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A saga do São Sebastião Tumbeiro o último galeão ou o tumbeiro malê (página 3)

Ricardo Ottoni Vaz Japiassu
Partes: 1, 2, 3, 4

Tenho parte do corpo do seu capitão comigo... (Pausa) O resto tribo comeu.

Antônio Maria

Comeu?! Que horror, meu Deus! Que horror... Ele não merecia isso.

Adé-Cunhatã

(Posicionando-se atrás e muito próximo a Maria. Fala sedutor ao seu ouvido) Come guerreiro branco pra ter força do inimigo!

Antônio Maria volta o rosto até ficar cara-a-cara com Adé-Cunhatã e olha-o profundamente.

Adé-Cunhatã

Quer ver parte dele que cunhatã defumou?

Antônio Maria

Sim.

Adé-Cunhatã tira de seu manto de penas o pênis defumado do capitão Pedro Sá e exibe-o com prazer mórbido a Maria.

Antônio Maria

(Tocando o pênis defumado e beijando-o) Meu capitão... Quanta saudade de lhe sentir quente...

Adé-Cunhatã

Quer piroca defumada do seu capitão?

Antônio Maria

(Responde afirmativamente com a cabeça, suplicando-lhe por gestos para dar-lhe o pênis defumado do capitão) Deixa eu enterrar ele, por favor?!

Adé-Cunhatã

(Com malícia sensual) Onde?

Antônio Maria

Na terra...

Adé-Cunhatã

Toma! (Entrega-lhe sedutoramente o pênis defumado)

Antônio Maria cai de joelhos e rapidamente, de quatro, começa a cavar um buraco na areia. Adé-Cunhatã aproveita-lhe a posição e desce-lhe as calças com vigor e cobre-o com seu corpo, penetrando-o violenta e surpreendentemente. Maria indiferente finaliza o enterro do pênis do capitão. Escurecimento. Um bando de araras sobrevoa a cena com gritos estridentes.

QUARTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

A luz volta a incidir sobre a cena onde estão, agora, Antônio Maria e Adé-Cunhatã treinando o uso do archote a beira mar. Os arqueiros e lanceiros tupis-cariris e pataxós saem da água e depedem-se de Maria e Adé-Cunhatã. Adé-Cunhatã está sem o manto, desnudo. Com a saída dos tupis-cariris e pataxós Antônio Maria o envolve por trás, a pretexto de demonstrar-lhe como segurar adequadamente o cabo do archote.

Antônio Maria

Isso... (Sussurando-lhe ao ouvido) Assim mesmo cunhatã... Relaxe, você consegue!

Adé-Cunhatã faz estalar o chicote na areia seguidas vezes ofegantemente até apoiar-se exausto no tórax de Antônio Maria inclinando a cabeça para cima ao expirar aliviado como em um gozo espermático.

Adé-Cunhatã

(Ofegante) Consegui! Consegui...

Maria beija-lhe carinhosamente o pescoço.

Antônio Maria

Sim. Você está pronto agora.

Maria sai de trás de Adé-Cunhatã e tira a roupa.

Antônio Maria

Vem! Vamos na água? (Sai correndo em direção à praia jogando as calças para o alto) Vem! Vem! Vamos!

Adé-Cunhatã sai em disparada a seu encontro gargalhando de felicidade. Toque de agogôs e percussão alegre. Escuro.

Luz aos pés da imagem de São Sebastião. Agora Antônio Maria está desnudo sendo depilado por Adé-Cunhatã e pinta os olhos com carvão resgatando sua maquiagem original, desta vez mais forte, para cerimônia de fechamento do corpo aos pés da imagem do Grande Caçador. Os tupis-cariris e pataxós se pintam uns aos outros.

Adé-Cunhatã

Caboclo fechar corpo de Maria pra não morrer ferido de flecha...

Antônio Maria

(Finalizando a maquiagem à frente de um caco de espelho) Sabe a história do representado nesta imagem?

Adé-Cunhatã

Sei que totem é bom pra curar ferida de flecha.

Antônio Maria

Como sabe disso?

Adé-Cunhatã

Caboclo me disse...

Antônio Maria

(Retirando os brincos de prata e substituindo-os por penas brancas e pretas de gavião dos tupis-cariris atravessando os furos das orelhas) Disse?

Adé-Cunhatã

Sonhei ele.

Antônio Maria

O nome do representado é Sebastião, São Sebastião. Foi curado milagrosamente após ter tido o corpo crivado de setas...

Adé-Cunhatã

Eu pede totem proteger você de flechada no mata-maroto...

Antônio Maria

Acredito no poder de São Sebastião!

Adé-Cunhatã

Agora Maria é guerreiro guarani pronto pra "travessar" mar...

Antônio Maria

(Entregando-lhe o par de brincos de prata) Fica com eles para lembrar de mim!

Adé-Cunhatã sorri.

Escuro. Maria está pintado e maquiado como um guerreiro tupi-cariri e encontra-se só, olhando o horizonte. Está com o seu chapéu de pluma nas mãos e usa suas rotas botas. Ouve-se um longínquo toque lamentoso de berimbau.

Antônio Maria

(Com olhos marejados) Galego... Galego... Onde você está? Onde? Será que ainda brilham seus olhinhos de esmeralda? (Recita Vinícius de Moraes) [15]

Amo-te tanto, meu amor... não cante

O humano coração com mais verdade...

Amo-te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,

E te amo além, presente na saudade.

Amo-te enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,

De um amor sem mistério e sem virtude

Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,

É que um dia teu corpo de repente

Hei de morrer de amar mais do que pude.

Escuro. O berimbau segue soando cada vez mais distante.

QUINTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Ruído de ondas espraiando-se na areia. Na beira do mar, à noite, tudo está pronto para o embarque de Antônio Maria e a travessia dos velocistas pataxós e tupis-cariris a nado até Salvador. Adé-Cunhatã com o manto de penas sacode o maracá e dá baforadas do poró sobre os nadadores pronunciando palavras mágicas. Os velocistas fazem aquecimento para a largada. Cada guerreiro pataxó e tupi leva um archote enrolado no pescoço como se fosse um colar. Antônio Maria está de pé à frente da canoa. Usa lenço amarrado na cabeça embaixo do chapéu e está calçado com suas botas embora use tanga selvagem de penas. Um guerreiro guarani na popa da embarcação afasta a canoa da praia impulsionando-a com o remo. Um canto de coruja corta o silêncio noturno. Adé-Cunhatã permanece em pé à beira mar vendo a canoa partir. Maria faz o pelo-sinal.

Antônio Maria

Valei-me Nossa Senhora da Boa Esperança! Valei-me São Sebastião!

Escuro. Pio renitente da coruja.

PARTE III – O CONTINENTE

(1) PRIMEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Acampamento militar independentista nas campinas de Pirajá. Galego, os dois malês e os alabês angolanos estão acocorados e se alimentam descascando e chupando cana. Um dos angolanos descasca uma cana com os dentes.

Manuel Galego

ÃSita neguinho bom de dente!

Chico (Segundo alabê angolano)

É o Zé-Boca!

Tôin (Terceiro alabê angolano)

É o famoso Boca de Piranha!

Todos gargalham. Inclusive os malês.

Manuel Galego

(Com galhofa) Tá morta-fome Boca?

Zé-Boca (Primeiro alabê angolano) com um pedaço de cana entre os dentes responde afirmativamente com a cabeça.

Manuel Galego

O jeito é a gente se arranjar com o que tem no mato daqui!

Chico

Será que o batalhão de encourados de Dona Maria vai demorar muito ainda pra chegar?

Manuel Galego

Penso que não. Mas a gente só vai poder seguir para Salvador junto com as tropas dela. A capital da Província está sitiada e os portugueses estão derrubando qualquer um que se aproxime das portas da cidade!

Tôin

ÃSita! Danou-se o nosso destino.

Manuel Galego

Nada! (Mudando o tom) Tá com medo de pegar no facão nego Tôin?

Tôin

O único facão que eu não tenho medo de pegar é esse aqui (Sacoleja o pênis com orgulho e galhofa)

Zé-Boca

(Ridicularizando-o e esfregando-se no traseiro de Tôin) E esse meu canivete, Tôin, cê pega? (Sai correndo antes que Tôin possa ter alguma reação)

Todos gargalham irreverentemente.

Tôin

(Em perseguição a Zé-Boca) Ôxe, ôxe, ôxe! Casca fora nego "fei". Tá me estranhando?

Zé-Boca

(Pirraçando-o) A neguinha retou-se!

