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Formação de educadoras e educadores com enfoque crítico de gênero no contexto das políticas educacio (página 2)

Maria Eulina Pessoa de Carvalho

Os problemas mencionados ocorrem em maior ou menor grau em muitas cidades grandes e pequenas das várias regiões do Brasil. Afetam famílias, estudantes, educadores/as e escolas. Há consenso sobre a contribuição da educação e da escola para a reprodução ou mudança cultural e social, e para o reforço ou superação desses problemas. O currículo, o conhecimento, as normas e valores escolares constroem ou desconstroem o mundo, as relações sociais... O currículo é campo de luta cultural, de reprodução e de produção, de prescrição e transgressão (SILVA, 1999). Portanto, cabe indagar: Como o currículo escolar, através da ação docente, está tratando as relações de gênero de acordo com a orientação dos Temas Transversais dos Parámetros Curriculares Nacionais? Que relações de gênero estão sendo vividas no currículo em ação em nossas escolas: mais ou menos opostas e excludentes? Mais ou menos hierárquicas? Mais ou menos livres e plurais? E como as instituições formadoras, o Curso de Pedagogia e as Licenciaturas, estão inserindo a questão de gênero na formação docente?

Urgência da inserção das problemáticas do sexismo e da iniqüidade de gênero na universidade e na formação docente

Até o momento, reconhecidamente, avançamos pouco na direção da inclusão do enfoque crítico de gênero nas políticas educacionais para a igualdade e diversidade, na formação profissional e, particularmente, na formação docente inicial e continuada, sobretudo se enfocarmos a dimensão prática dessas políticas. Na universidade há pouca ênfase nas questões de direitos humanos, justiça social, diversidade cultural e equidade na educação, exceção feita ao debate (classe versus raça) de cotas para ingresso no ensino superior. No campo acadêmico educacional é emblemático que o Grupo de Trabalho 23 - Gênero, sexualidade e educação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação-Anped só tenha sido criado em 2004, após a criação do Grupo de Trabalho 21 - Afro-brasileiros e Educação e do Grupo de Trabalho 22 - Educação Ambiental.

Em geral, o feminismo[7] " que Manuel Castells (1999) considera o mais importante movimento social do último quartil do século XX " e a teorização feminista têm influenciado muito pouco as instituições acadêmicas brasileiras, atestando tanto a distáncia entre a academia e os movimentos sociais, quanto o próprio viés de gênero masculino do conhecimento. O próprio sucesso educacional e profissional das mulheres não é reconhecido como uma conquista feminista pela grande maioria de professoras e estudantes universitárias. A visibilidade das mulheres na escola, na universidade e no mercado de trabalho tende a obscurecer os efeitos do sexismo e do androcentrismo do sistema educacional e da organização social[8].

Na universidade, em geral, na formação docente em particular e, consequentemente, na escola, os conceitos de gênero, sexismo, feminismo, igualdade de sexo e eqüidade de gênero[9] não são bem divulgados ou compreendidos. Em 2002, uma oficina de gênero na semana de formação continuada da rede municipal de Recife atraiu uma freqüência massiva de professores/as de Português![10] Predominam a confusão entre sexo e gênero, e a noção essencialista e singular do gênero. A importáncia do movimento feminista não é reconhecida, as feministas são vistas com preconceito e a teorização feminista[11] é ignorada. O conhecimento construído no ativismo por ONGs feministas e de mulheres é pouco valorizado pelas universidades e pelas escolas.

Em 1999, quando iniciamos na Universidade Federal da Paraíba-UFPB o Projeto Consciência de Gênero na Escola, o esforço da Secretaria de Educação João Pessoa-SEDEC/JP era colocar "toda criança na escola". O fato de que as meninas ultrapassaram os meninos em matrículas e conclusões em todos os níveis de ensino na década de 1990 reforçava e ainda reforça a invisibilidade da problemática educacional de gênero.[12] A construção e organização de espaços e atividades escolares, campos de conhecimento, disciplinas e conteúdos, cursos e carreiras, demarcados como campos sexualizados e gendrados " isto é, segundo critérios de sexo e gênero " continuam praticamente inquestionadas.

Encontrávamos e ainda encontramos nas escolas filas, grupos de estudo, brinquedos e brincadeiras separadas por sexo, cumplicidade com os enfeites femininos e toleráncia às brincadeiras agressivas dos meninos. A própria organização do trabalho escolar é sexuada e gendrada: professoras de crianças pequenas, assim como merendeiras, profissionais que preparam e servem comida, e limpam a cozinha, são preferencialmente mulheres; os homens que se encontram na escola infantil e de 1ª a 4ª séries são vigias. Segundo uma diretora, em sua escola o auxiliar de serviços gerais do sexo masculino recusava-se a cobrir a falta da merendeira![13] Os problemas de cuidado com o meio ambiente, o prédio e equipamentos escolares, e particularmente de higiene dos banheiros, também têm implicações não-reconhecidas de gênero, pois o trabalho de limpeza é feminino. Ademais, quem freqüenta as reuniões de pais são as mães dos alunos, e são a elas que se dirigem as demandas e reclamações da escola e das professoras; assim, embora os dirigentes educacionais sejam homens, a culpabilização pelo fracasso escolar recai sobre as mulheres: professoras e mães.

