Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 


S. Frei Gil, um santo carbonário (página 2)

Maria Estela Guedes

Livre agora e para sempre, Frei Gil dedica-se a Deus e aos doentes do hospital, lavando-os, dando-lhes de comer, rezando por eles. E ia obrando muitos milagres: a uns livrou de morrer com espinhas cravadas na garganta, a outros de ossos entalados na glote, a outros de tumores na boca. A uns curava impondo as mãos, a outros rezando. E ainda fazia milagres por interposta pessoa, se muito lhe rezasse, ou tocasse o enfermo com um objecto seu. Os milagres de S. Frei Gil, que ainda não chegou a santo, continuam a realizar-se, prova de que a crença é mais forte do que a morte. E tanto assim é que milagres bem conhecidos dele são a salvação de dois meninos caídos numa fonte de águas termais. Sabendo-se que um deles, além de morto havia horas, tinha ficado cozido na água a ferver. é de todos conhecido que S. Frei Gil tem poder para ressuscitar os mortos.

Mas voltemos aos seus estudos, pois Gil foi toda a vida um escolar, ou porque aprendia, ou porque ensinava. Pela segunda vez volta a Paris, agora a tirar o curso de Teologia. Em datas incertas, cito de Jorge Custódio, "é nomeado segundo prior da Ordem dos Dominicanos, e por duas vezes".  

Como Provincial de Espanha, visitou várias cidades da Europa. De uma vez, dirigia-se ás Baleares, para presidir a um capítulo. No cais, cheio de gente que ia embarcar, ouve-se o estrépito de um espirro. Pior sinal não podiam ouvir os marinheiros, um aviso daqueles, saído das cavernas da boca e do abismo do nariz, anunciava tempestade e com ela naufrágio certo. Determinaram não soltar amarras nesse dia. Porém S. Frei Gil mostrou-lhes e aos viajantes como era indigno de cristãos acreditar em tais superstições.

"…absit, inquit, fratres mei, a nobis superstitio haec, nec enim, mihi credite, christianos tale decet augurium, sapit nam paganismus" (Frei Baltasar de S. João, p. 61-63).

Convencidos, partiram. Iam no mar alto, sobrevém aterradora tempestade. Frei Gil pede a Nossa Senhora que os deixe alcançar Palma de Maiorca, e a tempestade, contrita, desfaz-se em lágrimas. Desembarcados sãos e salvos na terra de Raimundo Lúlio, ficam a saber que um outro barco, carregado de dominicanos que também iam ao capítulo, tinha naufragado. Morreram todos afogados.

Já velho, coxo, porque os ossos tinham perdido o cálcio da mocidade, Frei Gil conversava certa tarde com o rei D. Afonso III, que viera visitá-lo ao seu jardim. Ajudara-o a sentar-se no trono, tal como ajudara á deposição de D. Sancho II, seu irmão. D. Afonso III sofria de gota, por isso andava mal das pernas, dorido e trôpego. Então disse ao amigo: "Frei Gil, o vosso bordão parece bem melhor que o meu. E se trocássemos?" Sem esperar resposta, trocou os bordões. E a verdade é esta: D. Afonso III logo ali começou a andar escorreitamente e sem nenhumas dores, mal apoiou o corpo ao bordão de S. Frei Gil, que já fora o bordão de S. Domingos.

E ao santo também o bordão rejuvenesceu e curou as pernas, pois no Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém, realizado em 1990 pela Associação Portuguesa de Arqueólogos, três antropólogos foram solicitados para examinar um relicário do santo, que contém uma tíbia. Em resultado dos exames, os três cientistas declararam que a tíbia, devidamente identificada com a inscrição "B. Aegidii", pertencera a um homem de idade inferior a sessenta anos, com os ossos perfeitamente sãos.

Na corte, era tal a influência do santo, e tão forte a lembrança dos seus milagres, entre os quais se contava o bom sucesso nos partos, que as princesas e rainhas grávidas costumavam encomendar-se a S. Frei Gil. Entre outros bons nascimentos, foi assim que veio ao mundo El-Rei D. Sebastião.