Tôin pega um pedaço de cana e corre atrás de Zé-Boca.

Tôin

Deixa eu te pegar nego qu"eu vou lhe mostar a neguinha, moleque! Enfio essa cana todinha no seu cu duro, filho d"uma égua!

Zé-Boca dança o kuduro desafiadoramente para Tôin.

Zé-Boca

Aí que meda!

Tôin corre atrás de Zé-Boca em um divertido jogo de picula que deriva para luta romana na areia, os dois se agarrando e rolando pelo chão prazeirosamente.

Barach Osama (Primeiro Guerrilheiro Malê)

(Para Manuel Galego) Quando nós vai (Faz gesto de seguir adiante) Salvador?

Barach Husseim (Segundo Guerrilheiro Malê)

Salvador. Nós precisa chegar!

Manuel Galego

Calma. Não tem como chegar a Salvador ainda negão. (Para Chico) Chico! Explica pra eles. Vocês negros se entendem melhor.

Chico pronuncia uma ou outra palavra em ioruba e complementa sua comunicação com linguagem gestual. Zé-Boca e Tôin se aproximam ofegantes após o término da brincadeira.

Barach Osama

Guerra?! Salvador?

Barach Husseim

(Revelando por atitude que compreende) Sim. (Para Barach Osama) Guerra! (Diz expressão em ioruba e árabe) lá... Salvador

Barach Osama

Nossa guerra?

Barach Husseim

Não. Guerra de branco.

Toque de corneta.

(2) SEGUNDA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Movimentação dos acampados com rumor crescente. Um grupo de marujos adentra a cena.

Chico

(P/ Manuel Galego) É ela?

Manuel Galego

Não. São marujos! Vou ver se conheço algum deles...

Aproxima-se do grupo de recém-chegados ao acampamento e descobre Zulu entre eles.

Manuel Galego

Zulu?!

Zulu

Galego?!

Abraçam-se forte e pulam juntos de alegria.

Manuel Galego

Fala cu-de-ouro! Como é que vc chegou aqui negão? Cadê meu capitão?

Zulu

E rapaz... É uma longa história...

Manuel Galego

O Maria veio com o grupo?

Zulu

Não.

Manuel Galego

Morreu?

Zulu

Se morreu, não vi, não soube. A última vez que estive com ele estava vivo. Ainda na nau do Lobo do Mar.

Manuel Galego

E o capitão Pedro Sá?

Zulu

Foi levado pelos guaranis.

Manuel Galego

Como é que é? Conta isso melhor...

Zulu

Seguinte: Depois que vocês partiram o galeão foi tomado de assalto por canoeiros guaranis que fizeram os sobreviventes do ataque reféns.

Manuel Galego

Conta tudo vai!

Zulu

Antes de naufragar o daleão ficou no meio de uma batalha de flechas entre selvagens simpatizantes de Portugal e os coligados do comodoro escocês...

Manuel Galego

Qual grupo venceu a batalha?

Zulu

Os guaranis, à mando do Lobo do Mar. Quem sobreviveu à chuva de flechas foi feito prisioneiro. Maria, a missionária inglesa e eu fomos levados para embarcar na nau do escocês. O capitão, a rainha negra e suas aias seguiram para a aldeia guarani junto com parte da carga saqueada do galeão. A maior parte da pólvora e das armas de fogo seguiu para a nau do Lobo. A imagem de São Sebastião, e o restante da carga de pólvora e o carregamento de seda seguiu com os guaranis para a ilha. Depois disso, não vi mais o capitão nem soube dele.

Manuel Galego

E Maria?

Zulu

Maria foi entregue em terra à Dona Maria Felipa – uma negra comandante de um batalhão de encourados na sede provisória da província, no recôncavo continental, em Cachoeira. A missionária inglesa desceu ali também para seguir por terra até o Rio de Janeiro. O restante da tripulação do galeão seguiu comigo na nau do escocês pela contracosta da ilha até chegarmos aqui, onde parte desembarcou e outra permaneceu a bordo para combater em alto mar e nas águas da baía junto com a fragata do comodoro mercenário francês Pedro Labatut e ao lado de outros navios da marinha do Império brasileiro.

Manuel Galego

Então o capitão e Maria estão vivos!

Zulu

Não sei. Talvez.

Manuel Galego

Por que Maria foi mesmo entregue à comandante negra?

Zulu

Pelo que eu consegui saber porque iria treinar alguns guerreiros selvagens no uso do chicote em Itaparica, na ilha.

Manuel Galego

E onde fica a aldeia guarani para onde foi levado o capitão?

Zulu

Não sei. Acho que na ilha...

Manuel Galego

Estamos aguardando a chegada de Maria Quitéria e seu batalhão e outras tropas que aqui se reunirão para marcharem até a capital da Província que está sitiada...

Zulu

Ouvir dizer que ela é uma comandante muito corajosa e respeitada. Prometeram nossa alforria em troca de nossa adesão às tropas... Estou quebrado. Dizem que vão dar pão e alimento. Se você ainda não fez a entrega está com a minha barra de ouro...

Manuel Galego

Parte do seu ouro já gastei para trazer a encomenda até aqui. Sobrou um pouco apenas para concretizar a entrega. Quando finalizar o transporte das peças até os destinatários devo receber a paga pelo negócio. Fiquei de encontrar com o capitão em Salvador, no cais do porto, perto do cabaré de Maria das Cobras...

Zulu

Posso me juntar a vocês?

Manuel Galego

Claro. Assim que receber a paga lhe devolvo a sua parte... Se me ajudar a levar a encomenda em segurança até seus destinatários...

Zulu

(Exultante de felicidade) Valeu "Galeguin"! Negócio fechado.

Manuel Galego

Agora é só esperar a chegada das tropas que ficaram de vir juntar-se a nós e seguirmos para a capital da Província. Daí, quando entrarmos na cidade desertamos e vamos tratar da nossa tarefa.

Zulu

Tomara que não demorem muito a chegar!

[Pode ocorrer episódios de ensino da doutrina islâmica, da escrita e leitura aos negros por parte dos guerrilheiros Malê a partir de pesquisas e improvisações do elenco]

Soam cornetas e ouve-se o galope da cavalaria. Maria Quitéria entra rápida e destemida cercada de guarda-costas e alguns porta estandartes do Império.

Maria Quitéria

Combatentes! Chegou a hora de marcharmos juntos sobre a cidade. O General Madeira de Melo ordenou que partíssemos sem demora. Os portugueses estão enfraquecidos porque são atacados pelo mar pela marinha imperial, pelo sul do continente por nós e pelo litoral norte pelos batalhões de negros e tupis-cariris a serviço do Visconde de Mauá. Entendido soldados?

Coro de combatentes

Sim senhora!

Maria Quitéria

Há armas e munição nas carroças para todos. À luta homens! Avante!

Rumor, gritos eufóricos e correria dos acampados para pegarem as armas. Maria Quitéria deixa a cena confiante. Um desfile de muitos homens armados atravessa a cena ao som do Hino ao Senhor do Bonfim em seguida a Maria Quitéria. Escurecimento.

(3) TERCEIRA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Em meio ao carnaval da vitória, Manuel Galego e Zulu abrem caminho na multidão. Um grupo de homens joga futebol com a cabeça de um soldado português. Gritos e molecagem. Xingamentos ao crânio do sacrificado.

Manuel Galego

Venha, Zulu. Por aqui.

Zulu

Deixa eu dar um chute na cabeça desse branco fodido!

Manuel Galego

Vai, negro, vai. Chuta a cabeça do seu algoz!

Zulu dá um chute no crânio e volta para seguir com Manuel Galego. A algazarra se afasta e retira-se de cena.

Manuel Galego

Aqui está a sua parte como combinado!

Zulu

Beleza!

Manuel Galego

Quer seguir comigo até o cais?

Zulu

Pra gastar com a mulherada?! Não.

Manuel Galego

Vou tentar encontrar o capitão.

Zulu

Não quero mais morar no mar... Vou tentar abrir um negócio qualquer em terra mesmo.

Manuel Galego

Com a minha parte quero comprar um saveiro usado.

Zulu

Pra quê?

Manuel Galego

Transporte comercial de abastecimento entre Salvador e Cachoeira. Navegação só dentro da baía de todos os santos... Vamo?

Zulu

Isso dá dinheiro?

Manuel Galego

Deve dar... Vem rapaz, quero que você veja os saveiros. Não precisa decidir agora. Vou precisar de um assistente. Você sabe mergulhar? Apineia?

Zulu

Nunca treinei não...

