mais se vote

à vitória que o humilde monge

andando no mundo

pelas mãos dos seus pobres

para eles é o reino de Deus

mesmo que tudo falhe

o Senhor chora com eles

o seu próprio morrer

é o princípio de uma vida

mais alta e infinita

mas também conhecem

a felicidade banal

dos homens simples porque

para eles é também a vida

deste mundo

seu pão e seu vinho

feitos de agora e de amanhã

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Motivação

no jogo do brasileirão o papo no intervalo

quer motivar os jogadores a virar o jogo

na luta contra o crime o bope

avisa seus soldados que o erro

se paga com a vida

na igreja católica ou evangélica

a conversa é motivação

para ganhar saúde e arranjar emprego

todos cantam rezam juntos

dão tiros para cima

falam na língua dos anjos

falou mano

antes se chamava isso voluntarismo

esse jogo vai dar empate

como devem dar os jogos

do campeonato baiano

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Muitos

todos os seres participam

da vida uns dos outros

de modo que todos são muitos

todos são todos

e querem seu lugar em cada um

quando à noite pensamos na noite

pensamos também no dia

e em sua bagagem

pensamos nas miríades de insignificâncias

que nos compõem

todas querendo seu lugar

querendo ser a primeira

pensamos também no que é grave

e importante

e no que é alegre e faz sempre falta

e tudo está em tudo

que cada um é o mundo

e o mundo é essa dispersão

sorrateira e constante

essa água no córrego

essa batida de moinho

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Mulher

o primeiro traço

a distinguir uma mulher

é a sua inteligência

mesmo as feias ficam lindas

com dez minutos de conversa

se são inteligentes

da mulher guardamos na memória

observações interessantes

o humor da fala bem medida

e bem endereçada

desde que não seja também

muito conservadora

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Mãos

o mundo oscila

seguremos nossas mãos

nada deve ser mais seguro

que nossas mãos

com os corpos próximos

respiremos tranqüilos

o incerto ar

nada é mais precioso

que os nossos corpos

enlaçados não esperemos

andemos no chão que treme

firmes serenos

façamos nosso caminho

nesse meio

façamos de nós nosso fim

e nosso meio

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Noite do meu bem

viva uma vez na vida

a noite do seu bem

mesmo que ele demore a chegar

traga-o com o olhar

e a ternura toda que tem para dar

invente esse bem

invente toda a beleza do mundo

em uma noite profunda

na qual coloque toda a exatidão

da rosa rosa rosa

muitos passam sem esse bem a vida

equívoca e sublimada

para essa rosa viva uma vez

a vida vida vida

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Noite

noite inquieta

o olho vara a imprecisa

fantasmagoria dos dias

lacuna forçada que se quer recusar

pois se deseja sonhar

mas é preciso vigiar

como o farol inútil

num rochedo perto do qual

nenhum navio passa

vigia-se em vão

atormentado com os naufrágios

que não se sabe se virão

talvez não talvez não

gemem as ondas quebrando

nas rochas

quem sabe quem sabe

o olho o suor o medo

é sempre a fantasia de que é preciso

conjurar perigos

de que é possível

ronda a cabeça o giro torpe

dos que querem se salvar

num mundo onde salvação e perdição

não têm mais sentido

e se quer salvar não se sabe bem

o quê

já não se sabe mais fazer

o inventário dos males

a conta certa

o telefonema salvador

e não se pode esperar

nem deixar a esperança

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Nomes

na maior parte do tempo

conhecemos os nomes e as palavras

mas não sabemos do que se trata

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Nordestinos

quem é nordestino não precisa

explicar nada

tem toda a enorme vida do Nordeste

a matriz brasileira política e cultural

por detrás de si

quem é paulista precisa ser modernista

buscar o mundo

mas quem é nordestino está em casa

até os seus jeitos moderno ou conservador

mesclam-se e cantam de um jeito parecido

com gula de doce e de forró

e não precisa explicar nada

porque um nordestino nota-se logo

na rua e em qualquer sala

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Novela

alguém de muitas letras

tem vários porões

para os quais escapa

quando não quer ser percebido

em suas deficiências

alguém de poucas luzes

pensa sempre que sua vida

daria um romance

quando apenas é falsificada

nas novelas da tevê

ou em tom mais sórdido

é apresentada nos jornais

em qualquer sala

mas sempre oculta

ou obscurecida

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O Fundo do Ser

onde está o fundo de ser

começa nestas mãos

que escrevem este poema

continuam no poema

no que a mente pôde fazer

por ele

espalha-se na sala

nas frutas sobre a mesa

no gato que circula

esperando a noite

no fundo do ser há um mundo

um para todos nós

um para cada um de nós

um para cada dia

um que dura toda a vida

é estranho esquecermos tanto

o passado

ele é o depósito de todos nós

de nossos seres profundos

perdidos com as salas

que esquecemos

com as frutas comidas

com outros gatos de casa

mas o verdadeiro fundo do ser

vem vindo

um dia virá

que venha logo!