As representações e expectativas sobre papéis e identidades de gênero dicotômicas, presentes na família, na escola e demais instituições sociais, continuam a limitar as aspirações e realizações dos e das estudantes. As preferências e diferenças de desempenho entre meninos e meninas são consideradas resultantes de aptidões naturais, ao invés de resultantes de uma construção sócio-cultural-pedagógica de habitus[14] masculinos e femininos, e da demarcação tradicional de campos masculinos e femininos: meninas aparentemente preferem línguas, artes, decoreba; meninos, matemática, ciências naturais, tecnologia, raciocínio; meninas são bem comportadas e aplicadas, meninos agitados e indisciplinados, porém mais inteligentes do que as meninas (SILVA, 1999). Já sabemos que as análises dos resultados do SAEB 2003 apontaram diferenças de rendimento entre meninos e meninas, conforme o gênero da matéria escolar, ou seja, Português é território das meninas, ao passo que Matemática é território dos meninos. No ENEM 2003 as meninas se saíram melhor em redação, ao passo que os meninos se saíram melhor na parte objetiva (GODINHO et al., 2005), o que indica que conhecimentos e habilidades são gendrados. A hipótese de que a educação escolar é sexista, isto é, discrimina por sexo, forma ou reforça identidades de gênero rígidas, aprova ou reprova certos modelos de masculinidade e feminilidade, portanto, contribui para a construção de trajetórias de vida desiguais, necessita ser investigada no cotidiano escolar da perspectiva das relações de gênero, como recomenda Rosemberg (2002).

Embora os Parámetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil reafirmem o compromisso com a redução das desigualdades sociais e dos preconceitos, e com a equidade de gênero, poucos sistemas de ensino e escolas têm políticas e práticas focadas nessas questões. Vianna e Unbehaum (2006) afirmam não existirem estudos sobre a efetividade dessas diretrizes curriculares e sobre possíveis mudanças na prática pedagógica. Como exemplo, verificamos que o Plano Municipal de Educação de João Pessoa, divulgado em 2003, não inclui os termos diversidade, diferença cultural, nem gênero; tampouco estão presentes preocupações com estas problemáticas nos Projetos Político-Pedagógicos de duas escolas municipais, cujos docentes entrevistamos em 2005. Uma professora relatou que na sua escola a inclusão da temática de gênero no currículo se faz por livre iniciativa de docentes, por ocasião da comemoração do Dia 8 de Março.[15] Um professor enfatizou que no PPP de sua escola consta "enfrentar a questão da exclusão, combater a reprovação e evasão escolar", no entanto não há referências à diferença ou diversidade cultural. Não existem projetos ou ações específicas (ainda que pontuais, por exemplo, de comemoração do Dia 8 de Março, Dia da Consciência Negra) de combate ao sexismo, racismo ou outras formas de preconceito e discriminação. "Os projetos e as atividades curriculares são pensadas com forte influência das dificuldades de aprendizagem nos conteúdos formais, nas especificidades das disciplinas. Vivemos uma realidade escolar muito condicionada aos conteúdos prescritos em cada disciplina".[16]

Na Universidade Federal da Paraíba, no Centro de Educação, que oferece Curso de Pedagogia e atende às Licenciaturas, as iniciativas de docentes de inclusão da questão de gênero são pontuais e isoladas em suas disciplinas, por exemplo na disciplina Currículo. No curso de Pedagogia não há uma disciplina Gênero e Educação, ainda que optativa, nem transversalização da temática; tampouco se encontraram tópicos ou conteúdos sobre mulheres e gênero, por exemplo em História e Sociologia da Educação, disciplinas em que a feminização do magistério poderia ser problematizada (TAVARES, 2004). Curiosamente, as Conferências Internacionais de Educação e de Mulheres da ONU, que propõem metas de eqüidade de gênero e empoderamento[17] das mulheres " e mesmo a 1ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, realizada em 2004, declarado Ano da Mulher pelo governo federal " não parecem ter tido influência ou impacto no cotidiano da formação num centro de educação universitário composto majoritariamente por professoras e alunas mulheres.

De modo geral, é preciso atualizar os currículos das instituições formadoras para incluir as questões da diversidade e eqüidade. A esse respeito, cabe lembrar que o Plano Nacional de Políticas para Mulheres propõe a inclusão das temáticas de gênero, raça, etnia e orientação sexual nos currículos do Ensino Superior em 2007 (BRASIL, 2004).

Desafios da formação docente: como promover a equidade de gênero?

A escola dá acesso e tratamento aparentemente igual, mas obtém resultados educacionais desiguais. Essa é uma lição da experiência histórica. O currículo é comum, as professoras e professores costumam dizer que tratam igual todos os alunos, ou seja, não discriminam (negativamente). Era esse o ideário da construção da igualdade; passava-se por cima das diferenças. Porém hoje, a partir da crítica à reprodução das desigualdades dentro e através da escola, chama-se atenção para as diferenças, a diversidade.[18] Se tratamos igual os diferentes, reproduzimos as diferenças. é preciso tratar de diferentes maneiras os/as estudantes para compensar e equilibrar as diferenças individuais, sociais, culturais. Essa é a política de eqüidade, que requer estratégias como ações afirmativas e reserva de cotas para grupos em situação de desvantagem (políticas/práticas de discriminação positiva), bem como currículo multicultural e programas compensatórios.