Manuel Galego

Já estamos quase chegando ao cabaré de Maria das Cobras... É só terminar de descer esta ladeira...

Deixam a cena abraçados amistosamente. Escuro.

(4) QUARTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

Ouve-se ruído de garrafas quebradas, bancos derrubados e gritos de mulheres em pânico.

Marujo Bêbado

(Com o gargalo de uma garrafa nas mãos ameaça cortar o pescoço de Maria das Cobras) Se alguém chegar junto corto o pescoço desta vadia!

Curiosos e mulheres desfrutáveis assistem temerosos o dsenrolar dos acontecimentos. Antônio Maria aproxima-se com o chicote desembainhado usando tapa-olho.

Antônio Maria

Largue Dona Maria, vá!

Marujo Bêbado

Para trás, viado!

Antônio Maria

(Estalando o chicote no chão) Vá, largue ela logo. Se não largar por bem...

Marujo Bêbado

Vai fazer o quê caolho?!

Maria habilmente o desarma com um só golpe e enrola o chicote em torno do seu pescoço sufocando-o.

Antônio Maria

Solte ela, vagabundo! Vá, solte...

O Marujo bêbado solta Maria das Cobras.

Antônio Maria

A senhora tá bem Dona Maria?

Maria das Cobras

Sim, Antônio. Obrigado.

Antônio Maria

Meninas, amarrem esse baiacu fedido! Fechem a boca dele com pano.

 

Algumas mulhers desfrutáveis correm para amarrar o bêbado, outras amparam Maria das cobras.

Antônio Maria

(Jogando o marujo bêbado rendido ao solo) O que a senhora quer que eu faça com ele Dona Maria?

Maria das Cobras

Me tragam um copo com água!

Manuel Galego e Zulu chegam ao cabaré.

Manuel Galego

Maria?!

Maria das Cobras e Antônio Maria se voltam para ele.

Maria das Cobras

(Para Manuel Galego) Mais respeito! Dona Maria. (Abre o leque e abana-se afetadamente) Não lhe dei esta ousadia!

Antônio Maria

(Para Maria das Cobras) É comigo Dona Maria... (Para Galego) Galego?!

Correm e abraçam-se longa e festivamente.

Manuel Galego

O que aconteceu com seu olho esquerdo?

Antônio Maria

Uma flecha. Quase morro. Fui salvo pela fé em São Sebastião e pela caridade de Dona Maria das Cobras...

Manuel Galego

(Respeitosamente dirigindo-se a Maria das Cobras) Senhora Dona Maria, Manuel Galego, seu criado.

Maria das Cobras

(Para as meninas do cabaré) Levem o "peixe podre" pra calçada e tirem toda a roupa dele. Larguem ele nu, lá, amarrado, com o traseiro pra cima; e enfiem um sabugo de milho no rabo dele - pra ser seviciado pela molecada donzela viciada no troca-troca, nas cabras e nas porcas... Pra ele sentir a dor que a gente é obrigada as vezes sofrer tendo que satisfazer a tara desses "traste ruim"! (Para Antônio Maria, Galego e Zulu) Fiquem a vontade. (Para as mulheres desfrutáveis batendo palmas) Vamos meninas, vamos se arrumando que a noite tá chegando e tem festa ainda hoje em comemoração à vitória sobre os portugueses, acabou o bafafá do bebum...

Maria das cobras e as mulheres deixam a cena.

Manuel Galego

Doeu?

Antônio Maria

O quê?

Manuel Galego

(Tocando-lhe com carinho a face) A flechada...

Antônio Maria

Muito. Mas Nossa Senhora da Boa Esperança e São Sebastião me valeram e aqui ainda estou, embora sem um olho.

Manuel Galego

Você e suas crendices! Tu teve é sorte homem. Onde estão suas argolas de prata?

Antônio Maria

Estou usando penas de pássaros nas orelhas agora... Fica mais fácil indentificarem de que lado estou. Podem me tomar por português... (Mudando de assunto) Conseguiu fazer a entrega das peças?

Manuel Galego

Sim. Contei com o apoio de Zulu. Lembra dele?

Antônio Maria

Claro! O "cú d"ouro" [com forte sotaque português soando "kuduro"]... (Cumprimentando-o com um forte e caloroso aperto de mão) Fala negão!

Zulu

Oi Maria.

Manuel Galego

E o capitão? Fiquei de encontrar com ele aqui...

Antônio Maria

Não tenho boas notícias...

Manuel Galego

Morreu?!

Antônio Maria

Foi devorado pelos guaranis!

Manuel Galego

(Olhando para Zulu) Verdade?!

Antônio Maria

Vi a cabeça dele pendurada numa estaca da paliçada da aldeia guarani em Itaparica.

Zulu cospe enojado.

Manuel Galego

Coitado! (mudando o tom) Como você chegou até aqui?

Antônio Maria

Fiz o treinamento de arqueiros e lanceiros pataxós e tupis-cariris para uso do chicote em ações guerrilheiras aqui na Sede da Província. Atravessei a baia de todos os santos numa canoa que guiou os lanceiros, que vieram a nado, acredite...

Manuel Galego

Haja fôlego!

Antônio Maria

Desembarquei no porto da barra, entre os fortes de Santo Antônio e São Diogo na calada da noite. Já na mata, fomos surpreedidos por selvagens cooptados pelos portugueses e recebi uma flecha no olho. Mas eu, um pataxó e dois tupis-cariris sobrevivemos ao ataque dos tupinambá-caigangues e conseguimos fugir. Me lembrei do cabaré de Dona Maria das Cobras e vim caminhando e sangrando até aqui, onde ela me tratou com ervas. Sabia que você viria pra cá, pro porto, após a entrega das peças malês e angolanas. E então? Recebeu a paga?

Manuel Galego

Sim. Parte dei a Zulu. A do capitão, agora que ele morreu é minha. Mas tenho planos pra nós...

Antônio Maria

Planos? Quais?

Manuel Galego

Compar um saveiro...

Antônio Maria

Um saveiro? Pra quê?

Manuel Galego

Pra trabalhar na linha Salvador-Cachoeira e passar pelo lugar onde fizemos a oferenda à Mãe D"Água... Resgatar o tesouro do falso padre e a prataria do galeão...

Antônio Maria

Esquece isso, Galego!

Manuel Galego

Dispensar aquela fortuna? Deixar ela pros peixes? Vou contratar um contra-almirante mergulhador e ir em busca do tesouro... Você vem comigo?

Antônio Maria

Nem pensar. Não posso. Não concordo. Pela minha devoção à Nossa Senhora da Boa Esperança, pela promessa que fiz a São Sebastião se Ele me deixasse sobreviver à flecha certeira que me vazou o olho esquerdo... Com essas coisas não se brinca, Galego!

Manuel Galego

Não estou brincando. Falo sério. Convidei Zulu para ser meu sócio no negócio...

Antônio Maria

Você aceitou Zulu?

Zulu

(Para Galego depois de um breve silêncio) Me desculpe, Galego. Eu também respeito muito essas coisas. Acredito na Mãe D"Água. Mas vou torcer pra você conseguir ficar rico...

Antônio Maria

Não vá Galego! Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, esquece isso. Em nome do nosso amor...

Manuel Galego

Meu amor pela fortuna é maior do que eu, do que nós... Mas não vou lhe desamparar... Vou lhe dar parte do dinheiro que era do capitão.

Antônio Maria

Espero que você não se arrependa!

Manuel Galego

Prefiro arriscar ganhar ou perder na roda da fortuna...

Antônio Maria

Fico triste por ter que lhe perder para a vida mais uma vez...

Manuel Galego

Prometo uma despedida inesquecível... Vamos?! Estou com saudade de entrar em você... Onde fica sua camarinha aqui no cabaré?

Antônio Maria

Por aqui. Venham. Venha também Zulu...

Retiram-se para a camarinha de Antônio Maria. Escuro.

(5) QUINTA MOVIMENTAÇÃO DE PERSONAGENS

No cais, Galego e seu contra-almirante mergulhador Moreninho ocupam-se com os preparativos da primeira viagem do saveiro. Zulu ajuda no embarque de parte da carga de mercadorias. Antônio Maria assiste a tudo da beira do cais.

Manuel Galego

Estenda a vela Moreninho! Amarre ali, forte.

Voltando ao cais para junto de Antônio Maria.

Manuel Galego

Tá chegando a hora...

Antônio Maria fica em silêncio. Zulu retorna do saveiro. Galego o recompensa com alguns trocados.