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Oração

e não nos deixeis cair em tentação

que apresenta o mal como o bem

mais útil e necessário

mas livrai-nos do mal

porque esta foi a busca

dos melhores dentre nós

mesmo dos que suspeitavam dele

com a candidez socrática

de que a virtude é inerente

à razão e à sabedoria

e imaginavam o mundo

como a Atenas da amizade

e dos banquetes sobre o amor

e a virtude

e não como a exaustão

de tanto quanto foi belo

e inocente e bom

neste mundo absurdo

por sua insensatez tão imprópria

ao sentido da vida

e do cosmo

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Padrão

1

da Vinci não foi um gênio

mas antes um padrão pelo qual

medem-se os gênios

há no ar que nos envolve

pessoas extraordinárias

muito acima de nós

mas de repente nos agarram

pelos cabelos

e nos tornamos por um momento

um pouco como elas

assim o pintor humilde

faz a primorosa aquarela

e o homem mau e sovina

cansa-se de repente

e torna-se humilde apenas

alguém que vem

2

há canções tão belas!

é duro ouvi-las

melhor deixar no invólucro

dos seus discos

olhá-las saber que estão lá

mas ouvi-las

não se pode muito

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Pai

meu pai usava palavras

do seu ofício

jaleco amálgama cafua

e tinha gestos duros

como o de dar cascudos

nos filhos

fazia como aprendia

eu penso nos meus gestos

e nas minhas palavras

no que eu aprendo e faço

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Paisagem

paisagem instável

as rosas florescem fora de lugar

e aves se calam no nascer do dia

o rio bóia sua lenta eterna descida

para o mar cada dia mais pobre

da vida que nos pariu

paisagem flutuante

da janela a cidade me cerca

entra na minha casa

pelo preço módico dos incômodos

e das inconveniências

minha vida é uma pista

pedestres cruzam carros atravessam

as preferenciais que criam

telefones cobram atrasos

dizem que tudo vai bem

que está melhor

os bois estão gordos

o feijão caro

e as faculdades particulares

ensinando mal em elevadas prestações

paisagem inútil

o amor tomou o elevador de serviço

eu humilde tomo meu balde

e meus panos de chão

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Palavras

o que me surpreende palavras

é não terem despido minha alma

não terem dito à última gota

em vãs tentativas de fazê-las florir

tolher atravancar dispor propor

isto que nunca saberemos

pois só somos meio falantes

meio poetas meio demônios

provincianos

meio piratas venusianos

o resto a ninguém pertence

eternamente falta

esse sinal obstinado de menos

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Parabelo

parabelo

litania punk de Tom Zé

porém nordestemente dançável

como um choro para vivos e mortos

os messias os bandidos do semi-árido

o povo apegado a rezas

corpo fechado enfrentando o status-quo

feiras de cego violeiro

de padres pais de família

tudo canta o mesmo som

o sangue que não adormece

de tão quente e precisado

nostalgia de quê?