Igualdade de sexo não é sinônimo de eqüidade de gênero. Os PCNs entendem eqüidade como "a necessária atenção às diferenças para a real garantia de igualdade de direitos, oportunidades e acesso aos bens sociais, em todos os campos" (BRASIL, 1998, p. 322). Garantir igualdade de oportunidades educacionais para meninas e meninos, inclusive oportunidades de aprender diversificadas, equilibrar o aproveitamento e conclusões escolares quantitativa e qualitativamente, eliminando as marcas de gênero dos objetos, espaços, matérias e cursos, e formar pessoas mais livres, flexíveis, equilibradas e felizes, requer o questionamento e transformação do próprio currículo, das práticas de ensino e de avaliação. O currículo ainda é veículo da cultura androcêntrica, assim como a linguagem é sexista. A crítica ao etnocentrismo curricular aponta que o currículo expressa a visão de mundo eurocêntrica, branca, masculina, cristã e heterossexual. Particularmente quanto a gênero, em todos os níveis de escolaridade o currículo tem corroborado a separação público-privado, desvalorizado a contribuição social das mulheres e perpetuado sua invisibilidade na história, ciências e literatura. Na linguagem, ao se preferir a forma masculina, se generaliza a experiência humana a partir do referencial masculino e se invisibilizam as especificidades das experiências das mulheres, inclusive as diferenças que podem ser alteradas.

é mais fácil sustar a reprodução das relações de gênero no currículo formal[19]: a discriminação de sexo e gênero explícita nos planos, desenvolvimento de atividades e material didático, como futebol para meninos e handebol para meninas na aula de educação física, bolas para meninos e bonecas para meninas na festinha do Dia das Crianças na pré-escola. Pode-se fazer análise crítica do material didático e paradidático para identificar estereótipos de gênero, por exemplo, ilustrações que apresentam os homens na esfera pública e as mulheres na esfera doméstica, ou que associam masculinidade a racionalidade, força e determinação, e feminilidade a emotividade, fragilidade e futilidade. Porém é mais difícil alterar o tratamento diferenciado de meninos e meninas na dinámica do currículo em ação, quando as ações docentes ocorrem de forma praticamente automática (KORTHAGEN & KESSELS, 1999), em meio a grande número de estudantes e diversas demandas; e é ainda mais difícil naquele ámbito da experiência escolar que se denominou currículo oculto, em que a discriminação ocorre de forma sutil, silenciosa, inconsciente, nas formas de relacionamento e convivência, dentro e fora da sala de aula.

Preconceito, discriminação e segregação ocorrem de maneira não-intencional e sutil no cotidiano escolar, frequentemente pela não-intervenção das/os educadoras/es nos comportamentos espontáneos das crianças e jovens, no ámbito do currículo oculto e do currículo em ação, mas também como expectativas e normas explícitas de regulação e controle. Por exemplo, se faz vista grossa a várias formas de violência simbólica e assédio moral contra meninos de expressões delicadas ou que preferem brincar com meninas, contra meninas agressivas ou que jogam futebol. Uma escola pública de João Pessoa proibiu o uso de brinco por meninos, visto como moda de gay. Assim, a construção assimétrica de gênero não se restringe à sala de aula, ao ámbito do currículo formal, ou à ação pedagógica planejada.

Conforme Guacira Lopes Louro (2002), teóricas/os pós-estruturalistas têm apontado o papel central da linguagem e do discurso nas disputas de poder que se dão no campo cultural pela atribuição e imposição de verdades, valores, gostos e posições-de-sujeito legítimas. Reconhecem que as múltiplas formas de cultura popular são pedagogias culturais que circulam na escola e produzem significados, ordenamentos, hierarquias, diferenciações e identidades, ao incluir ou excluir, aprovar ou marginalizar sujeitos. O currículo em ação e suas zonas ocultas, não questionadas ou criticadas, são palco importante desses aprendizados culturais,[20] compartilhados por adultos, crianças e jovens, educadores/as e alunos/as, os quais também se refletem nos resultados da aprendizagem do currículo formal e, portanto, na avaliação formal destes últimos.

A escola disciplina os corpos, inscrevendo ou reforçando neles marcas de gênero. Como explica Pierre Bourdieu (1999), as relações de dominação (de gênero e outras) se inscrevem no corpo e na subjetividade de educadoras/es e alunos/as, como um habitus ou identidade estável. São somatizadas e naturalizadas numa relação de causalidade circular entre as estruturas objetivas do espaço social (roupas, brinquedos, espaços de meninos e de meninas) e as disposições psicossomáticas produzidas nos sujeitos (preferência por bolas ou bonecas, matemática ou português, rebeldia ou obediência); constituem expectativas coletivas inscritas nos ambientes que reproduzem a oposição entre mundo público/produtivo/masculino e mundo privado/reprodutivo/feminino.

Mimetismo é a imagem utilizada por Bourdieu (1999) para se referir ao trabalho pedagógico contínuo de transformação dos corpos e das mentes em habitus masculinos ou femininos duradouros, através de injunções arbitrárias, apelos à ordem, prescrições e proscrições silenciosas ou explícitas, e da construção simbólica da visão do corpo. Assim, os habitus de gênero se expressam como investimentos ou abstenções, coisas "naturais ou impensáveis, normais ou extraordinárias ... para um homem ou uma mulher (e de tal ou qual condição)" (p. 71-73). Na família e na escola "a educação primária ... favorece mais nos meninos as diferentes formas da libido dominandi" (p. 71). As meninas são excluídas do jogo do poder e educadas para entrarem nele "por procuração, isto é, em uma posição ao mesmo tempo exterior e subordinada", desenvolvendo a impotência junto com tendências afetivas e de cuidado do homem (p. 77, 97).

