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Natureza jurídica do contrato de adiantamento e a exigência de certidões negativas de débito com a s (página 2)

Luís Carlos de Almeida Hora

É importante alvitrar que as disposições do Pacto tem dignidade constitucional, de acordo com os §§ 1º e 2º do art. 5º da CF, com status de direitos e garantias fundamentais, "daquelas que denominamos de eficácia plena e aplicabilidade imediata, porque o legislador constituinte deu normatividade suficiente aos interesses vinculados á matéria de que cogitam. Vale dizer, não dependem de legislação nem de providência do Poder Público para serem aplicadas"3. Assim, o direito ao trabalho e seus valores sociais, bem como á seguridade, constituem direitos e garantias fundamentais, cláusula pétrea da Carta Magna4, sendo esse o sentir de Flávia Piovesan:

Sob a ótica normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos sociais, econômicos e culturais não são direitos legais. Os direitos sociais, econômicos e culturais são autênticos e verdadeiros direitos fundamentais. Integram não apenas a Declaração Universal e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, como ainda inúmeros outros tratados internacionais (ex.: a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a mulher). A obrigação de implementar estes direitos deve ser compreendida á luz do princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, reafirmado veementemente pela ONU na Declaração de Viena de 1993 e por outras organizações internacionais de direitos humanos5.

Mais adiante, a CF, em seu art. 194, dispôs que será organizada pelo Poder Público a Seguridade Social, que compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa não só dos poderes públicos, mas de toda a sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos á previdência, saúde e assistência social. No caput do artigo seguinte, menciona que o financiamento do sistema por toda a sociedade será realizado nos "termos da lei" e no § 3º que "a pessoa jurídica em débito com o sistema de da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público..." (grifo nosso).

Em decorrência disso, não pode o Estado, que visa ao bem coletivo, manter relações econômicas com entidades que descumprem suas obrigações com a sociedade. O mandamento constitucional é pleno e cabal, sem margens á dubiedade: a pessoa jurídica não poderá contratar com o Poder Público.

Os direitos de seguridade são direitos fundamentais, mas há regras de seu financiamento de cunho programático, de eficácia limitada, subordinadas a "emissão de uma normatividade futura, em que o legislador ordinário, integrando-lhe a eficácia, mediante lei ordinária, lhes dê capacidade de execução em termos de regulamentação daqueles interesses visados"66, dependendo de lei para dar corpo a órgãos ou instituições, definindo um programa constitucional a ser desenvolvido mediante legislação integrativa da vontade constituinte. Possuem aptidão, apenas, para revogar as disposições que com ela conflitam, ou impedir que sejam editadas normas que a contrariem. Eficácia jurídica, no sentido técnico do termo7.

Dessa natureza de norma de eficácia limitada é a definição de débitos com a seguridade, em consonância com o já citado § 3º do art. 195 da CF. Não sendo bastante em si, necessita de norma que lhe dê a necessária completude e essa norma é a Lei Orgânica da Seguridade Social, nº 8212/91.

Além de definir o que sejam débitos com a Seguridade, a Lei Orgânica foi mais longe, disciplinando até que a inexistência de débitos se comprova de acordo com seu capítulo, XI, do Título VI. Em seu artigo 47, inseriu regra de prova:

Art. 47. é exigido documento comprobatório de inexistência de débito relativo ás contribuições sociais, fornecido pelos órgãos competentes, nos seguintes casos:

I - da empresa:

a) na contratação com o Poder Público...

Aí está a disciplina obrigatória de exigência das CND.

FGTS

Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, o FGTS, é uma conta bancária instituída em benefício do trabalhador para que, em hipóteses disciplinadas em lei, tenha ele a faculdade de utilizar seus saldos. é uma "poupança" obrigatória que vige no Brasil desde 1966, cuja finalidade é constituir alternativa para o direito de indenização, funcionando também como fonte de captação de recursos para aplicação no sistema financeiro de habitação do país.

A natureza jurídica do FGTS é controvertida. Alguns a definem como tributo, outros como contribuição parafiscal arrecadada pelo Estado para custeio do Sistema de Habitação, havendo também quem a considere indenização ao trabalhador despedido. Há, outrossim, doutrinadores que reconhecem sua natureza jurídica como previdenciária. Para Amauri Mascaro do Nascimento:

As dificuldades quanto á definição da natureza do Fundo de Garantia prendem-se á sua característica múltipla, uma vez que foi criado para substituir a indenização de dispensa, porém é mais amplo, uma vez que forma um pecúlio para o trabalhador e é recolhido de forma compulsória pelo Estado. Essas teorias vêem o Fundo de Garantia por um dos seus ângulos. Visto de modo global e pelos seus aspectos preponderantes, o Fundo de Garantia é um instituto de natureza trabalhista com tendência de expandir-se para o âmbito maior. Compreendido como de natureza trabalhista, para alguns é uma figura análoga á do salário diferido - salário cujo direito é adquirido no presente mas a utilização é projetada para o futuro. Outros compreendem como salário social - salário devido ao trabalhador pela sociedade8.

Independentemente da discussão doutrinária acerca da natureza jurídica do FGTS, necessário convir que há nele um componente muito forte imbricado com o seguro social. De modo qualquer, o instituto tem sido tratado diferentemente pela lei e pela jurisprudência.

A RESPONSABILIDADE DO ESTADO

A Lei 8.666/93, em sua redação original, excepcionava qualquer responsabilidade da Administração Pública, inclusive no que se refere ao INSS e FGTS. Com o advento da Lei 9.032/95, modificativa do art. 71 da Lei 8.666/93, essa ausência de responsabilidade foi abrandada:

Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

§ 1o A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere á Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95)

§ 2o A Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos previdenciários resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 28.4.95)

Segundo a nova redação, o Estado possui apenas responsabilidade solidária no que toca aos encargos com o INSS, nos termos do art. 31 da Lei 8.212/91, o que importa dizer que ela - responsabilidade - só emerge nos contratos de serviços terceirizados:

Art. 31. O contratante de quaisquer serviços executados mediante cessão de mão-de-obra, inclusive em regime de trabalho temporário, responde solidariamente com o executor pelas obrigações decorrentes desta lei, em relação aos serviços a ele prestados, exceto quanto ao disposto no art. 23.