do futuro

Canudos Pedra Bonita

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Passagem

da passagem de alguém

por nossa vida pode restar

um breve traço

um gesto de mão um modo de rir

um livro que se empresta

uma casa diferente onde se almoça

um dia conversando temas adolescentes

são passagens para a vida

fímbrias de horizontes

que não se esgotam apesar de tão exíguas

são traços da sensibilidade

que se forma tão cedo

graças a esses espectros inolvidáveis

um nome um jogo um brinquedo

uma doença uma morte prematura

e a amizade que ainda

não se perdeu

entre a obscuridade do passado

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Passos

assim como um violonista

distingue a nota de cada corda

em casa se aprende a distinguir

o som de cada porta que se abre

os passos de cada um que entra

o barulho que cada um faz ao comer

ou ao mover-se descuidado

o sentimento e o sentido por trás

de cada fala

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Pecados

pelos pecados que cometi

íntegro e de boa mente

perdoai-me três vezes

três vezes Senhor

amém

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Perda

quem se perde dos outros

se perde do mundo

se perde de si

e não encontra na vida

um caminho

a vida se torna uma imitação

dos dias circulares

de desejos paralelos

que ídolos cruéis impõem

ainda vivemos em dias

nos quais temos de abrir

caminhos

e obrigam a cuidados solícitos

a tecer direções

a despir as figuras de anjos

que preservam um mundo

que já não é bom

e pede homens amorosos

_________________________________________________________________________

Perdas

a vida se perde no que é

à primeira vista sem importância

no imponderável

o que a alma não tolera

a princípio parece tolo considerar

mas decide a vida

se vamos ou ficamos

somos por natureza sem muita grandeza

às vezes até mesquinhos

mas o que nos faz viver

isso amamos e não há leveza

maior que o pó que cobre a vida

e somos pó apenas isso

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Perder

viver é perder

ninguém se assombre

o cãozinho com que o menino brinca

há muito terá partido

quando este for um adolescente

o horror pelo verde

dará lugar ao prazer por saladas

as pessoas passam por nossa vida

quase sem deixar marcas

exceto as que ficam em nós

os amores vão e vem

nada é estável nem dura

se a única certeza é um dia morrer

vivamos o que vem

deixemos que a vida nos leve

sem grandes sustos e medo

antes com o possível prazer

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Perdido

eu andei meio perdido

distante dos amigos

dos hábitos que tecem

dia a dia a esperança

fui infiel talvez pensem

estive confuso

andei flertando com a solidão

e não foi bom

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Pinga

a pinga sempre foi considerada

um excelente digestivo e depurativo

do sangue

meu sogro tomva meio copo

com um melhoral

para sarar das gripes e resfriados

em caso de intoxicação

a pinga também é muito útil

devendo-se guardar entretanto repouso

após bebê-la

qualquer restaurante que se preze

serve um aperitivo com os mais

exóticos temperos

abre o apetite

faz a vida sorrir

padroeira do Nordeste

as melhores são as excelentes de Minas

mas o mais importante é o seu valor

medicinal

Poemas amorosos

quantos poemas feitos

sobre o amor

entretanto não poderiam

esgotá-lo

a respeito de pouca coisa

se pode dizer tudo

e sempre em um dado momento

em um dado momento

também se pode dizer

tudo sobre o amor

quando se quer esquecê-lo

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Poeta

o maior erro de um poeta

é dar a ler aos outros os seus poemas

mesmo Fernando Pessoa

morreu jovem, pobre, sem amigos

melhor guardar os versos na gaveta

melhor esquecê-los

Almeida Garrett notou a infelicidade

dos poetas em tempo de prosa

melhor ser sóbrio e só

e nunca enlouquecer fazendo versos

a quem não sabe nem pode lê-los

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Primavera

cigarras

grilos

marulhar de rãs

meu coração apenas escuta

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Primavera

em frente à escola

os ipês amarelos trazem a primavera

na cozinha voltam as formigas

meu gato já apanhou um ratinho

e umas baratas

por toda parte volta

a luta pela vida

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Promessas

enquanto eu voltava com o Higienópolis

para o Bairro Alto

o ônibus cheio dos uniformes azuis

dos meninos do Colégio Estadual

e das mocinhas que saem do emprego

e pegam o período da noite na Unibrasil

as calças justas a blusa curta

apesar do frio desta cidade inóspita

o sol desceu

e eu cheguei no terminal de ônibus

cálido de beijos e cigarros

vendedores de dvd pão de queijo

churrasquinho de carne e de frango

gente se amassando voluntária

e involuntáriamente

a noite é sempre uma promessa

embora perigosa

mas vive-se de promessas

e de dívidas

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Pupila

nós somos pessoas complexas

por isso conheço a pupila

do seu olho

sei as paisagens que ali se abrem

porque são as minhas

sei o que você não vê

porque são meus esses pontos cegos

quando você ri sei bem

o que o incomoda

quando eu rio você sabe

o que eu tenho de perigoso

mas não me deixa sozinho

porque precisamos um do outro

para ver o mundo

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Pátio

pátio molhado da chuva

onde estão os sapos de antigamente?