2. Gil: Nemo ou Todos-os-Santos?

S. Frei Gil, considerado escritor, pouco ou nada escreveu que se possa garantir que é dele. Pertencem de certeza a um frade dominicano a dezena e meia de fragmentos das Vitae Fratrum , nas quais se fala de uma viagem a Bolonha, do quotidiano de um convento, e de episódios estranhos como visões, êxtases e levitação. Não ponho nada disso em causa, o problema é outro. Para fazer sentido dizer que tais obras foram escritas por S. Frei Gil, é preciso saber primeiro quem foi esse Gil. Ora a identidade de Gil varia consoante as fontes, e neste ponto não vou levar em conta outros S. Gil, dos quais João Oliveira fez levantamento, com os quais se pode estabelecer confusão. A confusão não se estabelece entre S. Gil do século XII e S. Gil do século XVIII, sim entre Gil, Gelásio, Gelvaz, Santo Egídio, entre Gil Rodrigues Valadares e Gil Pereira, e mais designações por que é referido.

A identidade do autor é caprichosa, e tem vindo a ser cada vez mais dissolvida na literatura, provavelmente de acordo com o princípio hermético de ocultar os iniciados, prestando-se sobre eles falsas informações biográficas. Se pegarmos no nosso cartão de identidade, vemos que são essenciais o nome, a filiação, a data de nascimento e a naturalidade. Em relação a esta, não detectei anomalias de maior, apesar de circularem várias fórmulas: S. Frei Gil de Portugal, S. Frei Gil Espanhol, S. Frei Gil de Santarém e S. Frei Gil de Vouzela. Porém paternidade e maternidade estão altamente comprometidos, o mesmo podendo dizer-se da data de nascimento. Tomando duas das mais extremas, direi que Santo Egídio de Coimbra viveu bem mais de duzentos anos.

António Pereira Forjaz, da Academia das Ciências de Lisboa, onde existem manuscritos sobre Gil, como revela Ramalho ao comentar uma versão da "Conversio Miranda D. Aegidi Lusitani, Doctoris Parisiensis, Ordinis Praedicatorum", de André de Resende, algo diversa da publicada, não tem dúvidas:

"D. Gil ou Egídio de Valadares viu a luz em Vouzela - em 1185: dez anos antes de Santo António - no solar de seu pai, D. Rui Pais de Valadares, senhor de Mortágua e Gonfalim, Pretor ou Alcaide-mor do Castelo de Coimbra".

Frei Baltazar de S. João, que escreveu no século XVI, antes de André de Resende e de Frei Luís de Sousa, também não tem dúvidas nenhumas:

"O nosso extraordinário Padre Fr. Gil era natural de Portugal, onde nasceu na vila de Vouzela, situada nos termos de Coimbra. Seus pais eram de alta nobreza, descendentes, aliás, de estirpe real, e tidos na maior consideração entre os fidalgos. O pai chamava-se D. Rodrigo Pereira, e era um cavaleiro valoroso e magnânimo. Tomara-o o rei D. Sancho por conselheiro, e até por íntimo, e, porque o apreciava mais que qualquer outro, confiara-lhe o cargo de alcaide da cidade de Coimbra e entregara-lhe, por vezes, o governo de todo o reino."

Páginas adiante, e saltamos filiação materna e outros dados problematizantes, escreve o mesmo cronista dominicano:

"Na verdade, aos 26 anos de idade, ou seja no ano 1335 da Incarnação do Senhor, ingressou na Ordem dos Pregadores, apoiado pelo bastão da pregação evangélica, venceu mesmo ás claras os demónios e exterminou em muitas partes todas as manchas de heresia..."

Frei Gil, como se nota, viveu afinal no século XIV: "nam vigesimo sexto aetatis suae anno, millesimo uero trecentesimo trigesimo quinto Dominicae incarnationis religionem Praedicatorum ingressus..." - reza o manuscrito. Esta falsa informação ocorre sempre que há datações, o que altera em um século a sua idade, além de erros menores, a este sobrepostos.

Factor dissolvente da identidade é também a atribuição a Frei Gil de milagres alheios. Outros que antes de mim escreveram, na maior parte dominicanos, informam que a conversão de Frei Gil é a de S. Paulo. Por mim, que não conheço santos, só me apercebi de duas categorias de milagres que não encaixam numa fábula convincente: as curas de vinho e as do tabu da fala.

Os milagres de tornar mau vinho em bom vinho, além de plágio dos de Jesus Cristo, lembram demasiado a diva garrafa de Rabelais, ou seja, a capacidade divinatória que nas bacanais o vinho proporcionava. Aliás, S. Frei Gil diz-se que era nigromante, adivinho, astrólogo, e existe na sua literatura um veio temático sebastianista, fundado num texto com esse teor que lhe é atribuído.