§ 1° Fica ressalvado o direito regressivo do contratante contra o executor e admitida a retenção de importâncias a este devidas para a garantia do cumprimento das obrigações desta lei, na forma estabelecida em regulamento.

§ 2° Entende-se como cessão de mão-de-obra a colocação, á disposição do contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de segurados que realizem serviços contínuos cujas características impossibilitem a plena identificação dos fatos geradores das contribuições, tais como construção civil, limpeza e conservação, manutenção, vigilância e outros assemelhados especificados no regulamento, independentemente da natureza e da forma de contratação. (grifos nossos)

Responsabilidade solidária (Código Civil, art. 264 e segs.) é aquela na qual pode o credor(es) exigir do devedor(es) comum a totalidade da obrigação, ou devendo cada um dos vários devedores pagar ao credor comum a dívida integral9.

Esse tipo de responsabilidade importa em que o credor (INSS) pode executar o tomador de serviços (Administração) diretamente pelos débitos que não foram recolhidos. Fica a escolha do INSS executar a Administração, ou o devedor originário.

Como supramencionado, o FGTS não tem tido um tratamento igual ao dispensado pelos débitos de seguridade insertos na Lei 8.212/91. Em conseqüência disso, a responsabilidade do Estado no que se refere a essa categoria de débitos inadimplidos por seus contratados, contrariamente ao disposto no art. 71 da Lei 8.666/93, que exime a Administração de obrigação por eles, tem sido apontada pela jurisprudência:

ENUNCIADO 331 DO TST:

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalhos temporários (Lei n. 6.019, de 31/1/1974).

II - A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, inciso II, da Constituição da República).

III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20/6/1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados á atividade-meio do tomador, desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta.

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto áquelas obrigações, desde que este tenha participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

(grifos nossos)

O FGTS, portanto, não tem sido reconhecido como de natureza previdenciária, contrariamente ao nosso entendimento e ao exposto no tópico Seguridade Social, supra. Tem sido vitorioso o entendimento do preclaro Amauri Mascaro, qual seja, a natureza trabalhista do Fundo de Garantia.

A responsabilidade da Administração, nestes casos, é subsidiária.

A responsabilidade subsidiária consiste na prerrogativa conferida ao credor de exigir do "garante" que pague, ou que seus bens sejam excutidos, verificado que o devedor originário não satisfez o débito, nem possui bens para tanto. A Administração funcionaria como uma espécie de garantidor do devedor principal. Desse modo, cumpre ao devedor pagar a dívida e só quando, através da execução de seus bens, verificar-se a insuficiência de seu patrimônio para resgatá-la, é que o garante será chamado a fazê-lo.

Da disciplina legal do INSS ou da jurisprudência do TST, percebe-se um tratamento específico para os casos de serviços prestados á Administração por terceiros. Esse tratamento diferenciado cinge-se a que, na prestação de serviços, a vantagem auferida pelo Estado é direta, impondo-se uma contrapartida de maior responsabilidade por parte da Administração. Os trabalhadores que efetivamente prestam serviços na unidade administrativa estão sujeitos a maiores ônus do que os demais membros da coletividade. Atuando a Administração no interesse público, justo é que toda a coletividade responda pelas faltas administrativas; é o princípio da solidariedade social, integrante da teoria do risco administrativo. Isto é, respondendo a Administração, em última instância quem responde é o povo, através do erário. Os danos ocorrem em vista da atuação pública concreta, não se admitindo que o Estado assista inerte á penúria dos trabalhadores que, sob terceirização, prestem-lhes serviços, quando inadimplentes seus efetivos empregadores. Caso contrário, o Estado estaria se locupletando do esforço de outrem.

Em vista disso, em casos de serviços terceirizados, as CND, comprobatórias da inexistência de débitos com a seguridade (Lei 8.212/91, art. 47), são uma providência imprescindível, visto que, aqui, não se adstringem apenas ao feitio de coação indireta na arrecadação de tributos, indisfarçável prisma do mandamento constitucional (art.195, § 3º), que se transmite aos órgãos administrativos que contratam com particulares. Nem tampouco ficam conscritas a evitar responsabilidade funcional do agente que efetuou o pacto com inobservância da regra. Em casos de serviços, o Erário responderá a título principal - INSS ou a título acessório - FGTS.

O corolário é de que, em se tratando de INSS, a regra constitucional é cabal e peremptória. A quitação é exigível sempre, menos em caso de pequenas compras pelo regime de adiantamento, conforme exporemos com mais vagar no tópico pertinente, abaixo.

Excepcionamos o FGTS porque, como já demonstrado, o entendimento que prepondera, especialmente pelo enunciado 331 do TST, é de que a natureza jurídica desse tipo de débito não tem natureza previdenciária, mas natureza trabalhista.

Nada obstante, a legislação infraconstitucional disciplina que a quitação com débitos de FGTS também deve ser exigida em todos os casos que não se refiram ao regime de adiantamento.

é o caso, e.g., dos contratos de compra com entrega parcelada ou contratos de obras ("O que distingue, pois, o serviço da obra é a predominância da atividade sobre o material empregado. A atividade operativa é que define e diversifica o serviço, abrangendo desde o trabalho braçal do operário até o labor intelectual do artista ou a técnica do profissional mais especializado."10).