os que chiavam como crianças chorando

entristecendo minhas noites de estudo

eu sou um homem pobre

preciso de companhia

os reflexos dos postes iluminam

os namorados que se arriscam

na noite fria

um leva sua bicicleta na subida

outros estão nos muros dos pontos

de ônibus

é bom ter um amor

onde estão os meus amores?

os meus poucos amores

de pessoa tímida e recolhida

vou mandar esse poema para o Japão

e conquistar uma japonesa

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Quisera

Para Rosana, com amor

eu quisera destruir esta paisagem

que não me acolhe

que não acolhe os pobres os tristes

os sem juízo os amorosos

com um poder ultraeletromagnético

eu quisera dissipar essa penumbra

que põe mágoa nos olhos

a lágrima contida

e fazer nascer um arrebol

com tudo que eu tenho ainda de criança

meu medo de perder minha vó

de passear só em Paris

bem sei que Deus fez o sabiá

que não há cores como as das flores

todo dia me perco em meu jardim

e não alcanço o ônibus na rua

para onde irão? o ônibus a rua

quanto a mim buscarei minha eterna origem

esse mito dos desenganados

mas já não morrerei de tuberculose

que essa maldição já tem cura

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Relações

difícil começar

ou interromper relações

ambíguo cheio de perguntas

melhor o correr dos dias

a esperança de não ficar só

de que alguém ficará ao lado

e as ilusões e desilusões

cederão a uma conhecida amizade

mas isso não vem sozinho

exige uma base mínima de paz

e o dom de recomeçar

sempre que preciso

os homens e mulheres

confiam em sua esperança

esse é um dos requisitos

para a sua humanidade

para contar o tempo

medir distâncias

lembrar o que deve ser lembrado

e sempre que possível

deixar de lado ou perdoar

o resto

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Retrato

meus retratos tristes me seguem

pelas estantes da casa

pelos documentos de identificação

nos quais me posto sempre submarino

como um inexato peixe

vagando em copos de cerveja

translúcido como meus olhos

olhando adiante atrás

para os três tempos

nunca me perdendo

sempre igual a mim mesmo

siderado

mas nunca aqui e agora

porque sempre estou atrás ou adiante

e nunca estou comigo

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Rosa

amo o azul do céu

o verde da relva

mas da rosa amo a rosa

no céu amo o arco-íris

as nuvens a chuva os balões

quando é São João

mas na rosa amo a rosa

na relva amo os besouros

a espécie mais numerosa da terra

a mais amada por Deus

amo as flores várias

e as crianças soltando pipa

mas na rosa amo apenas a rosa

a rosa completa a rosa transitiva

ponte para todo ser

mas que entre todas as flores

sabe ser rosa

a rosa em si e a rosa em tudo

princípio e rastro do mundo

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Saudades

tenho muita saudade das moças

de vestidos leves o rosto incisivo

de quem lê romances franceses

e acompanha as mudanças no mundo

tenho saudade das Áureas

das Yolandas das Noêmias

mas sobretudo muita saudade

das Adalgisas

meu paletó de linho

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Saúde

o amor nasce sozinho

em quem tem saúde

não são necessárias cruzes

no caminho para que ele

nasça

as pessoas sãs amam a si

e aos outros

amam o dia a respiração

o corpo a vida boa

e os desejam como bens

de todos

as cruzes são sinais de falta

assinalam uma carência

o quanto distamos do amor

mostram nossa fraqueza

nosso desamor

nossa pobreza

a fome a enfermidade

assinalam distâncias

separações

daí sua advertência

do quanto há em nós

um ainda não

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Senhor

não encontrei o Senhor

entre os meus cálculos

minha razão não pôde anuncia-lo