Enfim, Bourdieu (1999) ressalta que "a construção social das estruturas cognitivas que organizam os atos de construção do mundo e de seus poderes" é uma construção prática "resultante de um poder inscrito duradouramente no corpo dos dominados, sob forma de esquemas de percepção e de disposições (a admirar, respeitar, amar etc.)", que impõem os usos legítimos do corpo, sobretudo os sexuais, e "o tornam sensível a certas manifestações simbólicas do poder" (p. 33, 52-53). Assim, o habitus dominante ou dominado, "produto de um trabalho social de nominação e inculcação", relação social somatizada, lei social incorporada, é vivenciado "dentro da lógica do sentimento ... ou do dever"; portanto, pode "sobreviver durante muito tempo depois de desaparecidas suas condições sociais de produção ... [ou] mesmo quando as pressões externas são abolidas e as liberdades formais - direito de voto, direito à educação, acesso a todas as profissões, inclusive políticas - são adquiridas, [caso em que] a auto-exclusão e a "vocação" ... vêm substituir a exclusão expressa" (BOURDIEU, 1999, p. 51-53, 63-64).

Nesse contexto, além da garantia de oportunidades iguais a meninos e meninas para que se desenvolvam plenamente como seres humanos, a proposta de equidade requer: (a) o reconhecimento das desigualdades sociais, das diferenças individuais, e do fato dos meninos e meninas já chegarem à escola marcados pelas diferenças de gênero; (b) a crítica curricular, e atenção especial ao currículo em ação e às práticas de avaliação, sobretudo qualitativas; (c) tanto evitar a discriminação negativa quanto praticar a discriminação positiva. Discriminar negativamente é censurar e/ou punir meninos e meninas, de modo direto ou indireto, irônico ou jocoso, quando estes exibem comportamentos supostamente inadequados ao seu sexo. Discriminar positivamente é oferecer oportunidades especiais a meninos e meninas para que ampliem suas supostas aptidões e preferências ou compensem suas supostas deficiências no tocante a conhecimentos e habilidades. Por exemplo, reforçar as meninas em matemática e esportes, e os meninos em redação e artes; incentivar a participação e inclusão das meninas nas áreas de conhecimento e atividades ditas masculinas, como as ciências naturais, engenharias, computação, e dos meninos nas áreas de conhecimento e atividades ditas femininas, como as letras, artes, pedagogia, enfermagem. é particularmente importante estimular o exercício da liderança e da representação estudantil por parte das meninas, pois eqüidade de gênero implica empoderamento das mulheres. Em contraposição ao reforço inconsciente dos estereótipos sexuais e de gênero tradicionais, a proposta de equidade de gênero requer expectativas idênticas para meninos e meninas, (para reverter as "preferências naturais" ou a auto-exclusão), questionamento dos estereótipos, aceitação da flexibilidade dos padrões de comportamento e toleráncia das diferenças entre os indivíduos, quer sejam do sexo masculino, quer sejam do sexo feminino (CARVALHO, 2000a).

Assim, a atenção ao currículo em ação requer constante intervenção no cotidiano escolar para desconstruir as divisões e assimetrias de gênero e eliminar ou reduzir preconceitos e discriminações. Para isso é necessária uma formação profissional que englobe:

o desenvolvimento da sensibilidade diante da alteridade e da pluralidade de universos culturais e valores, inclusive valores ameaçados, como recomenda a Declaração sobre a Diversidade Cultural da Unesco (UNESCO, 2001), o que significa acolher múltiplas formas de masculinidade e feminilidade;

a compreensão dos processos históricos de construção das diferenças e desigualdades (MOREIRA, 2001) e das lutas por justiça social e eqüidade, em macro e micro-contextos;

a atenção às desvantagens sociais " decorrentes de gênero, orientação sexual, raça, etnia, classe social, idade, deficiências ou necessidades especiais, e outras diferenças individuais (tipo de inteligência, estilo cognitivo, maneira preferencial de aprender) ou grupais " e o desenvolvimento de habilidades e instrumentos para reverter e ajudar a superar tais desvantagens.

Portanto, os programas de formação inicial e continuada devem propiciar instrumentos conceituais e práticos para se perceber, entender e atender aos desafios, contradições e complexidades sociais. Esses instrumentos são:

a reflexão crítica sobre as estruturas e dinámicas de dominação e a elaboração de um discurso contra-hegemônico ou uma contra-narrativa desafiadora da naturalização das relações de dominação; e

uma práxis política visando ampliar a consciência das relações de dominação e opressão, o reconhecimento de comportamentos politicamente e eticamente desejáveis e indesejáveis, e de ações transformadoras.

A proposta de educação inclusiva, multicultural, não-discriminatória reconhece que, no contexto de relações de poder, a diversidade cultural tende a resultar em fracasso escolar e exclusão social de indivíduos e grupos culturais não-hegemônicos, pelo fato de que as diferenças de repertório ou capital cultural se convertem em desigualdades educacionais, sociais e políticas. Daí a importáncia de desenvolver a vigiláncia na escola e na sala de aula e adotar um código de comportamento ético-político que desestimule expressões preconceituosas e pejorativas racistas, sexistas, misóginas, homofóbicas, prescrições e proscrições de comportamentos sexuais e de gênero, bem como vantagens e privilégios. O papel docente é não discriminar e não permitir que se discrimine por sexo/gênero/orientação sexual.