A exigência dos comprovantes de quitação do FGTS é obrigatória, a teor do artigo 29, IV, da Lei 8666/93. Aliás, na mesma Lei, o artigo 55, XIII, prevê como cláusula obrigatória das avenças administrativas "a obrigação do contratado de manter, durante toda a execução do contrato, em compatibilidade com as obrigações por ele assumidas, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação".

Evidente que as regras dos artigos da Lei Federal de Licitações também são aplicáveis em se tratando de INSS, independentemente da regra constitucional.

Nas hipóteses de contratações diretas, por dispensa ou inexigibilidade, á primeira vista poderia parecer que, inexistindo a fase licitatória, estivesse ausente a necessidade de comprovação das quitações. Nesses procedimentos, na maioria das vezes, é mais complexo justificar porque a contratação se dará sem licitação do que proceder ao procedimento de habitual. As formalidades de justificação são indispensáveis, a teor dos arts. 24 a 26 da Lei 8.666/93. Em função disso, não teria cabimento a inexigência das CND. Ademais:

A contratação direta não significa inaplicação dos princípios básicos que orientam a atuação administrativa. Nem se caracteriza uma livre atuação administrativa. O administrador está obrigado a seguir um procedimento administrativo determinado, destinado a assegurar (ainda nesses casos) a prevalência dos princípios jurídicos fundamentais. Permanece o dever de realizar a melhor contratação possível, dando tratamento igualitário a todos os possíveis contratantes.

Portanto, a contratação direta não significa eliminação de dois postulados consagrados a propósito da licitação. O primeiro é a existência de um procedimento administrativo. O segundo é a prevalência dos princípios da supremacia e indisponibilidade do interesse público.

... A contratação direta se submete a um procedimento administrativo, como regra. Ou seja, ausência de licitação não equivale a contratação informal, realizada com quem a Administração bem entender, sem cautelas nem documentação. Ao contrário, a contratação direta exige um procedimento prévio, em que a observância de etapas e formalidades é imprescindível. Somente em hipóteses-limite é que a Administração estaria autorizada a contratar sem o cumprimento dessas formalidades11.

Ex positis, as CND comprobatórias de quitação tanto do INSS quanto do FGTS deverão ser exigidas não só nos contratos administrativos precedidos de licitação, como também em casos de contratação direta.

O REGIME DE ADIANTAMENTO

Prevê o parágrafo único do art. 60 da Lei 8.666/93 que "é nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento...". Percebemos que a regra da obrigatoriedade de licitação para os contratos continua incólume, salvo as exceções permitidas pela lei, autorizadoras de contratação direta, conforme mandamento constitucional (art. 37, XXI).

Há, no regime de adiantamento, um grau ampliado de discricionariedade. Porém, isso não se constitui numa ação desprovida de qualquer regra. Convocação por edital, prazos para entregas de propostas, etc, estão dispensados, mas a legalidade (a dispensa tem de ser amoldar na previsão legal, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea "a" da Lei 8666/93, conforme disposição final do parágrafo único do art 60, citado), a impessoalidade (não pode ser fonte de protecionismo para determinado fornecedor), a moralidade (a não realização das etapas da licitação não elimina a preocupação com o gasto parcimonioso dos recursos públicos, que deve nortear a ação do administrador público), a igualdade (estabelecimentos de privilégio de um ou outro ente privado perante a Administração), a publicidade (embora restrita, a contratação direta não será inacessível ou clandestina, de modo que venha a impedir que dela conheçam outros fornecedores, bem como os cidadãos em geral), a probidade administrativa (zelo com que a Administração deve agir ter nas compras efetuadas)12.

As contratações exigirão formalidades diminuídas, pelas próprias circunstâncias desses tipos de compras, não significando, jamais, desatenção a princípios gerais e inobservância de formalidades próprias que a lei em cada caso impõe. Dos gastos haverá necessidade de prestação de contas, cuja comprovação se fará com documento hábil, v. g., notas fiscais.

A autorização legal é feita apenas para compras, não estando incluídos os serviços.

O "CONTRATAR" DO § 3º, ART. 195, DA CF

Na CF há a menção do "contratar", mas não há definição do que deve expressar esse verbo. é a Lei Federal de Licitações, 8.666/93, quem dá a definição do que sejam contratos efetuados pela Administração:

Art. 2o...

Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.

Pelos ditames do artigo, qualquer tipo de ajuste está incluído na definição de contrato. Estariam, inclusive, no âmbito da definição os ajustes verbais admissíveis apenas no regime de adiantamento.

Há prestigioso e interessante entendimento de que as avenças de adiantamento não estariam incluídas na expressão contratar, sobretudo no que pertine á vontade. Trata-se do Parecer 41/2001, oriundo do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, de lavra do eminente César Santolim, auditor daquela Corte. é do Parecer:

Comprovação de situação de regularidade perante o Sistema de Seguridade Social por parte de quem é contratante com o Poder Público. Exigência constitucional (§ 3º do art. 195 da Constituição Federal). Situações estranhas ao campo da contratualidade, passíveis de tratamento diferenciado, nos termos da lei. Utilização do regime de adiantamento de numerário, para atender pequenas despesas ou despesas emergenciais.

1. Trata-se de consulta, originária do Tribunal de Justiça do Estado, recebida nesta Corte em 26 de abril próximo passado, onde o Exmo. Sr. Desembargador-Presidente daquela Corte, ainda que ciente do disposto no § 3º do art. 195 da Constituição Federal, indaga sobre a possibilidade da dispensa da apresentação da CND (Certidão Negativa de Débito), junto ao INSS, em situações "peculiares e excepcionais" que descreve. Tais seriam os casos em que a exigência desta documentação "torna-se praticamente inviável ou extremamente onerosa para o Poder Público", como na realização de pequenas despesas, ou de despesas emergenciais, onde "não há condições para uma contratação formal".