mas sim as palavras tão simples

de velhas histórias da infância

que ficaram indeléveis comigo

e me impediram de ficar só

abandonado

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Sentir

saber o que se sente

não é dom gratuito

exige sabedoria

e esta método e vagar

não à toa os antigos

conversavam entre si

sobre o amor e a amizade

porque não são óbvios

nem se descobre por intuição

exige a mediação do outro

paciência e rigor

para serem definidos

e assim apuravam

as qualidades da alma

que aqui erra

desejando uma origem

clara e eterna

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Ser

ser é mais vasto que dizer

embora seja repleto de signos

estes têm uma gramática inconclusa

assim os surrealistas se aproximaram do ser

derretendo relógios ou colocando

na cena uma inusitada máquina de costura

por ser nem tanto inconclusa quanto plena

em demasia para o que vemos

quase sempre do ser

dizem que o ser é uno luminoso vazio

repleto de tudo

como pensar isso? calando

ou dizendo superlativos

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Sertão

que o sertão também é o mar

embora este negro

e o primeiro mais índio ou mameluco

e com seus próprios deuses

e rainhas

como sertão é o pampa

e pampa é a floresta

e o pantanal

mas a cidade grande não é nada

aqui não é vida

não há a santa misericórdia

e a esperança

e o abençoado anúncio do fim

princípio das coisas do alto

_________________________________________________________________________

Shantideva

um relâmpago na tempestade

mostra o caminho

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Silêncio

para onde foi o que se foi

para onde foi o esquecido

a infância perdida

a juventude perdida

tumulto de amigos

que não pudemos conter

tumulto do nosso incontido

a vida sob tantos gestos

tantas conversas que teceram

nosso precário momento

o que conversamos?

hoje silêncio silêncio...

_________________________________________________________________________

Sinais

antes quando fazia um calorão

as pessoas sabiam dizer:

à tardinha vai chover

ou quando o poente era rubro

diziam: amanhã fará bom tempo

mas hoje ninguém diz nada

com propriedade

esta geração não sabe distinguir

os sinais dos tempos

_________________________________________________________________________

Sonho

a vigília não é exata

como o sonho

nem tão terrível

a verdade não mora nas ruas

durante o dia

ela é dom noturno

presente de um deus

ambíguo

mas que a ninguém

esquece

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Sonhos

o surpreendente e o coloquial

entrelaçam-se nos sonhos

para os quais tudo é eterno

infindo significativo

como um céu platônico

quando não nos dana demais

os sonhos são claros

quando não passam em segredo

uma chave que teremos

de procurar mais tarde

até nos sobressalta acorda

como se fosse demais

vivermos conosco

para o dia perdemos os olhos

porque está muito distante

à noite despertamos

para o mais íntimo e real

prazeroso ou tirânico

_________________________________________________________________________

Sábios

eu não te amo obsessivo

te amo calmo quando posso

um pouco tenso às vezes

mas sem cálculo

e sem grandes pretensões

eu não te torno um seguro

contra as agruras

porto contra o tufão

te amo dando a mão

para caminhar mais gostosamente

tudo o que sinto

me faz companheiro

para como São Francisco

mudar o que pode ser mudado

ter paciência com o que não pode

e ser sábio para distinguir entre ambos

solidários andamos

há muito perdemos a chance

de sermos sós e sem carinho

_________________________________________________________________________

estou só e é impossível

te mandar um telegrama

sem perceber tornei-me distante

não cabe mandar pelo Morse um s.o.s.