Manuel Galego

(Abraça Zulu) Valeu Negão! (Para Maria após abraçá-lo demoradamente) Não fica assim... Sempre que voltar pra Salvador vou lhe ver lá na Maria das Cobras...

Antônio Maria permanece cabisbaixo e em silêncio. Galego abraça-o e beija-lhe ternamente a cabeça.

Manuel Galego

(Mudando o tom) Chega de despedida! (Para Moreninho) Tudo pronto aí moleque?

Moreninho

(Aproximando-se apressado) Tudo. Vamos?!

Manuel Galego

Sim. Vá indo. Me espere lá. Já vou.

Moreninho afasta-se.

Manuel Galego

O moleque é ajeitadinho... Apertado o coisinha... ÃSita, que eu gosto da sacanagem... Leva jeito pra enrabadiço o menino. Novinho, dezeseis aninhos, as carnes dura... Uhu! Fui, Maria. Adeus Zulu!

Galego dirige-se ao veleiro e deixa a cena. Maria levanta a cabeça para ver a partida de Manuel Galego. Zulu aproxima-se por trás abraçando-o e colando o corpo em Maria.

Zulu

Fica assim não...

Antônio Maria

Vou sentir falta do rolinho saliente do Galego... Tem fumo? O meu acabou...

Zulu

Um rôlo. Pode pegar, ta no meu calção...

Antônio Maria

(Enfia a mão por dentro do calção de Zulu e muda rapidamente de humor) É muito fumo! Dá pra tontear qualquer um...

Zulu

Quer ficar tonto, vamo?! Vou lhe fazer esquecer o Galego...

Antônio Maria

Ah nego abusado! Gosta da "osadia", né?!

Zulu

(Sedutor e sensual) Adoro!

Antônio Maria

Eu também.

Os dois se retiram apressada e alegremente de cena. Um arco-íris se delineia no ciclorama. Música alegre e carnavalesca que termina por fundir-se à uma cantiga para Oxumaré.[16] Escuro.

Oxumaré Loquerê Oxumaré

Madame não quer índio marimbando

Não não não não

Madame não quer ir no Cariri

Sussuarana sucuiú

Sussuarana sucuri

Liberte eles

Liberte agora

Liberte todos que estão do lado de fora

Polícia Polizei carabinieri

Police

É tudo sirene do mesmo cop

Todo mundo sabe como se tratam os pops

Puta fetichista purista ufanista

Todo mundo sabe como se trata o futurista!

SOBRE A PSICOLOGIA DA ATUAÇÃO TEATRAL (

Comentários sobre a "Psicologia do Ator" de Liev Semienovich Vigotskii

Por Ricardo Ottoni Vaz Japiassu [17]

( O texto é uma versão minha, comentada, a partir da tradução para o italiano de Claudia Lasorsa publicada em Studi di psicologia dell"educazione sob o título Sulla psicologia della creatività dell"atorre em 1986, por sua vez com base na edição da Pedagógica de Moscou de 1984 sob a consigna Sobranie Sochineniy, v. 6, p. 319-328, do texto originalmente atribuído a Vigotskii - que o teria escrito em 1932 e que foi publicado na Rússia em 1936 por JACOBSON, P. M. na coletânea The Psychology of the stage feelings of the actor, dois anos após a morte de Vigotskii, e mais uma vez traduzido para o inglês posteriormente por Elizabeth Roberts em 1985, tendo sido publicado no periódico SCYPT Journal, n.14, , p. 47-56.

Uma cópia reprográfica da tradução de Lasorsa me foi gentilmente enviada por correio regular pelo acadêmico Antônio Mecacci a partir de uma solicitação minha ao Profº Dr. Guillermo Blank, em 1998, na ocasião ainda vivo, que conheci na lista de discussão que o Laboratório de Cognição Humana Comparada da Universidade da Califórnia em San Diego/LCHC-UCSD mantém na Internet, sob a coordenação do Prof. Dr. Michael Cole. Uma tradução para o português foi elaborada pela Profª Drª Beatriz Angela Vieira Cabral da UDESC e UFSC com base na tradução inglesa de Roberts e me foi por ela gentilmente disponibilizada uma cópia impressa não publicada intitulada Psicologia do Ator também em 1998, em um encontro presencial que tivemos na ECA-USP promovido pela Profª Drª Maria Lucia de S. B. Pupo. Por isso refiro-me ao texto de Vigotskii conforme foi intitulado pela única tradução para o português a que tive acesso - a da professora Beatriz Cabral.

NOTA INTRODUTÓRIA

O texto apresentado a seguir é uma versão minha de um artigo atribuído a Liev Semienovich Vigotskii (1896-1934) traduzido para o italiano por Claudia Lasorsa. A atualidade do documento no qual me baseio e sua importância acadêmica no âmbito das Artes, da Educação e Psicologia dispensa qualquer justificativa. Isso em razão da disseminação das idéias de Vigotskii no continente europeu e nas Américas ter alcançado grande repercussão. Mas em razão dos filtros das várias traduções para o Português muito do seu pensamento original acabou se tornando obscuro e hermético para os que iniciam estudos nas áreas acima mencionadas.

 

Pode-se afirmar, sem receio, que o documento atribuído a Vigotskii converteu-se em referência bibliográfica obrigatória em TCCs, dissertações e teses em processo de qualificação e defesa na graduação e em todos os programas de pós-graduação lato e stricto sensu em Artes, Educação e Psicologia que buscam comprender mais - e melhor - as complexas relações e interrelações entre as Artes Cênicas/Teatro e a Educação à luz da Psicologia Histórico-Cultural na contemporaneidade.

 

Para muitos, o que caracteriza uma versão ou tradução livre é a falta de rigor quanto ao uso de palavras efetivamente empregadas no texto original por um autor. Mas, ao traduzir-se um enunciado discursivo, de uma língua para outra, não resultaria muito tímido - e simultaneamente arrogante - qualquer empreendimento que pretendesse declarar-se supostamente "fiel" aos vocábulos utilizados originalmente pelo autor ou julgar haver um "único" e supostamtente "correto" significado original para suas palavras?

 

Existem estruturas semânticas enunciativas que alteram drasticamente a argumentação desenvolvida por um autor quando se opta por uma tradução delas, digamos, "palavra por palavra" – observe neste sentido o resultado que se pode conseguir ao serem acionados os agentes artificiais tradutores de texto amplamente disponibilizados na Internet. Imagine-se então o efeito em cascata das traduções de traduções sobre o sentido dos enunciados...

 

A tradução livre, ou melhor a versão, apresentada aqui, não renuncia à atividade (re)criadora de sentido por parte do tradutor/intérprete. O que faço a seguir é dialogar com as idéias defendidas por Vigotskii no texto, conforme as compreendi, apresentando-as de modo co-autorizado.

Aos familiarizados com os conceitos pedagógicos não será difícil entender a versão como "transposição didática" de conteúdos complexos e densos, como procedimento recomendado para o ensino expositivo seja no âmbito da educação regular, continuada ou à distância - que é reivindicado por um tipo de pedagogia em geral consignada como crítico-social dos conteúdos.

Qualquer eventual incomprensão durante a exposição do pensamento genuíno do autor deve ser creditada exclusivamente ao docente responsável pela versão/transposição didática. Recomendo a leitura do texto em italiano e russo a todos os que não enfrentam qualquer dificuldade para a decodificação da escrita nestes idiomas.

As traduções inglesas de outros textos de Vigotskii a que tive acesso não me pareceram tão próximas do seu pensamento quanto as traduções espanholas e italianas – línguas derivadas do tronco liguístico latino.[18]

 

A presente versão destina-se atender à demanda de estudantes que falam e pensam em português. Dizem que só é possível filosofar em Alemão, e isso não se fala à toa, para mim, confesso humildemente, o único filósofo d"além mar que eu acredito compreender um pouco é Baruch (Bento) de Espinosa - e creio que o mesmo pode ser extensivo a outros membros da comunidade de letrados em língua portuguesa. Talvez a compreensão mais fácil das idéias de Espinosa se deva ao fato de ele escrever em alemão e holandês mas pensar em português, em razão de suas orígens lusitanas. Curioso Vigotskii mencionar Espinosa e suas idéias como rizoma para exposição dos fundamentos de sua teoria filosófica da atividade do psiquismo humano, além de Hegel e Marx.

Seja pelo fato de o idioma russo ter sido criado de modo planificado e muito recentemente em relação às línguas clássicas faladas na Europa ou ainda por que na Russia comunicava-se e escrevia-se durante muito tempo em francês e alemão até que se desse a criação do alfabeto russo fundindo contribuições do grego e outras línguas muito antigas do oriente, na tentativa de unificação dos diferentes povos asiáticos e europeus concentrados naquela região intercontinental do planeta, a impressão que se tem é a de que Vigotskii parece pensar em português...