Na Consultoria Técnica, onde o expediente foi recebido em 30 de abril, foi lançada a Informação nº 57/2001, de 29-05-2001, onde se conclui "que a Administração Pública somente poderá contratar obras, serviços ou fornecimento de bens com terceiros, após a efetiva comprovação da situação regular do contratado com o sistema de seguridade social e com o FGTS". Com relação a "despesas que não permitam a realização de prévio procedimento formal" ..."encontra a Administração Pública Estadual ... a possibilidade de utilizar-se do regime de adiantamento de numerário ...". Lembra-se, todavia, que "... a utilização deste procedimento também não autoriza a contratação de pessoa jurídica em débito ou irregular com o sistema de seguridade social ...".

Recebido o expediente nesta Auditoria (07-06-2001), foi distribuído a este Auditor.

É o relatório.

Preliminarmente, invocando-se o disposto no art. 138, § 2º, do Regimento Interno deste Tribunal (RITCE), lembra-se que a resposta á consulta não constitui prejulgamento de fato ou caso concreto.

Quanto ao mérito, embora corretas as conclusões da Consultoria Técnica, deve ser fornecida um abordagem mais ampla ao tema, de modo a criar condições para o exercício integral das competências administrativas do Consulente.

Efetivamente, como mesmo demonstra o teor da Consulta, não se pode desconhecer o conteúdo da regra constitucional (§ 3º do art. 195 da Carta Federal), nem tampouco a norma legal com ela conectada (art. 47, I, "a", da Lei nº 8.212/91 - Plano de Custeio da Seguridade Social), verbis:

"Art. 47. é exigida Certidão Negativa de Débito - CND, fornecida pelo órgão competente, nos seguintes casos:

"I - da empresa:

"a) na contratação com o Poder Público ..."

"Empresa", no conceito da mesma lei, é tanto a "firma individual" como a "sociedade", que assume o risco da atividade econômica, com ou sem fins lucrativos, bem como os órgãos e entidades da Administração Pública (art.15, I, da Lei nº 8.212/91).

Assim, a primeira vista, não parece haver dúvida quanto á necessidade da apresentação da CND por quem quer que pretenda contratar com o Poder Público, em qualquer de suas instâncias.

Neste sentido, absolutamente correto o enfoque proposto na Informação nº 57/2001, quando conclui "que a Administração Pública somente poderá contratar obras, serviços ou fornecimento de bens com terceiros, após a efetiva comprovação da situação regular do contratado com o sistema de seguridade social e com o FGTS".

O que pode (e deve) ser repensado, contudo, é um outro aspecto, atinente a natureza jurídica dos fatos apresentados na Consulta, e que ensejam a perplexidade do Consulente, ainda que ciente das normas constitucionais e legais antes referidas. As hipóteses apresentadas (situações "peculiares e excepcionais", onde a exigência da CND "torna-se praticamente inviável ou extremamente onerosa para o Poder Público", como nos casos de pequenas despesas, ou de despesas emergenciais, onde "não há condições para uma contratação formal"), devem ser corretamente compreendidas, na sua estrutura normativa e no seu enquadramento legal.

Inicialmente, vale reafirmar sobre a possibilidade da utilização do regime de adiantamento de numerário para casos tais como aqueles que foram contemplados na Consulta. Consagrado no art. 68 da Lei nº 4.320/64, esta hipótese "consiste na entrega de numerário ao servidor ... para o fim de realizar despesas que não possam subordinar-se ao processo normal de aplicação". No âmbito da legislação estadual, a matéria está tratada na Lei RS nº 10.282/94 (alterada pela Lei RS nº 10.832/96), onde, no seu art. 3º, são definidas as despesas passíveis de adiantamento, de onde se destacam aquelas:

"a) urgentes, que não comportem delongas quanto ao pagamento ...

... "c) pequenas, de pronto pagamento;

... "h) com serviços sazonais ..."

No decreto regulamentador (Decreto nº 35.706/94, alterado pelo Decreto RS nº 36.684/96), exsurge com mais clareza, o funcionamento do regime de adiantamento de numerário, onde se estabelecem limites para os seus valores (art. 6º), que "poderão ser excedidos, mediante autorização da autoridade máxima de cada Poder". A comprovação quanto a utilização destes recursos (art. 11) trará uma série de documentos, entre os quais não se arrola qualquer um relacionado á "regularidade perante á Seguridade Social" daqueles com quem se verificou a relação jurídica do servidor. Aqui, portanto, e diferente do que diz a Consultoria Técnica, não há que se falar em exigibilidade da CND.

Qual a razão desta dispensa? Estaria a legislação estadual afrontando a norma constitucional?

Certo que não.

é que estes casos, rigorosamente, não são de contratação, porque a relação jurídica que se estabelece, que é estritamente de direito privado, não tem natureza negocial, mas, sim, de um ato-fato jurídico.

Nenhuma dúvida quanto ao fato de que a Administração Pública, quando produz fatos jurídicos onde se estabelece em relação de horizontalidade com os particulares, submete-se aos princípios norteadores do Direito Privado, ainda que sem afastar-se daqueles que orientam a atividade administrativa (em sede constitucional, no caput do art. 37 da Carta Federal).

Ora, desde há muito se reconhece que, ao lado das fontes contratuais e dos atos ilícitos, há outras hipóteses de geração de vínculos obrigacionais, entre as quais está o que LARENZ denominou conduta social típica1, gerando situações ora tratadas como atos materiais2, ora melhor definidas como atos existenciais, onde:

"... a lei tipifica diferentes atividades dos particulares, que se tornaram usuais, comuns, no curso dos tempos. A estrutura desses negócios recolhidos pela legislação, passou a denominar-se típica ...