a tua falta é um problema analisável

por este ser meu tão racional

pior para mim que não sei

distinguir o eterno no que passa

que não sei te ver baliza rastro

em minha vida que coloco

em instâncias subliminares

do olvido e do pó

pior para você que tem um amigo

tão no seu canto

que um abraço é possível

assim como ver o cometa Halley

e que no entanto ama

amar esse verbo sempre intransitivo

que te percebe tão bela

adornada por todo o humano

e torna-se pequena para que o filho cresça

para que não pereça o encanto

do incondicional entregar-se

e navegar na vida

que quase todos ignoram

por pequenez e inconstância

e que eu procuro errando sempre

o endereço

_________________________________________________________________________

Tarde de crianças

a tarde no verão enche a rua

de crianças jogando bola

ou descendo as ladeiras

em carrinhos de rolimã

que elas mesmas constroem

em mutirão trocando

peças entre si e muito esforço

também se anda muito

de bicicleta se faz papagaios

a maioria das brincadeiras

custa barato só é preciso

o tempo que as férias dão

as meninas brincam separadas

há grupos de meninos

e de meninas mas às vezes

se misturam em geral

nos domingos que reúnem

os pais e avós e os primos

trocam cd"s de videogame

a tarde se abre com suas velas

para um puro prazer

de gastar energia e amar amigos

indiferentes aos fatos graves

que preocupam os adultos

as crianças são soldados

da Ilíada

incessantes plenas vitais

_________________________________________________________________________

Tarde

eram duas senhorinhas

muito frescas para o calor da tarde

trocavam entre si as pequenas

maldades da vida

varrendo a calçada e regando o jardim

nenhum vizinho escapava

aos seus olhos

sabiam de tudo da rua e do bairro

mas eram muito bravas

exigiam os seus direitos

que ninguém cantasse alto à noite

que ninguém chegasse muito alegre

nem fizesse algo pior

eram o próprio tribunal do santo ofício

prontas a queimar em fogo lento

a menor falha

se eram mesmo falhas

as contingências em que se vê

quase sem querer de vez em quando

_________________________________________________________________________

Teatro

Marta sucinta medida apolínea

disse na única vez que falamos

que fazia teatro se eu sabia

a importância do teatro

naquela nossa atualidade

eu amava futebol

timidez doentia apesar

dos níveis de testosterona

não respondi olhei

Marta descer balançando

a rua

_________________________________________________________________________

Tecer

esta senhora tão postada

na paisagem da tarde em sua sala

com as agulhas na mão tece

seus pensamentos nos quais flutua

com rápida nitidez

o mundo seu se une em uma abóbada

sob o qual se recolhe

como a virgem em seu díptico

mas as suas mãos não sabem nada

apenas seguem

como o sol

segundo a sua destra natureza

_________________________________________________________________________

Tempestade

1

a tempestade vai passar

como nuvem rósea ou sol claro

como dia perfeito para um piquenique

ou destruindo antes tudo no caminho

a tempestade vai passar

deixando dias claros até outra tempestade

2

as coisas ficam sempre onde as deixamos

mesmo que não lembremos onde

os mecanismos funcionam

pelo menos até faltar energia ou quebrarem

são feitos para durar sem liberdade

para fazerem outros programas

mas o mundo crucial não é assim

ele surpreende muda

como a tempestade que antes de passar

varre o Caribe de beleza intensa

_________________________________________________________________________

Tempo

no íntimo você não se preocupa

com o dia de hoje

mas com um tempo de seu coração

para onde confluem

passado presente futuro

as imagens se trocam

evocando as imagens arquetípicas

daqueles que formaram

seu ser seu meu

para esse tempo você sempre volta

nos sonhos e a custa o oculta

no dia pois é pesaroso

mas oblíquo te espera

nas tuas fraquezas

e sempre te diz mal você saiba

_________________________________________________________________________

Tenda

essa minha humana condição

tão frágil

foi a de Jesus e de Buda

contam-nos as histórias

dentro da matéria do mundo

somos com eles matéria

e queremos ser com eles sentido

do mundo e de sua matéria

sua força criativa e sua revelação

assim queremos

em nossa fragilidade

contam as histórias que um dia

o sentido do universo e do homem

se fez material humano carne

e armou entre nós sua tenda

andou com seu bastão

e sua tigela

tudo em nós paciente se faça

se cumpra

imitação dos grandes seres

que cumpriram seu sentido

humildes imitemos

como quem se descobre

e toma sobre si sua vida

e a dos outros

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Tentativas

amassei várias vezes a brasa do cigarro

entre os restos no cinzeiro

um olho fechado para evitar a fumaça

o pensamento fixo que torna o tempo

incoerente e imóvel

inúteis as tentativas para não ter de conviver

com todo o absurdo que cerca a vida

mesmo de um cara simples como eu

inútil tentar livrar a cara

vou tentar manter a leveza possível

dizer bom dia aos que passam

abotoar a braguilha quando for ao banheiro

e escovar o dente da manhã

quem sabe iniciativas como essa

dêem a leve impressão

de que a vida é convidativa

de que essas são questões de somenos

de que ainda não é preciso apelar

como Philip Marlowe quando está exausto

para dois uísques duplos

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Tom Jobim

Tom Jobim morreu sem aviso

ele era ainda novo e bonito

cheio de alegria e de certa inconseqüência

que os amantes da vida têm sempre

por exemplo em suas letras

entretanto era um príncipe entre os poetas

o melhor dos maestros

morreu como quem vai à esquina

comprar cigarros

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Trevas

a noite é negra

mas mais negro é meu coração

triste destino o do talento

buscar consolo em versos ralos

cingir seu crânio de louros divinos

e depender de charutos e clorofórmio

amar as grandes amantes

e contentar-se com as moças simples

que o amam mas não atingem

chorar lágrimas acerbas

sem um sentido preciso

exceto o que se respira

na noite negra do estro desperdiçado

na cidade que dele prescinde

na burguesa mediocridade dos contentes

ergo minha taça de louvores

ao amanhã que dessas correntes

irá me libertar

e a todos os byrons perdidos

nos subúrbios

a cabeça rolando

sobre espumas flutuantes!