Por último sinto-me no dever de advertir os interessados no assunto que um leitura que considero complementar obrigatória para o entendimento genuíno do documento objeto da versão apresentada aqui é Método da Economia Política de Karl Marx.[19] Sem uma aproximação através das lentes da filosofia do materialismo histórico-dialético não se sustenta e se desfaz como um castelo de areia ao ser atingido pela mais tênue marola toda a belíssima construção das idéias de Vigotskii.

Uma outra leitura que julgo complementar optativa é a de livros sobre a história das Artes e do Teatro que focalizam o período pre e pós-revoucionário na Russia.[20] Vigotskii escreve colocando-se em meio as discussões inflamadas que ocorriam neste período riquíssimo da criatividade artística naquela parte do planeta. Eram aqueles anos tomados pelo que se convencionou denominar de uma espécie de modismo: a "teatromania".

Aliás, é importante revelar também que, antes de Vigotskii se dedicar à colaboração da psicologia marxista, seu interesse concentrava-se na problemática das Artes como revela sua monografia de graduação Psicologia da Arte [que prefiro referir por Psicologia das Artes][21] escrita apenas aos 17 anos, bem como sua atividade na animação de círculos de discussão sobre o assunto em Gomel, quando atuava ainda como professor simpatizante das idéias de Dewey e da educação ativa - mais conhecida no Brasil por escolanovismo [22]- e era o coordenador da Seção de Teatro do Departamento de Educação Popular assinando a coluna dedicada ao assunto no jornal local Polesskaja Pravda.[23]

Só me resta lhes desejar boas leituras!

SOBRE A PSICOLOGIA DA PERFORMANCE OU ATUAÇÃO TEATRAL

A questão da psicologia da atuação ou performance e da criação teatral é em si mesma, curiosamente, um problema antigo e absolutamente atual.

Se por um lado nunca existiu, pelo que sei, uma abordagem suficientemente notável deste aspecto da criatividade humana, por outro lado, nenhum diretor ou crítico teatral, nenhuma pessoa de teatro de modo geral, de maneira alguma, há se perguntado sobre isso ou posto sua atividade prática, seu discurso, seus ensinamentos nem seu juizo ou concepções sobre o assunto a serviço da discussão e elucidação deste importante aspecto da psicologia: a atuação ou performance teatral.

Algumas personalidades do Teatro no entanto criaram sistemas extraordinariamente complexos para enunciação/encenação de textos dramáticos - que tiveram grande repercussão e lhes renderam elogios por sua autoria, sem que aspirassem mais do que os louros da originalidade ou que de modo algum renunciassem aos cânones de seus estilos e maneirismos, como é o caso, por exemplo, do Sistema de Stanislavskii, cuja completa elaboração teórica e de ensino ainda não podemos dispor totalmente.[24] Ninguem até hoje genuinamente se dedicou com desassombro a discutir esse problema ou pode iluminar a questão da aplicação e funcionamento da psicologia da atuação ou performance teatral de modo suficiente.

Se conseguimos retroceder à gênese do problema da psicologia da performance e da criação teatral, voltaremos longe no tempo e constataremos quão grande, complexa e difícil tem sido a abordagem desta questão ao longo dos séculos. Essa problemática ocupou de diferentes modos as mentes dos mais notáveis representantes das artes cênicas mas o seu principal fundamento foi indiscutivelmente assentado pelo célebre PARADOXO DO ATOR de Diderot, o qual já prenuncia de modo substancial a complexidade da questão. Os que vieram depois dele apenas fizeram tímidas contribuições sem acrescentarem nada de absolutamente novo ao problema.

Se há algo de fundamental na problemática da criatividade subjacente à atuação ou performance teatral isso só poderá ser revelado quando sua abordagem ocorrer a partir do reconhecimento das origens sócioculturais e das bases materialistas históricas e dialéticas do psiquismo humano. Só assim poderá ser revelado o vigor e o frescor da criatividade durante a atuação teatral - que causa tanto espanto e admiração à compreensão ingênua deste intrigante fenômeno psicológico.

Seguramente o problema da performance teatral, não obstante todas as diferenças entre as interpretações existentes deste fenômeno mantêm como "caroço" [hardcore/núcleo duro] da questão o paradoxo existente na ocasião da expressão da emoção do atuante. Por outro lado, em tempos mais recentes, esta problemática densa tem sido penetrada através de pesquisas de outro gênero.

As novas indagações a respeito do problema começaram a inserir a profissionalização da atuação teatral no campo da psicologia social colocando em primeiro plano o trabalho formativo para a performance teatral por parte dos responsáveis pela profissionalização deste tipo de atividade.

A discussão resume-se ao bate-boca sobre o que ocorre na performance ou atuação teatral: se ela resulta de alguma qualidade psíquica geral deste fenômeno ou justifica-se pelo "talento" pessoal.

No intuito de se garantir ou prever algum sucesso profissional do sujeito no campo desta atividade artística criaram-se vários testes de aptidão para avaliar a imaginação criadora, a motricidade, a memória verbal, a excitabilidade do sujeito - muito semelhantes à psicometria aplicada para seleção de candidatos em qualquer outra atividade técnicoprofissional, ou seja, segundo a "medição" das habilidades pessoais requeridas para o desempenho satisfatório de uma função, como em qualquer outra área de trabalho.

Para os representantes desta corrente da psicologia os sujeitos que apresentam os "melhores" índices de desempenho nestes testes seriam os que possuem "vocação" para este tipo de performance.[25]

Apenas muito recentemente nota-se uma tentativa de superar os limites e defeitos de cada uma destas abordagens ao fenômeno da atuação teatral - que desperta nosso interesse por colocar essa questão de um novo e surpreendente modo.

Este novo modo é o que usaremos para abordar a problemática da psicologia da atuação ou performance teatral, quer dizer, como algo ainda desconhecido e que quase nunca foi até agora, satisfatoriamente, estudado por ninguém.

A maneira didática para expor a nossa abordagem a este intrigante problema é ressaltar a contradição ou oposição entre os dois tradicionais tipos de abordagem à questão.

A primeira delas procura equacionar o problema recorrendo a uma suposta crença ingênua na qualidade psíquica geral para a ocorrência do fenômeno, o que não vai além do reconhecimento do "talento" enquanto senso comum através de técnicas introspeccionistas.[26]

Já a segunda tem como peculiar um viés metodológico que é o do "isolamento" do fenômeno da performance ou atuação teatral como habilidade singular ou "vocação" do sujeito a partir de testes aplicados em laboratórios, o que as faz de algum jeito se oporem uma a outra enquanto sistemas diferentes de indagação.[27]

A principal falha de ambas é seu total empirismo, isto é, a tentativa de partir da superfície aparente do fenômeno para compreender os fatos com base em sua "imediatez" e assim arrogarem-se o estabelecimento de regras supostamente "científicas". [28]

Na realidade, a observação da atuação teatral típica das primeiras abordagens (baseadas no método introspeccionista) é um campo fértil para a constatação de grande número de aspectos originais, idiossincráticos e extraordinariamente significativos na esfera da vida cultural, uma vez que são acompanhadas as práticas de grandes criadores e mestres das artes cênicas. Mas toda a profusão de dados coletados a respeito do fenômeno que se propõem discutir não têm ultrapassado o status de uma recolha não-científica de observações pontuais da ocorrência artística de uma "qualidade psíquica geral".

De maneira semelhante, o empirismo radical das segundas abordagens (baseadas em "testes" de aptidão) que caracterizam a psicotecnia (no âmbito da reflexologia ou behaveourismo), na tentativa desesperada de mensurar "controladamente" a ocorrência objetiva do fenômeno, supostamente julgam abraçar um procedimento científico mas acabam subjugando-o teoricamente a um método predeterminado que também não vai além da superfície ou ocorrência "imediata" dos fatos.

Como já se disse antes, cada uma dessas abordagens tem seus próprios limites e imperfeições. A tentativa de explicação da performace teatral que parte do desempenho extraordinário de atores ou do ensino de técnicas para a atividade teatral, da observação dos ensaios e das apresentações de um espetáculo, isto é, que busca generalizar a experiência única de um artista cênico ou as habilidades de um sujeito em particular, concentra sua atenção na especificidade e peculiaridade, na originalidade de uns poucos eleitos, atribuindo apenas a eles a capacidade expressiva das emoções. Desse modo submetem todos os aspectos intrigantes deste fenômeno ao desempenho extraordinário de uma pessoa e de um ou outro artista cênico buscando infrutiferamente generalizar sua atuação através de normas psicológicas para todos e qualquer um.