"Essa afirmativa importa em reconhecer haver outros elementos de fixação no mundo social, além do Direito. Todos esses elementos atuam 1 "El moderno tráfico en masa trae consigo que en algunos casos, de acuerdo com la concepción del tráfico, se asuman deberes, nazcan obligaciones, sin que se emitan declaraciones de voluntad encaminadas a tal fin ..." (LARENZ, Karl, em "Derecho de Obligaciones", Tomo I, Ed. Revista de Derecho Privado, Madrid, 1958, p. 58).

2 ORLANDO GOMES, em sua obra "Transformações Gerais no Direito das Obrigações", 2ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1980, p. 56, refere que " ... No ato não-negocial, a vontade do conteúdo é irrelevante. O agente quer realizá-lo e, para tanto, manifesta a vontade, pouco importando o resultado que queira atingir. Nele se empresta relevância tão-somente á vontade da manifestação, ainda que esteja no propósito do agente obter o resultado. é indiferente, porém, que este coincida, ou não, com o previsto e determinado na lei. Em última análise, a distinção ganha clareza á luz da teoria objetiva do negócio jurídico, pela qual a este se considera ato de autonomia privada, natureza que não tem o ato não-negocial ...".

Embora as imprecisões do conceito de "ato material", como logo adiante se demonstrará, esta análise tem o valor de assinalar que é possível a produção de fatos jurídicos que, sem serem meramente acontecimentos fenomênicos, igualmente não possuem caráter negocial, e, logo, não são contratos.

Sobre a atividade dos indivíduos processando-se uma estruturação, um tipificar-se de condutas, na qual a vontade individual, em virtude da objetivação decorrente da incidência daqueles fatores sociais, vai passando para o segundo plano. Em outras hipóteses, o resultado se supõe tão obviamente desejado, a ponto de ensejar, embora possa parecer paradoxal, que não se pesquise sua existência. São os atos absolutamente necessários á vida humana. A tipificação somente cresce de ponto e de importância quando se tratar desse último tipo de ato, pois relativa-se e objetiva-se a vontade, de modo a converter o que seria, "in thesi" negócio jurídico, em verdadeiro ato-fato. Os atos de tipo existencial referem-se ás necessidades básicas do indivíduo, tais como alimentação, vestuário, água etc. Ninguém poderá pensar em anulá-los desde que se realizem dentro de moldes normais e adequados, sob a alegação, por exemplo, da incapacidade de uma das partes. O número de atividades, que se insere na esfera do necessário ou existencial, depende dos usos e concepções de vida de cada povo, havendo, porém, um mínimo comum." (COUTO E SILVA, Clóvis, em "A Obrigação como Processo", Ed. José Bushatsky, 1976, p. 92 - o trecho sublinhado o foi pelo ora parecerista).

Chega-se então á verdadeira natureza jurídica destas situações, dentre as quais se podem recolher aquelas que serviram de base á presente Consulta.

São, como já se disse, atos-fatos jurídicos, geradores, sim, de relações obrigacionais, inclusive para o Poder Público, mas que fogem ao âmbito da noção de contrato. Em recente edição (8ª ed., Ed. Livraria Almedina, Coimbra, 2000), revista e aumentada, de sua conhecida obra "Direito das Obrigações", ALMEIDA COSTA não deixa de referir-se á matéria:

"35. Relações contratuais de facto "Após a análise do conceito de contrato, importa ponderar uma figura jurídica para a qual a doutrina e a jurisprudência alemãs, sobretudo, chamaram a atenção. Foi Haupt quem primeiro aprofundou o problema, referindo-se a relações contratuais de facto («faktische Vertragsverhältnisse»). Aliás, esta nomenclatura, embora expressiva e muito seguida, não se mostra pacífica. Alguns autores entendem mais adequado o qualificativo de comportamentos sociais típicos («sozialtypische Verhalten»), porque ele não induz á conclusão errónea de que se trata de processos extrajurídicos e, ao mesmo tempo, salienta o aspecto, adiante considerado, de que a atribuição de relevância jurídica a tais situações resulta de uma valoração objectiva e não propriamente da vontade negocial dos participantes.

"Esta nova categoria dogmática tem como um dos seus principais alicerces a ideia de que, na contemporânea civilização de massas, segundo as concepções do tráfico jurídico, existem condutas geradoras de vínculos obrigacionais, fora da emissão de declarações de vontade que se dirijam á produção de tal efeito, antes derivadas de simples ofertas e aceitações de facto.

Quer dizer, a utilização de bens ou serviços massificados ocasiona algumas vezes comportamentos que, pelo seu significado social típico, produzem as consequências jurídicas de uma caracterizada actuação negociatória, mas que dela se distinguem.

"é o que se passa com os transportes colectivos, onde, muitas vezes, não se exige prévia obtenção de bilhete, o divulgado abastecimento em sistema de auto-serviço, o fornecimento de bens expostos á utilização do público e os parques de estacionamento remunerados. Opera aqui, em suma, a tipicidade de determinadas condutas: a subida para o veículo, o efectivo uso ou aquisição do produto, o acto de accionar a máquina automática, etc.

"Assim, na referida hipótese dos transportes colectivos, por exemplo, a pessoa que utiliza a linha de autocarros encontra-se, de acordo com os critérios gerais, obrigada ao pagamento do preço que na tarifa corresponde ao trajecto e adquire o direito a ser transportada nos termos também estabelecidos, sem que se pondere se a sua intenção consistia em emitir uma declaração de vontade com esse conteúdo, se tem ou não capacidade negocial e, inclusive, se conhece ou não as condições de transporte.

Entende-se que o significado jurídico destes processos não resulta, propriamente, da vontade negocial dos participantes, mas da sua valoração no tráfico, por serem condutas sociais típicas. No caso figurado, pois, surge um contrato de transporte, tão-só porque, de acordo com os critérios generalizados, um tal resultado se encontra indubitavelmente unido a uma certa conduta do agente e não porque o mesmo haja sido querido e declarado.