Vejamos alguns exemplos[21]. A educação física pode ensinar que as meninas são fisicamente fracas e inábeis. No recreio a quadra é dos meninos, eles são melhores nos esportes ativos. Segundo Lígia Luís de Freitas (2003), as meninas que querem jogar futebol têm de dificuldade de convencer os professores de educação física a perderem tempo treinando-as. São vistas como naturalmente ineptas para esse esporte, jamais como atletas promissoras. Elas têm de conquistar o direito de ocupar a quadra. Numa escola municipal de João Pessoa, quando as meninas reivindicaram a quadra para jogar futebol, a oposição dos meninos foi ruidosa. A orientadora educacional intermediou a negociação para alternarem o uso da quadra. Eles acabaram cedendo dois dias para elas, mas ainda queriam ficar com três dias: 2ª, 4ª e 6ª para os meninos, 3ª e 5ª para as meninas. A orientadora então propôs que até o uso da quadra na sexta-feira fosse alternado, uma semana meninos, outra semana meninas, de modo a equiparar o acesso.

As assimetrias de gênero que têm lugar na família sobrecarregam as mães com os cuidados e educação dos filhos e filhas, e se expressam também na relação escola-família (CARVALHO, 2004, 2000b). As expectativas escolares sobre papéis parentais em casa e na escola são gendradas, porém cegas à perspectiva crítica de gênero: a escola cobra mais da mãe do que do pai o bom comportamento do/a aluno/a, o acompanhamento do dever de casa, a freqüência às reuniões escolares, enfim, a cooperação com a professora (CARVALHO & BURITY, 2006). As escolas também se preocupam com a omissão dos pais na vida escolar dos estudantes. Como estratégia para estimular a participação especificamente dos pais, uma escola municipal de João Pessoa estabeleceu no início do ano reuniões separadas paras pais e mães, sendo primeiro convocada a reunião só para pais. Com isso conseguiu aumentar a presença dos pais nas demais reuniões do ano.

Como se ressalta no Plano Nacional de Políticas para mulheres (BRASIL, 2004, p. 49), a educação para a igualdade e eqüidade demanda formação constante de gestoras/es, professoras/es e alunas/os e o currículo em ação é o contexto em que todos se educam e re-educam simultaneamente.

Considerações finais

A formação docente apresenta desafios únicos: basicamente, educar num mundo velho para um mundo novo; especificamente, no ámbito da formação inicial, formar o/a professor/a reflexivo/a e crítico/a, multiculturalmente competente, sensível às injustiças sociais e comprometido/a com a eqüidade de gênero; e, no ámbito da formação continuada, engajar o/a próprio/a docente na auto-educação permanente.

Como educar num mundo velho para um mundo novo? Como sujeitos já conformados à ordem vigente da dominação masculina podem anunciar e criar novas relações sociais e humanas? Como sensibilizar e engajar professoras e professores, com habitus/identidades de gênero já formadas, segundo o modelo dicotômico e polarizado, na transformação da ordem androcêntrica? Nelly Stromquist dimensiona assim essas dificuldades:

Mudar nossa compreensão de gênero e as relações de gênero concomitantes representa uma tarefa difícil. Nas teorias da inovação, um dos princípios centrais para a adoção de idéias novas é sua compatibilidade com os valores existentes, experiências passadas e necessidades dos potenciais adeptos. As ações de gênero implicam justiça social e revolução cultural, de formas que questionam profundamente o status quo: são temas polêmicos a divisão sexual do trabalho, os direitos sexuais e as orientações sexuais. Obviamente, o trabalho em gênero gera idéias novas que são incompatíveis com as tradições e ideologias existentes. (STROMQUIST, 2006, p. 378, tradução do espanhol).

Nesse contexto, a formação de docentes sensíveis à problemática de gênero envolve uma dupla reflexão sobre as formas de sociabilidade, as culturas infantis e juvenis, e os modelos de feminilidade e masculinidade construídos pelas diversas pedagogias culturais e pelas práticas escolares, e sobre a própria identidade pessoal (como mulher/homem) e profissional (como educador/a); e uma dupla ação pedagogicamente efetiva no trato com estudantes de diversas origens e em situação de opressão e desvantagem social, e comprometida com a auto-formação contínua, segundo uma visão de docência como jornada de transformação por toda a vida.

Tanto a formação docente inicial quanto a continuada têm limitações relativas à articulação teoria-prática e à contextualização do conhecimento. A escola tem sua própria cultura organizacional: injunções materiais e simbólicas, rotinas... daí que nem todos os aprendizados são facilmente transferíveis e imediatamente aplicáveis, pois a inovação pode requerer disposições e condições prévias nem sempre disponíveis e, inclusive, mudanças subjetivas e objetivas! A mudança cultural é sistêmica e a práxis transformadora é um processo pessoal e coletivo complexo. Nesse contexto, mesmo intervenções ligeiras e pontuais da formação continuada podem contribuir para alimentar o processo de mudança almejado. Porém a formação continuada mais efetiva é aquela que se dá no cotidiano escolar quando as professoras e professores problematizam, estudam, planejam e avaliam coletivamente. As percepções das/os educadoras/es sobre as relações de gênero podem ser tomadas como ponto de partida para a problematização, discussão e reflexão usando a lente crítica do conceito de gênero. Além disso, as/os educadoras/es precisam saber como intervir no contexto das relações assimétricas: criar e testar estratégias e ações de promoção da equidade, dialogando com a comunidade escolar e trocando experiências com colegas. Além das intervenções pontuais individuais no contexto da prática docente, a meta é a elaboração e sistematização coletiva de estratégias de intervenção e transformação, considerando aspectos práticos e éticos, ou seja, o que é viável e desejável, segundo múltiplas perspectivas. Daí a importáncia do projeto político-pedagógico da escola, marco do desenvolvimento curricular.