Ocorre que a psicologia da atuação teatral é apenas um aspecto do psiquismo tipicamente humano e justamente por integrar um sistema mais ambrangente do funcionamento mental, quando se supervaloriza unicamente o desempenho pessoal, seja o "talento" ou a "vocação", esvai-se todo significado científico deste complexo fenômeno, banalizando-o e limitando-o ao âmbito do corriqueiro e do cotidiano.

Em outros termos, quando se sobrepõe um sistema particular de atuação teatral ao sistema totalizante e geral da performance teatral, ocorre a tentativa ingênua e infrutífera de explicação deste intrigante fenômeno do psiquismo humano em razão deste reducionismo e viés metodológico, não podendo sua descrição ser em hipótese alguma considerada mais do que apenas um relato casual. É o que ocorre no sistema de Stanislavskii e no sistema psicológico de Ribot. [29]

A natureza da pesquisa psicotécnica (do behaveourismo ou reflexologia) também não se dá conta de sua superficialidade para abordar toda a originalidade e riqueza da psicologia da atuação teatral por não conseguir enxergar na criação artística cênica nada além de uma combinação de estados psicológicos do mesmo modo como ocorre em toda e qualquer atividade laboral. Não leva em conta que a atuação teatral é em si mesma a criação de um estado psicofisiológico singular e falha ao tentar estudar a qualidade cênica em sua plenitude e formas múltiplas de ocorrência no psiquismo humano através de sua "medição" através de "testes" supostamente objetivos e corriqueiros, banalizando a riqueza da atuação teatral e sua especificidade psicológica.

A novidade da nossa abordagem a esta problemática reside, antes de tudo, em um esforço no sentido de superar o radicalismo empírico presente nessas duas tradicionais maneiras de se equacionar a questão, buscando conhecer a psicologia da atuação teatral em toda sua plenitude enquanto atividade qualitativamente nova e singular à luz de sua ocorrência psicológica geral no amplo espectro do psiquismo humano e, ao mesmo tempo, fazer com que os aspectos objetivos deste fenômeno passem a ser explicados e adquiram um caráter totalmente diverso convertendo assim o abstrato em concreto.[30]

Se antes os testemunhos da ocorrência do fenômeno na atividade teatral deste ou daquele artista cênico, em qualquer época, eram considerados de um ponto de vista que forjava uma suposta natureza eterna e imutável (biológica) do Teatro, hoje os estudos da atuação teatral se aproximam dos fatos antes de tudo como não descolados do seu contexto sociocultural e portanto extremamente densos e complexos em razão de sua inserção histórica.

A psicologia da atuação ou performace coloca-se como um problema da psicologia concreta e de certo modo inconciliável com a lógica formal revelando muitas contradições abstraídas dos diferentes sistemas explicativos: a psicologia da performance teatral vai além da corroboração míope de dados supostamente objetivos típica da psicometria.

Reivindica-se aqui sua explicação enquanto contradição histórica viva e concreta superando as várias maneiras reducionistas com que tem sido considerada e que mudam de tempos em tempos adequando-se às necessidades de diferentes concepções da atividade teatral.

O cerne ou "núcleo duro" da questão reside, como muito bem revela o PARADOXO DO ATOR de Diderot, no fato de que na atuação teatral o artista cênico ao representar as grandes paixões e emoções humanas e contagiar afetivamente os espectadores não renuncia à consciência de que o faz intencionalmente mantendo-se, contraditoriamente, afastado e a salvo delas.

A mais importante interrogação do fenômeno aqui em estudo é feita já por Diderot: O SUJEITO AO ATUAR TEATRALMENTE VIVE REALMENTE AQUILO QUE REPRESENTA OU SUA REPRESENTAÇÃO É UMA SIMULAÇÃO OU IMITAÇÃO DE UMA VIVÃSNCIA REAL?

Eis a "senha" para a "abertura do cofre" e resolução do problema fornecida por Diderot: o estado psicológico em que se encontra o sujeito durante a atuação ou performance teatral.

AO INCORPORAR UM PAPEL O SUJEITO TORNA-SE VERDADEIRAMENTE OUTRO?

Essa questão está longe ainda de ser satisfatoriamente respondida porque solicita apenas uma resposta. Embora o próprio Diderot já sinalizasse o caminho para a sua resolução ao contrapor a atuação teatral de duas grandes atrizes de sua época (Clairon e Dumesnil) que rerpesentavam de modos diferentes um determinado papel, constatando que suas atuações eram únicas e singulares ao tempo em que ambas performavam, cada uma a seu modo, o mesmo papel.

Segundo a magnífica demonstração de seu pensamento sobre a questão Diderot afirma que antes de pronunciar em uma atuação teatral os textos: "Zaira, você chora!?" ou "Você fique onde está, filha!" os atuantes estão conscientes e sabem o que precisam fazer. Todo o impacto de sua performance sobre a platéia reside em levar o público a perceber como as personagens que atuam se sentem através de gestos e signos exteriores das emoções, mas sem se tornarem reféns do afeto que representam (re)viver em suas atuações.

Os gritos e soluços do atuante bem como todos os seus movimentos em um deslocamento estão registrados em sua memória e são exaustivamente ensaiados antes de serem apresentados ao público. Os atuantes sabem o momento em que devem sacar um lenço e quando deve brotar uma lágrima. Tem claramente em mente quando pronucnciar uma palavra ou som, o tempo exato de fazê-lo – nem antes nem depois.

Vozes trêmulas, enunciados interrompidos, sons sufocados e rápidos, tremores, pernas bambas, veemência e furor ao proferir palavras e frases são apenas um "fazer-de-conta" rigorosamente ensaiado. Dor e sofrimento, tudo, um sublime simulacro - um "golpe de mestre"...

As paixões mostradas pelo atuante através de sua expressividade cênica (corporal), como muito bem disse Diderot, são componentes estranhos ao texto dramático emquanto Literatura mas absolutamente necessários ao sentido que os mesmos possam adquirir em uma representação teatral. São parte de uma unidade cênica que mescla o verbal e o não-verbal de modo consciente e sígnica (convencional).

O que é substancial no paradoxo da atuação teatral é a presença de dois tipos de estado psíquico que não se fundem completamente.

Primeiramente Diderot chama atenção para o caráter suprapessoal ou "universal" das emoções que são transmitidas durante uma atuação teatral. A rigor não se tratam bem de "emoções" mas de sua expressão convencional ou "idealizada" e dos estados psicológicos reais a que elas correspondem.

Os sentimentos expressos pelo atuante não são a expressão de um estado psicológico real do sujeito, trata-se antes do modo particular de como esta ou aquela pessoa que performa uma emoção teve oportunidade de vivenciar determinado sentimento (memória afetiva) ou que resulta da sua imaginação (re)criadora. São artifícios, suscitados pela força criativa dos seres humanos e como tal devem ser considerados: procedimentos não-naturais. São semelhantes a qualquer outra obra de arte assim como um romance, uma música, uma escultura, um filme: artefatos culturais.

É por esta razão que os sentimentos na atuação teatral não se confundem com os sentimentos do sujeito que os performa. Como disse Diderot "um gladiador não morre como qualquer um, na cama..."

Ao afirmar que um grande artista cênico seria como um gladiador romano Diderot queria dizer que nas atuações teatrais de uma morte ela precisa ser apresentada pelo atuante de modo impactante e extracotidiano. A morte verdadeira e simples em uma atuação teatral contradiria o sentimento estético – fundado na convenção, no acordo, na cumplicidade entre o que se apresenta na área de representação (palco) e na área de observação (platéia).[31]

Então o conteúdo dos sentimentos na atuação teatral é diferente do conteúdo dos sentimentos na vida real não apenas do ponto de vista do que possa ser ou seja representado neles. O mais importante é que eles divergem no modo como se organizam as conexões psíquicas que levam à sua expressão cênica (corporal).[32]

Tentando, ao seu modo, chamar atenção para essa qualidade outra do sentimento na atuação teatral Diderot recorre ao exemplo de um casal de atuantes profissionais que se odiavam mutuamente mas representavam, sem nenhum pudor ou constrangimento, cenas nas quais demonstravam nutrir grande apreço um pelo outro. E que foram ovacionados "em cena aberta" pela platéia justamente por isso.[33] O fato teria ocorrido durante uma apresentação da peça O Traído Imaginário de Moliére, na cena terceira do quarto ato.