"Decorre da doutrina exposta que a autonomia privada se realiza através de duas formas distintas: uma delas é o negócio jurídico, designadamente o contrato - no qual a aparência de vontade e as expectativas criadas podem ceder, diante da falta de consciência da declaração ou incapacidade do declarante; a outra reporta-se ás relações contratuais fácticas - onde a irrelevância do erro na declaração e das incapacidades se justifica por exigências de segurança, de celeridade e demais condicionalismos do tráfico jurídico. Precisamente, concluem os defensores desta construção que a doutrina do contrato, alicerçada em volta do equilíbrio entre a tutela da vontade do declarante e a tutela da confiança do destinatário, se mostra insatisfatória no domínio dos fornecimentos massificados. Só a figura das relações contratuais de facto ou dos comportamentos sociais típicos se revela adequada á sua organização e justa disciplina, em termos de eficiência e igualdade dos utentes.

"Não constitui esse tráfico massificado («Massenverkehr»), dentro da aludida orientação, o único quadro de situações que produzem efeitos próprios dos contratos, sem que esteja na sua base um característico acordo de vontades dos contraentes. Outras categorias de relações contratuais de facto costumam ser apontadas. Em especial: a que abrange as vinculações derivadas de um simples contacto social («sozialer Kontakt»), antes, ou mesmo independentemente, da celebração de qualquer negócio jurídico, «maxime» o caso da responsabilidade precontratual e o do transporte amistoso; e a das relações obrigacionais duradouras, como a de trabalho e a societária, emergentes de contratos ineficazes («lato sensu»), visando-se fundamentar a aplicação a essas hipóteses da disciplina dos correspondentes negócios e consequente não retroactividade da ineficácia ou invalidade.

"(os trechos sublinhados o foram pelo ora parecerista)."

Em outra conhecida obra sobre o tema, o conceito exsurge com ainda maior clareza3, sendo, inquestionável que várias das situações capituladas

3 "Do Ato-Fato Jurídico

§ 34 - Conceituação

Há outras espécies em que o fato para existir necessita, essencialmente, de um ato humano, mas, a norma jurídica abstrai desse ato qualquer elemento volitivo como relevante. O ato humano é da substância do fato jurídico, mas, não importa para a norma se houve, ou não, vontade em praticá-la. Ressalta-se, na verdade, a conseqüência do ato, ou seja, o fato resultante, sem se dar maior significância á vontade em praticá-la. A essa espécie Pontes de Miranda dá o nome de ato-fato jurídico.

§ 35 - Espécies

dentro do regime de adiantamento de numerário envolvem atos-fatos jurídicos, e não contratos (que são, sempre, negócios jurídicos). Só desta forma se explica a mais absoluta ausência de qualquer referência, na legislação pertinente, quanto ao cumprimento de regras (constitucionais e de legislação de caráter nacional) sobre regularidade junto ao Sistema de Seguridade Social. Imagine-se que, ao antecipar numerário para o servidor fazer frente a pequenas despesas (o bilhete do transporte coletivo, o gasto com o táxi ou as despesas com cópias reprográficas), fosse obrigatório que esse mesmo servidor exigisse a CND da transportadora, do motorista de táxi ou do lojista do "xerox". Não há o menor sentido nesta hipotética conduta porque o que se faz, aí, não é um contrato, embora exista fato jurídico, relevante para a Administração.

Em conclusão, pode-se afirmar que é possível para a Administração Pública realizar despesas com a aquisição de bens e serviços de particulares sem exigir comprovação da regularidade destas pessoas para com o Sistema de Seguridade Social, desde que não se tratem os casos de contratos, mas de atos-fatos jurídicos. Para tanto, deverá valer-se o Poder Público do regime de adiantamento de numerário, nos casos e nos limites previstos em lei.

É o meu parecer.

Auditoria, 25 de junho de 2001.

CESAR SANTOLIM

Auditor Substituto de Conselheiro

No conceito de ato-fato jurídico estão incluídos os atos reais, os casos de indenizabilidade sem culpa e os casos de caducidade sem culpa. Por isso, podemos classificar os atos-fatos jurídicos em: 1) atos reais;

2) atos-fatos jurídicos indenizativos;
e 3) atos-fatos jurídicos caducificantes.

1) - Os atos reais (Realakten), também denominados atos materiais (Tathandlungen), consistem em atos humanos de que resultam circunstâncias fácticas, geralmente, irremovíveis. Em todas essas expressões, desde aquelas cunhadas pela doutrina alemã á criada por Pontes de Miranda, se dá relevo á particularidade de que é o fato resultante que importa para a configuração do fato jurídico, não o ato humano como elemento volitivo. Na especificação, por exemplo, interessa o resultado que se obteve, indiferentemente de ter havido, ou não, vontade em obtê-la. O louco que pinta um quadro, adquire a sua propriedade e não importa ao menos se ele sabia, ou não, o que estava realizando. A criança que descobre o tesouro enterrado no fundo do quintal, adquire-lhe a propriedade, independentemente de ter querido, ou não, descobri-la. Nessas espécies, como na ocupação, na produção de obra artística, literária e científica, na caça, na pesca, na invenção, não se tem em conta a vontade em praticar o ato, mas, simplesmente, se toma o resultado, que é dado fáctico com lugar no mundo; por isso mesmo, não pode ser ignorado sob pena de, em se negando a realidade empírica, contrariar-se a própria natureza das coisas." (MELLO, Marcos Bernardes de, em "Teoria do Fato Jurídico", 5ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 1993, pp. 106/107 - o trecho sublinhado o foi pelo ora parecerista).