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Universo

ao contrário do que muitos pensam

o universo não anda como um relógio

antes são os relógios que

devem ser acertados pelo tempo

do sol e dos planetas

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Utopia

1

Furtado já nos falava

desta aldeia chamada Babilônia

2

também nos falava que as utopias

devem nascer da sociedade civil

3

ao Estado cabe ser uma arena

para a construção da utopia e do futuro

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Vacuidade

tudo que existe está repleto

do que existe em torno

do que existiu um dia

e se projeta para o futuro

como o seu legado

tudo o que é

é unido a todos os seres

e lhes dá existência

perceber isso elimina o abandono

mas lembra a responsabilidade

universal pela paz

nossa e alheia

pois nada é dual e tudo fala

por uma só voz

a isto se chama estar vazio

de todas as pretensões

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Ver

não acredite em tudo

que você vê

melhor: não acredite

nem na metade

sossegue: para pior ou melhor

o mundo é sempre

bem diferente

do que pensamos

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Versos

gostaria de fazer versos

como John Donne como John Keats

gostaria de fazer versos

como Manuel Bandeira

mas sou um homem modesto

faço versos com a minha cara

fragmentos de pensamento

do fogo elementar

que me cozinha lento

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Viagem

em nós nada começa ou finda

não há um ponto morto

a partir do qual engatar a viagem

consultar mais uma vez os mapas

a viagem não cessa

embora sem propósito

sem destino

não há um eixo silencioso

a partir do qual ordenar

o que parece fora de lugar

há silêncios mas são breves lacunas

onde se reata o marulhar infinito

do sangue do pensamento

nós não esquecemos

tudo nos pertence

queremos tudo que é nosso

o mendigo mais humilde

é o rei de sua cabeça

e em torno dela tece

guirlandas de pretensões

e de sua vida desapercebida

mas sempre vida

tão extenuante e veloz

quanto qualquer outra

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Vida

quando perdemos um amigo

dizemos é a vida

quando nos sentimos doentes

dizemos também

se nos passam a perna

dizemos é a vida

quando nossas forças não bastam

é sempre a vida

de modo que a vida entre nós

não tem bom conceito

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Vingança

eu guardo minhas mágoas

em papel de bala

para derreter na boca

à noite na cama

que é lugar quentinho

para se chorar

com gosto apuro

minha vingança

que é ao contrário

um prato que se come

gelado

doce como sorvete

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Virgens

oh virgens

oh vestais divinas

aos vossos pés de vento derramo

minhas lágrimas de purpurina

oh divas salientes

oh metafísica

lanço aos quatro pontos cardeais

minhas decepções sentimentais

oh carnavais

que acenais com o ás

oculto nas mangas

oh incansável eu que vos persigo

vestido de catavento

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Yma Sumac

hoje parece estranho

mas naquele tempo

a orquestra usava todos os recursos

para acompanhar a voz altiva

de Yma Sumac em The Virgin of Sun God

e os mambos se sucediam

na voz ora aguda ora muito grave

bamboleando pela tela da televisão

nesse momento mamãe aproveitava

para ir ao banheiro

eu esperava a próxima atração

hoje já lamento não ter apreciado

tudo como deveria

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Zen

vez ou outra lúcido

vez ou outra sóbrio

vez ou outra sólido

vez ou outra zen

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Às vezes

às vezes sem graça

às vezes sem sal

às vezes sem ar

às vezes sem chão

às vezes só sem dinheiro

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Água

aguaceiro

faróis tremeluzem

caos no transporte metropolitano

desejo de casa e sono

sob as marquises do mercadorama

taxistas e sem teto disputam espaço

a telefonista compra pão de queijo

e um potinho de iogurte

os motoboys entregam pizzas

porque há quem coma pizza em casa

quando chove

os estudantes se agarram às mochilas

o ar abafado enche

o pulmão comum da cidade

antes considerada do primeiro mundo

hoje em eleições anódinas

nas quais os mesmos vereadores

manterão as mesmas clientelas

a chuva não lava nenhuma sujeira

e acumula papel molhado

nas bocas de lobo

a cidade não precisa de chuva

a tarde anacrônica

é uma sopa indesejada

que não mata a fome de ninguém

 

Autor:

Igor Zanoni Constant Carneiro Leão

igorzaleao[arroba]yahoo.com.br

Partes: 1, 2, 3


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