Direitos Republicanos, Identidades Coletivas e Esfera Pública no Brasil e no Quebec



Partes: 1, 2, 3

O processo de redemocratização no Brasil, que desembocou na promulgação da nova Constituição em 1988, e as demandas por reconhecimento no Quebec trazem à luz questões interessantes para uma reflexão sobre a relação entre identidades coletivas e a definição de direitos de cidadania na esfera pública. Especialmente no que concerne à articulação ou intersecção entre direitos individuais e coletivos, ou direitos diferenciados por grupo para utilizar uma expressão de Kymlicka (1995). Estes direitos estão intimamente associados a identidades culturais e/ou sociais, o que coloca questões de difícil resposta para as teorias contemporâneas sobre democracia e cidadania, que têm como foco o indivíduo autônomo, sujeito normativo das instituições.

Enquanto no Brasil a relação entre identidades sociais e cidadania se desenvolveu através de um processo de expansão de direitos mediado por um certo sindicalismo — cujas lideranças eram cooptadas pelo Estado e mediavam a articulação de suas corporações com este (o chamado peleguismo) —, tendo como pano de fundo uma perspectiva cultural que estrutura o mundo social como uma hierarquia, já no caso do Quebec o exercício dos direitos de cidadania é percebido pelos franco-quebequenses como sendo significativamente prejudicado pela falta de reconhecimento de sua identidade nacional ou cultural. Dado que o Quebec, sendo uma província canadense, tem grande apreço pelos valores do individualismo e da igualdade, sua comparação com o caso brasileiro produz um cenário contrastante que ajuda a iluminar as dificuldades oriundas da articulação entre direitos individuais e identidades coletivas para a definição da cidadania nas democracias contemporâneas. Na mesma direção, a comparação sugere que uma análise dos direitos de cidadania requer não apenas um foco na investigação de como estes direitos são de fato praticados in loco, mas demanda também um exame da relação entre as dimensões legal e moral destes direitos.

O fortalecimento dos sindicatos no cenário político brasileiro, ao lado de um certo fisiologismo cultural de longa data (marcado por práticas clientelistas normalmente associadas a políticos conservadores ou de direita), provocou recentemente um debate sobre a importância dos direitos republicanos — em defesa do interesse público contra práticas patrimonialistas de corporações e pessoas físicas —, caracterizados como direitos de cidadania de terceira geração.2 Entrementes, no Quebec, a falta de reconhecimento do seu carácter culturalmente distinto dentro do Canadá tem estimulado o crescimento de uma perspectiva nacionalista na província, que levou o Canadá a uma grande crise constitucional. Ainda que as mudanças desejadas para a superação dos respectivos problemas nos dois países demandem algum tipo de inovação no plano jurídico ou de reforma constitucional, os problemas em pauta também requerem desenvolvimentos de outra ordem. Isto é, como argumentarei no que se segue, tanto no caso do esforço para estimular uma maior preocupação com o interesse público e com o respeito aos direitos individuais (universalizáveis) no Brasil, como no caso do empenho pela garantia do reconhecimento de fato da identidade distinta dos quebequenses no Canadá, trata-se de mudanças que demandam uma aceitação genuína de certos valores, cuja efetivação implica sua internalização. Ou seja, trata-se de um processo que requer alterações não apenas no campo do comportamento, mas no das atitudes, e que não pode ser implementado por decreto ou a partir de iniciativas exclusivamente legislativas.

Neste empreendimento, (a) farei inicialmente um breve retrospecto do processo de expansão dos direitos de cidadania no Brasil (da era Vargas, nos anos trinta, à nova constituição de 1988), chamando atenção para o papel dos sindicatos na esfera pública, assim como para a nossa dificuldade cultural em universalizar o respeito aos direitos (básicos) de cidadania na vida cotidiana. Este quadro deve explicar, por um lado, porque a noção de direitos republicanos motivou um debate recente no Brasil3 e, por outro lado, porque as ações limitadas à esfera jurídico-legal são insuficientes para atacar o problema de maneira adequada. Passarei então para (b) a discussão da crise constitucional canadense, tendo como foco o significado da demanda por reconhecimento do Quebec, e atentando para as dificuldades que tal demanda suscita no resto-do-Canadá. Deste modo, a crise será contextualizada no âmbito das diferenças de visão que fancófonos e anglófonos têm sobre a história do Canadá e sobre o papel desempenhado por cada grupo no processo de formação do país, assim como no que concerne às suas divergências quanto ao lugar das identidades coletivas na esfera pública, sem deixar de lado os conflitos em torno da língua e da cultura ou o significado da Revolução Tranquila como um marco na transformação do nacionalismo quebequense. Aqui, também, procurar-se-á mostrar como a luta por mudanças no plano constitucional/legal representa apenas um aspecto do problema.

Finalmente, (c) irei me reportar aos dois casos para argumentar que o exercício da cidadania têm uma dimensão moral que não pode ser satisfatoriamente equacionada apenas no plano estritamente legal ou formal. Esta dimensão moral chama atenção para o caráter culturalmente contextualizado de todas as interações sociais, e envolve uma relação entre direitos e identidades, permeando as relações sociais no espaço público (englobando a sociedade civil e sua interface com o Estado), onde o simbolismo da ação social tem um papel central. Como tal, esta dimensão moral constitui um aspecto importante da experiência dos atores, situada no cerne do mundo da vida, a qual demanda renovação constante e não admite soluções ou arranjos permanentes nem está sujeita a legitimações definitivas. Neste sentido, a definição de regras de interação normativamente adequadas é uma passo importante mas insuficiente para que certos direitos de cidadania sejam contemplados. Uma vez que a idéia de direitos morais tenha sido estabelecida, a importância da cultura e da dimensão simbólica dos direitos vem à tona de maneira evidente, sugerindo a tematização da relação entre esfera pública e espaço público para viabilizar uma discussão mais detida sobre o exercício da cidadania na vida cotidiana.4

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