O lustre parecerista trouxe á lembrança consectário importante dos atos/fatos jurídicos: o consentimento, a vontade, em peculiaridades não tratadas com o devido rigor pela Lei Civil, seja na legislação que a precedeu, seja na atual codificação. Os fatos jurídicos não estão definidos, como não o estavam anteriormente, devendo-se á construção doutrinária, enquanto que os atos jurídicos possuem a nova denominação de negócios jurídicos.

Doutrinariamente, o assunto não é novo, possuindo, além das denominações citadas no ínclito Parecer, colhidos nas letras jurídicas de Pindorama, de ato não-negocial (Orlando Gomes), ato-fato jurídico (Pontes de Miranda), ou no Direito alienígena, de relações contratuais de fato «faktische Vertragsverhältnisse» ou comportamentos sociais típicos «sozialtypische Verhalten» (Almeida Costa), entre outras, a definição do saudoso Sílvio Rodrigues de atos meramente lícitos.

De nossa parte, pensamos não ser possível, no caso específico do adiantamento, a transmutação analógica da teoria dos atos meramente lícitos (ou a definição que se queira dar) em sua inteireza, do Direito Privado para o Direito Público. Isso sob o enfoque da capacidade do agente público, que jamais será um inimputável. Sendo assim, todas as características indispensáveis ao contrato de compra e venda sempre estarão presentes: res, pretium et consensum.

O que nos seduziu foi o enfoque dado ás despesas de adiantamento: o pequeno valor. Bem explícito e elucidativo o exemplo do absolutamente incapaz que se utiliza do transporte urbano; do servidor que "tira xerox" (muito mais que despesas de pequeno valor, são despesas de valor irrisório). Convém destacar o seguinte trecho do Parecer, com grifos nossos:

O que pode (e deve) ser repensado, contudo, é um outro aspecto, atinente a natureza jurídica dos fatos apresentados na Consulta, e que ensejam a perplexidade do Consulente, ainda que ciente das normas constitucionais e legais antes referidas. As hipóteses apresentadas (situações "peculiares e excepcionais", onde a exigência da CND "torna-se praticamente inviável ou extremamente onerosa para o Poder Público", como nos casos de pequenas despesas, ou de despesas emergenciais, onde "não há condições para uma contratação formal"), devem ser corretamente compreendidas, na sua estrutura normativa e no seu enquadramento legal.

ADIANTAMENTO: NATUREZA JURÍDICA

Quando o Estado contrata no regime de adiantamento, há ausência de duas condições em regra exigíveis para os contratos administrativos, quais sejam, a prévia licitação e a redução do contrato a termo (o contrato é verbal).

A administração pode realizar contratos sob normas predominantemente de Direito Privado, em posição de igualdade com o particular contratante, como pode fazê-lo com supremacia do Poder Público. Em ambas hipóteses haverá interesse e finalidade pública, como pressupostos do contrato, mas somente quando há contratação com supremacia de poder é que estamos tratando de contrato administrativo típico. Não é, portanto, o objeto, nem a finalidade pública, nem o interesse público que caracterizam o contrato administrativo, pois o objeto é normalmente idêntico ao do Direito Privado e a finalidade e o interesse público estão sempre presentes em quaisquer contratos da Administração, sejam públicos ou privados, como pressupostos necessários de toda atuação administrativa. é a participação da Administração, derrogando normas de Direito Privado e agindo sob a égide do Direito Público que tipifica o contrato administrativo. Além dessas características substanciais, o contrato administrativo possui uma outra que lhe é própria, embora externa, qual seja, a exigência de prévia licitação, só dispensável nos casos expressamente previstos em lei. Mas o que realmente o tipifica e distingue do contrato privado é a participação da Administração na relação jurídica com supremacia de poder para fixar as condições iniciais do ajuste. Desse privilégio administrativo na relação contratual decorre para a Administração a faculdade de impor as chamadas cláusulas exorbitantes do Direito Comum13.

As cláusulas exorbitantes podem consignar as mais diversas prerrogativas, no interesse do serviço público, tais como a ocupação do domínio público, o poder expropriatório e a atribuição de arrecadar tributos, concedidos ao particular contratante para a cabal execução do contrato. Todavia, as principais são as que se exteriorizam na possibilidade de alteração e rescisão unilateral do contrato; no equilíbrio econômico e financeiro; na revisão de preços e tarifas; na não oponibilidade da exceção de contrato não cumprido; no controle do contrato e na aplicação de penalidades contratuais pela Administração.

Sendo assim, o contrato rege-se por normas de cunho exclusivamente privado, sendo aplicável em toda a sua inteireza a parte final do "caput" do art. 54 da Lei 8666/93: "Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado".

Nos contratos verbais do regime de adiantamento a Administração não contrata com supremacia de poder, não sendo exercitável as cláusulas exorbitantes do Direito comum. é por demais evidente que não haverá possibilidade de rescisão unilateral, equilíbrio financeiro, excepti non adimpleti contractus, revisão de preços e tarifas. São disposições de Direito Público que só tem aplicabilidade em casos de contratos administrativos típicos.

Os contratos de adiantamento são permitidos em caso de pequenas compras de pronto pagamento, i.e., compras á vista. Logo, a figura do adjudicatário é inexistente, tornando impossível aplicar a sanção de recusa em contratar, previsto no art. 81 da Lei 8.666/93. Impossível também a ocorrência de inexecução total ou parcial do ajuste verbal por parte do contratado, ensejadora da aplicação de qualquer sanção administrativa.

O Estado paga o preço e recebe a coisa, e tudo se restringe a isso. é um contrato regido por normas de natureza exclusivamente privadas, efetuado no mercado de consumo. Só. Nada mais.