Mais adiante Diderot reporta-se a este episódio do casal de atuantes referindo-o como "cena dupla": uma cena de amantes e outra cena de conjugues. Ou seja, uma cena de amor atuada que sobrepõe-se a uma cena de litígio familiar real vivida. Assim ele julga conseguir demonstrar exemplarmente a pertinência de sua tese.

Como já disse antes, a tese de Diderot se fundamenta em dados concretos e nisso reside sua força, seu significado não efêmero. É a semente de uma futura teoria científica da psicologia da atuação.

Mas existem fatos de caráter oposto na atuação teatral que contradizem, em parte, o que afirma Diderot. Estes fatos são descritos em um outro sistema de atuação teatral que apregoa um outro tipo de vivência cênica durante a atuação de papéis. É o caso do recém-criado método para atuação teatral de Stanislavskii.

Todavia a suposta contradição existente entre eles, insolúvel por uma psicologia abstrata porque formulada como uma questão metafísica pode ser resolvida facilmente quando se aborda esta problemática do ponto de vista do materialismo histórico-dialético.

Já afirmamos que o novo equacionamento do problema da psicologia da atuação deve ser entendido como uma questão da psicologia concreta. Neste caso o pesquisador adotará como guia ao contrário de uma lei eterna e imutável, de natureza biológica, para explicar as emoções do atuante na performance teatral, as leis históricas que colocam em movimento os diferentes modelos e sistemas que regulam a atuação cênica no Teatro.

Percebe-se na confrontação ingênua do PARADOXO DO ATOR de Diderot a tentativa infrutífera de muitas abordagens psicológicas para resolverem o problema da atuação teatral baseadas em fundamentos absolutos sem levar em consideração as formas e os aspectos históricos concretos do Teatro, resultando todas portanto em considerações débeis

A única solução para o PARDOXO DO ATOR de Diderot, o pressuposto fundamental de qualquer abordagem à problemática da performance teatral, é o de que a psicologia da atuação está interconectada com a ideologia social de sua época, e que por isso está sujeita a mudanças assim como as formas exteriores da representação teatral, seus estilos de atuação e seus conteúdos através dos tempos. A psicologia da atuação formulada por Stanislavskii difere da psicologia da performance da época de Sófocles na mesma extensão em que um edifício teatral dos dias de hoje se diferencia de um anfiteatro grego.

A PSICOLOGIA DA ATUAÇÃO TEATRAL É UMA CATEGORIA HISTÓRICA E DE CLASSE, NÃO UMA CATEGORIA BIOLÓGICA! Esta é única tese que exprime a concepção central da nova abordagem que é apresentada aqui e que solicita um outro tipo de equacionamento do problema.

Nesta abordagem entende-se que não é apenas a regularidade biológica que determina definitivamente o caráter das emoções na atuação teatral. Mas, ao contrário, que as emoções constituem apenas uma parte da complexa ATIVIDADE psíquica envolvida na criação artística cênica; que a psicologia da atuação teatral cumpre também uma função social, de classe, historicamente situada; que reflete o espírito coletivo de uma época, de uma classe.

Por conseguinte, as leis que regulam as paixões, as leis da reflexologia [34]e do entrelaçamento dos sentimentos na atuação teatral de um papel com os sentimentos da vida real do atuante só podem ser explicadas e compreendidas a partir da PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL DA ATIVIDADE/CHAT [35]e não por uma psicologia naturalística ou de natureza exclusivamente biológica.

Só desse modo é possível explicar, para além do ponto de vista da regularidade biológica do psiquismo, a emergência desta ou daquela forma histórica de atuação teatral.[36]

Não é a natureza real das paixões humanas que determina a emoção do atuante na performance teatral. A expressão cênica das emoções na atuação teatral revela um modo diferente de sentir as paixões que pode dar origem a muitas formas ou possibilidades para sua representação artística.

Paralelamente ao reconhecimento da natureza histórica do problema chega-se à conclusão de que nos deparamos frente a uma questão que se apresenta sobre um duplo aspecto quando pressupomos a sociologia nos estudos teatrais.

Em primeiro lugar, como em qualquer ocorrência do fenômeno psicológico, a psicologia da atuação insere-se na realidade sociopsicológica, e deve ser estudada e mapeada levando-se em conta a complexa totalidade do meio no qual se encontra encrustrada e jamais de modo isolado ou de(s)contextualizadamente.

Será necessário descobrir sua função numa época determinada e numa classe determinada para que seja revelada a extensão e intensidade da influência da atuação teatral sobre seus espectadores e, a seguir, seja constatada a sua natureza social nas formas teatrais que assume - em cujo âmbito o sentimento estético só então poderá ser concretamente explicado.

Em segundo lugar, reconhecido o caráter histórico do problema, será preciso, ao tratarmos da atuação teatral, começarmos a levar em conta não tanto os aspectos psicológicos pessoais do atuante mas sobretudo os aspectos psicossociais que influenciam a forma da sua atuação. As emoções do atuante portanto não devem ser compreedidas e expressas a partir dos sentimentos do sujeito, do "eu" mas dos sentimentos do coletivo, do "nós". O atuante a rigor (re)cria ao atuar um sentimento, uma sensação, uma emoção de modo impessoal, porque representa os afetos conhecidos e compartilhados pelos seus observadores.

Antes de ocorrer uma "encarnação" por parte do atuante (de sensações, sentimentos e emoções) a atuação teatral assemelha-se mais a um tipo singular de "texto" que recorre à expressão cênica (verbal e não-verbal) para alcançar e elevar a consciência social.

A nostalgia do texto dramático As Três Irmâs de Tchekov (re)criado no palco pelos atuantes do Teatro de Arte de Moscou contagiou todos os observadores porque era a formulação cênica de todo um estado de ânimo de um amplo círculo social, que se reconhecia nela representado e conscientizava-se de si e para si ampliando o seu autoconhecimento através da atuação teatral e expressividade artística durante a vivência estética que lhe era proporcionada por este tipo singular de atividade do psiquismo humano.

À luz deste entendimento se torna claro o controle que deve ter o atuante sobre sua própria atuação. Mas apenas isso tem um valor limitado. Os depoimentos do atuante sobre as suas sensações durante a representação teatral, dados de sua auto-observação, não perdem totalmente o valor nem a enorme importância que possuem para o conhecimento a respeito da performance teatral, porém deixam de ser a única fonte universal para o entendimento do problema.

Os relatos introspeccionistas demonstram como o atuante se conscientiza de suas próprias emoções, e de como estes depoimentos se configuram interconectados com traços de sua personalidade, mas NÃO DÃO CONTA DE EXPLICAR A ATUAÇÃO TEATRAL PLENAMENTE. Eles são apenas parte dos fatos e iluminam precariamente a realidade das ocorrências: limitam-se a serem especulações que se encontram apenas no nível da autoconsciência do atuante.

Para que seja possível extrair algum valor científico de tudo isso nós precisamos compreender o que a atuação teatral é em si mesma. Devemos entender que a psicologia da performance está interconectada com o ambiente sociohistórico. Só assim se tornará nítido o que realmente representam estes relatos de vivência na/da atuação teatral e revelados os conteúdos culturais que perpassam a performance cênica do atuante - que são transmitidos e compartilhados com os observadores de sua atividade.

Não se deve esquecer que as emoções expressas pelo atuante enquanto atividade artística vão além da sua personalidade e são parte do diálogo que se estabelece entre os atuantes e seus observadores.

Essa interação entre atuantes e observadores da/na atuação teatral, que repercutem nos enunciados cênicos a que Paulhan brilhantemente denominou de "trasformação social do sentimento." Esses novos sentidos colaborados da/na representação teatral só podem ser verdadeiramente compreendidos quando a atuação se insere em um amplo campo semiótico de natureza sociopsicológica do qual são parte integrante.

Deste ponto de vista não é possível desconectar o conteúdo concreto (real) da atuação do que é constituído pelos conteúdos do papel performado, dos interesses pessoais de uma personagem, do seu significado e relevância sociopsicológicos, da sua função estética ou artísticocultural.

Agora chegamos no ponto nodal da questão, que em razão de não se tornar suficientemente claro para alguns, há dado origem, a nosso ver, a toda uma série de equívocos no entendimento do problema que interessa aqui: a atuação teatral.