Cabe uma consideração sobre a relação entre docência e gênero, sobretudo na formação inicial. é preciso questionar e refletir sobre até que ponto seu currículo conta tacitamente com o habitus de gênero feminino " as habilidades expressivas, o jeito para lidar com crianças " oriundo da socialização de gênero na educação informal. Assim, pode-se supor que, ao silenciar sobre a própria problemática de gênero, o currículo seria omisso quanto a possibilidades de aprofundamento teórico da docência e empoderamento pessoal e profissional de suas alunas, futuras professoras. A questão é: por ser cego à problemática de gênero, o que mais de importante o Curso de Pedagogia estaria deixando de ensinar?

A inclusão das questões de diferença/eqüidade na formação docente inicial e continuada deve envolver conhecimento crítico das relações de dominação e transformação pessoal, inclusive o questionamento da própria posição-de-sujeito " dominante, detentor de privilégios ou dominado, impotente " em direção ao compromisso ético-político da justiça e da solidariedade. Porém não basta propiciar a auto-reflexão acerca da subjetividade de gênero na formação inicial ou continuada; objetivamente, na práxis coletiva escolar, é preciso enfatizar o papel profissional ética e politicamente correto de não discriminar por sexo/gênero/orientação sexual, veiculando uma contra-narrativa desafiadora da naturalização das relações de dominação. Contra a hegemonia androcêntrica, o sexismo, a misoginia, a heterossexualidade compulsória, é preciso opor constantemente um discurso crítico das relações de gênero, e intervir conscientemente, continuamente, persistentemente, na dinámica dessas relações.

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[1] A teoria feminista contemporánea distingue entre sexo e gênero: o sexo é biológico, o gênero é uma construção social e cultural. Na sociedade/cultura patriarcal e androcêntrica, baseada na autoridade masculina, as diferenças sexuais são transformadas em papéis sociais, posições e status desiguais. "A construção do que é pertencer a um ou outro sexo se dá pelo tratamento diferenciado para meninos e meninas, inclusive nas expressões diretamente ligadas à sexualidade, e pelos padrões socialmente estabelecidos de feminino e masculino" (BRASIL, 1998).

A proposição de que o gênero é construído social e culturalmente, e não determinado biologicamente, é tanto uma questão teórica quanto política. Os gêneros não são uniformes nem fixos, mas plurais e mutáveis, porém as relações de gênero são relações de poder. Gênero é uma estrutura de dominação simbólica estável, evidente na divisão social do trabalho e na estratificação social.

"Feminino e masculino são uma polaridade desequilibrada. Direitos iguais para os homens nunca foram inspiração para uma marcha de protesto ou uma greve de fome. Em nenhum país do mundo os homens são considerados legalmente incapazes, como ocorreu com as mulheres de várias nações européias até o século XX e ainda ocorre em vários países mulçumanos, do Marrocos ao Afeganistão. Nenhum país deu o direito de voto primeiro às mulheres para só depois concedê-lo aos homens. Ninguém jamais pensou que os homens fossem o segundo sexo" (SONTAG, 2000).

As distinções de gênero estruturam todos os aspectos da vida social e se expressam na cultura, ideologia, violência, sexualidade, reprodução, divisão do trabalho, organização do estado e nas práticas discursivas, desde o enxoval de bebê rosa ou azul. Embora assumam uma variedade de formas em diferentes sociedades, períodos históricos, grupos étnicos, classes sociais e gerações, as relações de gênero integram um complexo sistema de dominação masculina, fortemente institucionalizado e internalizado.

[2] Iniciativas parlamentares buscaram legitimar no país a prostituição como categoria profissional e, portanto, merecedora das proteções trabalhistas. O reconhecimento oficial se deu recentemente pelo Ministério do Trabalho e Emprego, sendo o conceito de profissional do sexo incluído na Classificação Brasileira de Ocupações-CBO.

[3] Androcentrismo significa a visão do homem como o centro, a norma para os seres humanos. O termo, portanto, refere-se ao sistema de valores da cultura dominante baseado em normas masculinas. é nesse contexto cultural que as relações de gênero são relações de poder em que "o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas" (BOURDIEU, 1999, p. 23).

Como assinala Pierre Bourdieu (1999), a razão androcêntrica divide e hierarquiza o mundo, as atividades produtivas e reprodutivas, segundo o princípio da inferioridade e da exclusão da mulher. A ordem masculina está implícita nas coisas e nos corpos, nas rotinas da divisão do trabalho e dos rituais coletivos ou privados: "as regularidades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam as medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres…, assinalando-lhes lugares inferiores…, ensinando-lhes a postura correta do corpo…, atribuindo-lhes tarefas penosas, baixas e mesquinhas (p. 34). Os homens detêm o "monopólio de todas as atividades oficiais, públicas, de representação" (p. 60), são os senhores do "sistema de estratégias de reprodução ... do capital simbólico: estratégias de fecundidade, matrimoniais, educativas, econômicas, de sucessão, todas elas orientadas no sentido de transmissão dos poderes e dos privilégios herdados" (p. 62).