CND E ADIANTAMENTO

Neste tópico trataremos das CND exigíveis em casos de débitos com a seguridade, excluídos os débitos com o FGTS porque estes são considerados, pelo entendimento jurídico preponderante, como débitos de natureza trabalhista. Ademais, não estando abarcados pelo § 3º do art. 195 da CF, também a legislação infraconstitucional não os exige para casos de adiantamento. As disposições do art. 29, IV e 55, XIII, da Lei 8.666/93 só tem aplicação em contratos administrativos típicos, conforme procuramos expor.

Em caso de entendimento de que a quitação com o Fundo de Garantia deveria ser exigida nos mesmos termos dos débitos de seguridade, em vista de possuírem a mesma natureza jurídica (nossa posição), tem inteira aplicação o que diremos nesse item.

Podemos classificar as despesas efetuadas pelo regime de adiantamento de duas formas:

- as irrisórias;

- as de pequeno valor propriamente dito.

Irrisórias seriam aquelas de valor ínfimo, v.g., um, dois, dez reais. As demais seriam de pequeno valor propriamente dito.

Exigir-se CND em casos de compras de valor insignificante seria muito mais que excesso de formalismo. Corrobora subserviência desmedida á letra da lei. Absurdo.

Isso é contrário ao interesse público.

Inexigir CND nesses casos não fere a lisura que quis o legislador no trato da coisa pública. Não é legítimo uma burocracia desse tamanho num procedimento que a própria lei já simplificou.

Num caso hipotético de compra que beirasse o limite de quatro mil reais definido pela Lei 8.666/93 é até cabível falar-se em exigência das CND. Mas será imoral descambar a sua falta para responsabilidade do funcionário que a não exigiu. Aliás, nesse campo os princípios que têm aplicação plena são o da razoabilidade e proporcionalidade. é irrazoável e desproporcional exigir-se as CND das quitações.

Na verificação das contas efetuadas pelo regime de adiantamento, deve-se atender á moralidade, á probidade, á legalidade, e seus correlatos. Adiantamento não significa um regime de arbitrariedade com o patrimônio público, mas é constituído de discricionariedade mais larga. Isso sim.

Entendimento contrário conduzirá, fatalmente, á inviabilidade do regime de adiantamento.

Ademais, do ponto de vista do contratado, é preferível não levar a cabo a avença. Numa situação de compra de cinco reais, e.g., se o agente público contratante exigir as certidões do vendedor, no mercado de consumo, é bem possível que ele - vendedor - tenha um ataque de riso.

CONCLUSÃO

- A contratação direta, nos limites estabelecidos pelo parágrafo único do art. 60 da Lei 8666/93, no regime de adiantamento, torna despiciendo a exigência de quitação com o INSS e o FGTS;

- No regime de adiantamento, embora a CF imponha regra de quitação de débitos do INSS para contratação com o Estado, a coação indireta não deve ser exercida porque a Administração não produz contrato administrativo típico, ficando ausente a supremacia do Poder Público exorbitante do Direito comum, sob pena de inviabilidade de pequenas compras de pronto pagamento - art. 95, § 2º da CF, arts. 2º, parágrafo único e 54, "caput", da Lei 8666/93;


- As normas vigentes imputam responsabilidade ao Estado nos contratos terceirizados, visto que na prestação de serviços a Administração se beneficia diretamente do trabalhador;

- A responsabilidade do Estado é subsidiária pelos débitos devidos ao FGTS, nos contratos de prestação de serviços - Enunciado 331 do TST;

- A responsabilidade do Estado é solidária pelos débitos devidos ao INSS, nos contratos de prestação de serviços - art. 71, § 2º da Lei 8666/93, art. 31 da Lei 8212/91;

- Nos contratos que não sejam de prestação de serviços, embora pela legislação vigente não haja responsabilidade da Administração pelo débitos decorrentes do INSS e FGTS, suas quitações são exigíveis sempre, visto serem características indispensáveis da habilitação - art. 29, IV cc art. 55, XIII da Lei 8666/93;

- A coação indireta na exigência da quitação dos tributos pela Administração é legítima, independentemente dos requisitos gerais de habilitação. Os direitos sociais e econômicos, especialmente do homem trabalhador, vigem no ordenamento jurídico brasileiro como direitos e garantias fundamentais, tendo aplicabilidade imediata, cumprindo precipuamente ao Estado sua fiel observância - Constituição Federal, Preâmbulo, arts. 1º a 3º, art. 5º, § 2º, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais.

NOTAS:

1 - Elementos de Direito Administrativo, São Paulo, Ed. RT, 1980, p. 230 apud José Afonso da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p.84.

2 - David M. TRUBEK, Economic, social and cultural rights in the third world: human rights law and human needs programs, In: Theodor Meron Ed., Human rights in international law: legal and policy issues, Oxford, Claredon Press, 1984, p.205-206, apud Flávia PIOVESAN, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p.197.

3 - José Afonso da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p.242.

4 - Constituição Federal, art. 60, § 4º, IV.

5 - Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p.197.

6 - José Afonso da SILVA, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Ed. RT, apud Michel TEMER, Elementos de Direito Constitucional, 7ª ed., São Paulo, Ed. RT, 1990, Ed. RT, p.27.

7 - Cf. Michel TEMER, Elementos de Direito Constitucional, p.26.

8 - Iniciação ao Direito do Trabalho, p.335.

9 - Cf. Sílvio RODRIGUES, Parte Geral das Obrigações, p.66.

10 - Hely Lopes MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, p.237).

11 - Marçal JUSTEN Filho, Comentários á Lei de Licitações e Contratos Administrativos, p.228-229.

12 - Antonio Roque CITADINI, Comentários e Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas, p.144-145.

13 - Hely Lopes Meirelles, cit., p.196.

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NOTA: o autor mudou seu parecer com respeito á data de realização do presente trabalho.

 

Autor:

Luís Carlos de Almeida Hora

lucaho[arroba]ig.com.br



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