Por exemplo, a postura crítica ou distanciamento/estranhamento em relação ao papel atuado difere radicalmente da insistência do atuante na defesa da existência "mágica" ou "ilusionista" para além da criação artística do papel durante o desempenho de sua atuação ou performance. [37]

Muitos dos que têm se dedicado a compreender o Sistema de Stanislavskii, têm confundido os seus fundamentos psicológicos com os efeitos estilísticos naturalistas a que um determinado tipo de atuação busca alcançar. Em outros termos: têm confundido o Sistema de Stanislavskii com sua prática de encenação e atuação teatral.

É verdade que qualquer prática teatral constitui a expressão concreta de um determinado sistema de atuação, mas isso não é suficiente para iluminar o problema da psicologia da performance. Não exaure todo o seu real sentido e significados, que se encontram muito além da sua expressão cênica. A expressão estética (dos sentidos, da sensibilidade) em si mesma não será suficiente para explicar a complexidade e ampllitude deste fenômeno da atividade psíquica tipicamente humana, ela precisa converter-se em expressão artística.[38]

Um passo em direção ao encontro do real entendimento da natureza da atuação teatral foi dado por Vakhtangov [39]como pode ser demonstado em sua primorosa encenação de Turandot, de Gozzi. [40]

Ao pretender neste espetáculo uma atuação teatral que não se limitasse apenas à ilustração do conteúdo da trama, mas questioná-la [a trama] ou desafiá-la recorrendo à ironia, ao riso crítico sobre o seu conteúdo "trágico" Vakhtangov cria verdadeiramente um NOVO CONTEÚDO para este clássico do Teatro.

Conta-se que já no primeiro encontro com os atuantes para o ensaio da peça, VaKhtangov propôs o seguinte desafio: que os atuantes buscassem performar os papéis da trama como se fossem cômicos "grotescos" ou "italianos" (que o espetáculo tivesse o tom das representações dos atuantes na tradição da Commedia d"ellArte).[41]

Ele pediu, por exemplo, a atuante que iria performar o papel de Adelma que falasse o texto não como se fosse a pessoa Adelma, mas como uma comediante "grotesca" a performar aquele papel. Ele sugeriu que ela agisse como se sua performance ocorresse sendo ela mulher do diretor do espetáculo e amante do atuante que performava o protagonista, que estivesse usando calçados bem maiores que seus pés e caminhasse de modo rumoroso e espalhafatoso pelo palco. Já para a atuante que iria performar Zelima pediu-lhe que agisse também de modo "grotesco" e que tivesse preguiça de atuar o seu papel e que isso fosse revelado despudoradamente aos observadores de sua performance através de escancarados bocejos...

Percebe-se claramente que VaKhtangov (re)cria e transforma intencionalmente o conteúdo da ópera, ressignificando-o com a forma cênica (corporal) com que ele [o conteúdo] é apresentado aos observadores amparado na atuação teatral típica da Commedia Del"Arte mas, como de modo semelhante como ocorre no Sistema de Stanislavskii, trazendo para a atuação teatral a verdade do sentimento, com base em justificativas interiores para a forma cênica.[42]

A "verdade interior", disse Zachava[43]prerrequisito fundamental para a atuação no Sistema de atuação formulado por Stanislavskii é a mesma no modo de atuar proposto por VaKhtangov. Embora o conteúdo dos sentimentos dos atuantes sejam diferentes, a verdade com que eles são expressos é a mesma porque, em ambos casos, uma "verdade interior" coloca em movimento a genuína criação artística concretizada em formas exteriores que não são coincidentes.

Demonstra-se como a "verdade interior" do Sistema de Stanislavskii, e o naturalismo dos sentimentos que ele apregoa se põe a serviço de um objetivo estilístico completamente oposto, o que revela que o Sistema não pode se limitar a um único uso concreto ou aplicado apenas a determinado modo de atuação teatral. [44]

Isso quer dizer que o sentido da performance teatral para o atuante não pode se limitar à generalização de suas únicas vivências estéticas mas que o seu significado muda quando se leva em consideração que nem todos os conteúdos da atuação resumem-se às emoções particulares de quem as performa e que este tipo de explicação generalizante para a atuação teatral – como "encarnação" mágica de uma personagem - não consegue atingir o verdadeiro caráter ou a natureza artística em si da performance teatral.

Significa dizer que o autêntico e genuíno paradoxo da atuação teatral não tem sido suficientemente explorado por toda uma série de investigações do problema. A verdadeira compreensão da questão não pode se resumir às vivências emocionais do atuante todo o tempo mas deve ir além de seus limites, distanciar-se delas ao menos um instante, estranhá-la.

O mesmo ocorre quando nos deparamos com a psicologia da atuação. Se antes a emoção do atuante durante a atuação teatral era vista como uma sendo algo fechado sobre si mesmo, uma mundo que existe por si só, agora sabe-se quais as leis que regulam esta complexa atividade do psiquismo humano, através de análises criteriosas de sua composição, da descrição escrupulosa das formas cênicas e estéticas que ela assume.

Isto é, AS EMOÇÕES NA ATUAÇÃO TEATRAL SÃO UMA VIVÊNCIA AFETIVA ESTÉTICA, criada artificialmente, ou seja ARTÍSTICAMENTE, distinguindo-se das vivências afetivas reais, não podendo ser desconectadas do contexto em que ocorre a sua criação ou construção.

Nós reafirmamos que só é possível solucionar o problema da atuação teatral sem renunciar ao exame do momento e das circunstâncias em que ela ocorre, que é fundamental para sua correta interpretação e entendimento.

O primeiro relato da vivência afetiva na atuação teatral é o de Stanislaskii que a entende como possuindo um caráter espontâneo: "o sentimento não se comanda" ele afirma "não falamos de algum poder direto sobre a evocação de um sentimento deste tipo, como ocorre no processo associativo. E se o sentimento não pode ser estimulado forçadamente e diretamente, ele pode ser suscitado a partir de nossa vontade, pode ser representado". Mas toda a pesquisa da psicologia da atuação na atualidade sobre as emoções do atuante demonstra que a ela pode ser provocada intencional e artificialmente mas não para gerar um tipo de sentimento como ocorre na vida real, como se fosse um processo associativo como o quer a reflexologia. O sentimento artísticoestético durante a atuação teatral é forjado voluntariamente, ainda que seja "estimulado" ao provocar-se uma reação "direta" do sistema nervoso central. Ele é antes fruto do pensamento sobre as próprias ações corporais, nisso resume-se a sua natureza teatral.

É através dessa via tortuosa, e como sabiamente dizia Stanislavskii, que se estimula uma excitação; a partir da sutileza com que um sentimento é provocado. Só através de algum "desvio" ou "mediação" se pode convocar um sentimento como o que ocorre na atuação teatral. Estes sentimentos, continua Stanislavskii, "não são os mesmos que o sujeito vivencia na vida real. Eles são sentimentos que foram despojados de tudo que é supérfluo, os quais são generalizados e limpos de sua falta de conteúdo específico."

De acordo com a correta expressão de L. Ya Gureviev eles são filtrados pela realização artística, por toda uma série de novas características se distingue das emoções às quais correspondem na vida real. E concordamos em parte com a tese de Gureviev de que "a solução da questão não se resolve optando pelos contrapontos extremos com que tem sido fartamente abordadoo problema, mas de um novo ponto de vista em que o fenômeno possa ser elevado a um outro plano. Deste novo ponto de vista se poderá unificar tudo que vem sendo dito sobre a atuação e criação teatral, desde o testemunho dos atuantes/criadores às contribuições da psicologia científica da última década."

Mas isso é apenas parte do problema. A outra parte consiste em que O PARADOXO DO ATOR, como já se disse, não apenas se transfere à psicologia concreta, mas elimina toda uma série de questões tidas como insolúveis; ele trata da constituição mesma do conteúdo da atuação teatral e, ao fazer isso, promove toda uma série de novos questionamentos refazendo a trajetória histórica desses estudos e sinalizando sua solução.

Do ponto de vista que nos interessa, ao invés de um único sistema explicador e universalizante para a compreensão da psicologia da atuação teatral será necessária sua explicação para além da biologia e estética, em modo de espiral - que dá uma volta a cada salto qualitativo - ou seja, uma explicação psicológica concreta e historicamente movimentada, e flexível, portanto relacionada aos estilos ou formas teatrais diferenciadas de todas as épocas e povos. Só desse modo se poderá compreender a historicidade implicada no paradoxo: conforme a atuação do atuante em um determinado empreendimento cênicoestético de acordo com os estilos de atuação e sua natureza cultural e sóciohistórica.

Partes: 1, 2, 3, 4


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