[4] Sexismo quer dizer discriminação de sexo. No patriarcado, ou sexismo sistêmico institucionalizado (HOOKS, 2000), a discriminação de sexo afeta negativamente as mulheres.

De acordo com Abercrombie, Hill, & Turner (1994), o patriarcado é descrito na literatura sociológica como um sistema social sustentado ideologicamente pela heterossexualidade compulsória, violência masculina, socialização de papéis de gênero e modos de organização da vida e do trabalho em que os homens dominam as mulheres econômica, sexual e culturalmente, a partir do lar. Segundo as feministas marxistas, o patriarcado e o capitalismo se apóiam mutuamente já que a mulher é explorada tanto como trabalhadora assalariada quanto como dona de casa, ao sustentar o trabalhador com o trabalho doméstico gratuito.

A Sociologia do Gênero explica que nas sociedades industriais as mulheres são socializadas para assumirem uma personalidade feminina e uma identidade de gênero específica; são relegadas ao ámbito privado do lar e excluídas das atividades públicas; são alocadas a atividades produtivas restritas, inferiores, mal-pagas e degradantes; e são submetidas a ideologias estereotipadas que as definem como fracas e emocionalmente dependentes dos homens.

[5] Iniqüidade de gênero não é simplesmente discriminação de sexo ou exclusão de mulheres de posições de privilégio e poder. Mais amplamente refere-se à assimetria de gênero, ou seja, à valorização de um gênero e desvalorização do outro; na cultura androcêntrica, corresponde à desvalorização das expressões femininas.

[6] O Programa Brasil Sem Homofobia - Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra Gays, Lésbicas, Transgêneros e Bissexuais e de Promoção da Cidadania Homossexual foi instituído pelo governo brasileiro em 2003, visando garantir o direito à educação desses grupos e promover valores de respeito e não discriminação por orientação sexual.

[7] Feminismo é tanto uma ideologia da liberação das mulheres quanto uma teoria crítica do sexismo, da sociedade patriarcal, da visão androcêntrica de mundo e da dominação masculina. Para Bell Hooks (2000), o feminismo é um movimento que visa acabar com a exploração e a opressão sexistas.

Segundo Manuel Castells (1999, p. 170-171), a crítica feminista "remete às raízes da sociedade e ao ámago do nosso ser" ao desconstruir a estrutura familiar, as normas sexuais patriarcais e as identidades de gênero, trazendo "consequências fundamentais para toda a experiência humana, desde o poder político até a estrutura da personalidade".

A história do feminismo moderno começa com a luta pelo voto das mulheres da segunda metade do século XIX até as primeiras décadas do século XX, precedida pela conquista do direito da mulher à educação. Na década de 1960, o Movimento de Liberação das Mulheres lutou por direitos iguais: salário igual para trabalho igual, co-responsabilidade pelo trabalho doméstico e cuidado das crianças, direitos reprodutivos, incluindo a opção pelo aborto, contra o estupro e a violência doméstica, e também pelo respeito às diferenças e valorização da contribuição cultural feminina.

Assim, o termo feminista assume uma diversidade de sentidos " liberal, radical, socialista, negro, lesbiano, espiritualista, ecológico e pragmático (CASTELLS, 1999) " reconhecendo-se as diferenças de classe, região, raça, etnia e orientação sexual entre as mulheres. O feminismo pós-estruturalista, particularmente a Teoria Queer, assume que as identidades de sexo e gênero são múltiplas e instáveis. Todavia, a despeito da diversidade de grupos e identidades feministas, Bell Hooks (2000) ressalta o poder da irmandade, a necessidade de construir a solidariedade política entre mulheres para lutar contra a injustiça patriarcal, através de um esforço contínuo de educação feminista para a consciência crítica.

[8] Dados do IBGE de 2003 indicam que, embora mais escolarizadas, as mulheres brasileiras continuam ganhando menos do que os homens tanto na faixa de renda superior quanto inferior: entre os que tinham mais de 11 anos de escolaridade, as mulheres ganhavam R$ 695, os homens ganhavam R$ 1.362; entre os que tinham menos de um ano ou nenhuma escolaridade, as mulheres ganhavam R$ 173, os homens ganhavam R$ 265 (GODINHO et al., 2005).

[9] O princípio da eqüidade de gênero se refere à valorização equánime de características culturais masculinas e femininas, assim denominadas provisoriamente, numa perspectiva construcionista. Para transformar a cultura androcêntrica é preciso valorizar as manifestações femininas (por exemplo, a delicadeza, o cuidado) como qualidades e valores que devem ser incorporados e cultivados por homens e mulheres.

[10] Comunicação pessoal de membro da equipe de Orientação Sexual da Secretaria de Educação, Prefeitura Municipal do Recife, 2002.

[11] Como a crítica feminista denuncia, o androcentrismo tem afetado a produção teórica e há bem poucas mulheres nas disciplinas científicas mais prestigiadas. O modelo de ciência dominante insere-se numa cultura de competição, lucro e guerra, ao passo que o feminismo propõe a construção de uma cultura de cooperação, partilha, felicidade e paz.

[12] Nelly Stromquist (2006, p. 369-370) afirma que as políticas educativas estatais se limitam à igualdade de oportunidades como acesso à educação primária, às vezes com foco em grupos vulneráveis, reduzindo gênero a sexo e confundindo igualdade e eqüidade. Na América Latina, como as mulheres ultrapassam os homens em matrículas no ensino secundário e superior, os governos da região assumem a posição de que gênero não é um problema da educação. Assim, o currículo e a experiência escolar de meninos e meninas permanecem intocados.

[13] Relato de Diretora em oficina realizada em Recife, 2001.

[14] Conceito de Pierre Bourdieu que denota estruturas psicossomáticas estáveis.

[15] O Dia da Educação Não-Sexista e Não-Discriminadora, instituído pela Rede Latinoamericana de Educação Popular entre Mulheres-REPEM, desde 1991, não é conhecido nem celebrado no Brasil (www.repem.org.uy).

[16] Comunicação pessoal de Professor de Ciências da rede municipal de ensino de João Pessoa, 2005.

[17] O poder pode ser fonte de opressão em seu abuso e de emancipação em seu uso. As relações de gênero são relações de poder masculino e estão articuladas com outras relações de poder (classe, raça/etnia, orientação sexual). As mulheres têm pouco poder e este está circunscrito ao ámbito privado e familiar, por isso necessitam de empoderamento individual e coletivo. O poder feminino deveria constituir uma nova concepção de poder, mais democrático e compartilhado, baseando-se numa ética de promoção da melhoria nas relações sociais das gerações presentes e futuras (BATLIWALA, 1997; ROWLANDS, 1997).

A pedagogia feminista, inspirada na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (1980), desenvolveu o conceito de empoderamento, bastante empregado na área de gênero e desenvolvimento. O empoderamento é entendido como um processo essencialmente educativo: o desenvolvimento da auto-suficiência e de habilidades de fazer coisas, definir as próprias agendas de mudança social, se organizar coletivamente e colocar demandas ao Estado (LEÓN, 1997; YOUNG, 1997). Implica, assim, tanto controle da própria vida " ganhar voz, mobilidade, presença pública " quanto controle sobre as estruturas de poder para mudá-las em seu favor (ROWLANDS, 1997). Portanto, requer o aprendizado crítico sobre a cultura do poder, suas relações e formas, como condição para a transformação da realidade e liberação dos indivíduos e grupos daquilo que limita sua participação social, intelectual e política.

O processo de empoderamento é diferente para cada indivíduo ou grupo, segundo sua vida, contexto e história, e segundo a localização da subordinação no ámbito pessoal, familiar, comunitário, nacional, regional ou global (LEON, 1997). No caso das mulheres, seu empoderamento visa alterar estratégica e radicalmente os processos e estruturas que reproduzem sua posição subordinada enquanto gênero (YOUNG, 1997), através de um processo de esclarecimento, conscientização, mobilização e organização coletiva (MENDEL-AÑONUEVO, 1997). Nesse sentido, a Conferência Mundial de Mulheres de Beijing, em 1995, apontou a necessidade de se estudarem as conexões entre educação e empoderamento.

[18] As diferenças de classe e cultura eram ressaltadas na literatura educacional crítica desde a década de 1960. A Lei 5.692/71 introduziu a preocupação com as diferenças individuais. Mais recentemente, a Declaração da UNESCO sobre a Diversidade Cultural (Paris, 2/11/2001) aponta em suas linhas de ação: "promover através da educação a consciência do valor positivo da diversidade cultural e, para isso, melhorar o planejamento curricular e a formação docente" (UNESCO, 2001).

[19] As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental reconhecem que "atualmente [o conceito de currículo] envolve outros três, quais sejam: currículo formal (planos e propostas pedagógicas), currículo em ação (aquilo que efetivamente acontece nas salas de aula e nas escolas), currículo oculto (o não-dito, aquilo que tanto alunos quanto professores trazem, carregado de sentidos próprios, criando as formas de relacionamento, poder e convivência na sala de aula)" (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2001, p. 42).

[20] Guacira Louro (2002, p. 233) aponta questões muito úteis para se analisar o currículo em ação: Que representações sociais circulam na escola a respeito de mulheres, homens, homossexuais, heterossexuais, negros, negras, brancos e índios? Como as identidades de gênero, sexuais (e outras) são representadas na escola, como lhes são atribuídos significados, ordenamentos, hierarquias e diferenciações? Como a linguagem falada no cotidiano escolar produz identidades, inclui ou exclui, aprova ou marginaliza certos sujeitos? Como são indicadas a alunos e alunas as posições-de-sujeito legítimas, adequadas, sadias, normais? E como são indicadas aquelas posições-de-sujeito que devem ser rejeitadas e negadas? Que identidades gozam de privilégios, legitimidade, autoridade? Que identidades são menosprezadas e apresentadas como desviantes, ilegítimas? Que grupos sociais exercitam o direito de representar os outros, além de representar a si próprios?

[21] Casos relatados em oficinas do Projeto Consciência de Gênero na Escola, João Pessoa, 2005.

 

 

Autor:

Maria Eulina Pessoa de Carvalho

mepcarv[arroba]terra.com.br

NIPAM/PPGE/Centro de Educação/UFPB



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