Milagres que se diz ter feito mas pertencem a outro santo são os que apontam para o verbo - fonética. A parte mais significativa dos seus milagres diz respeito a curas de males que afectam o aparelho fonador, ou porque a pessoa fica muda, surda e muda, ou porque morre asfixiada, deixa de pronunciar claramente as sílabas, de poder falar em voz alta, passando a ciciar. Em síntese: a pessoa quer falar mas não pode. Imaginai a minha situação aqui, num convento dominicano, a fazer uma conferência sobre um santo, um dos primeiros provinciais da Ordem, e ter de dizer que tal pessoa não é nada um santo, é um nigromante! Imaginai que isso é de facto o que eu penso, mas poderei dizer o que penso? A democracia em que felizmente vivemos, e que acabou com a censura, dando-nos este maravilhoso bem que é a liberdade de expressão, será suficiente para me permitir falar sem medo? Ou vou ficar calada como se o santo fosse um osso atravessado na garganta, que não me deixa falar?

A história da tempestade, antes do embarque para as ilhas Baleares, teve um prognóstico nesta linha de ideias: alguém espirrou, alguém emitiu um som estranho com o aparelho fonador. Ora curas de espinhas e ossos entalados na garganta, de tumores na boca, de lepra no nariz, pertencem a um santo que em França é Saint Blaise. Saint Blaise é um ponto de referência alquimista: Blaiser significa ciciar, alusões a cicios, a S. Blaise, a doenças que não deixam falar, são avisos de que estamos em presença dos códigos secretos dos iniciados. Presumo que o santo se chame em português S. Brás ou S. Brásio, o que lembra "brasão" e "brasonar", ambos os termos homólogos de blaiser, no sentido em que esse código secreto, chamado também língua das aves, língua verde, língua diplomática, diva garrafa, etc., etc., tinha na heráldica um dos seus suportes.

Recapitulando: milagres alheios são atribuídos a S. Frei Gil, bem como a história da conversão de S. Paulo. Falta saber qual a origem do pacto com o Demónio: será original esta informação biográfica?

O pacto com o Diabo pertence á história do mago Teófilo. Desde o século IX corre nas hagiografias a história do cavaleiro que assinou um contrato com o Demónio e depois o recuperou graças á intercessão de Nossa Senhora.

No tempo de Gil, encontramos o tema do mago Teófilo glosado pelos trovadores, por exemplo nas cantigas de Gonzalo de Berceo e de Afonso X, o Sábio. Podem lê-los no TriploV.  

Porquê esta criação de uma personagem duplamente colectiva? Colectiva porque Gil não é um santo, é uma mistura de vários, e colectiva na acepção de Pinharanda Gomes, ao comentar que a história de Gil é um conto a que todos vamos acrescentando mais um ponto.

Os intelectuais não podiam falar, e além disso não havia liberdade de culto. No curso da História, só por momentos breves tem havido inteira liberdade de expressão. Perguntei ao jornalista Acácio Barradas, que foi chefe de redacção em vários dos mais importantes jornais portugueses, como se procedia antes do 25 de Abril para fintar a censura. Ele respondeu que se escrevia nas entrelinhas, não havia nenhum código específico. Quando os jornalistas queriam referir um facto grave do Estado Novo, sabiam que os censores riscariam o parágrafo. Então remetiam o facto para o período da República. Ao longo da História, vão-se acumulando os dispositivos para iludir censores e para proteger os que não fazem parte da comunidade dominante. Segundo certas fontes, Frei Gil era árabe, ou no mínimo pertencia a uma comunidade moçárabe. O seu tempo é o da expulsão dos árabes da Península. Na literatura egidiana referem-se mais circunstâncias históricas que justificam a presença de códigos secretos no discurso:

• Frei Gil foi contemporâneo da primeira cruzada, que teve por fim eliminar a heresia cátara.

• Foi o primeiro prior dominicano a nomear inquisidores na Península Ibérica.

• A alquimia era tida por arte do Demónio.

• A medicina também não era bem vista pela Igreja, que chegou a proibir os clérigos de fazerem cirurgia e de praticarem a medicina fora dos conventos.

Se Gil foi alquimista ou se perfilhou uma qualquer heresia, pois havia várias, como a dos Fiéis do Amor, a que alguns autores o associam, viveu em risco de ir parar á fogueira.

A fogueira, a censura política e religiosa, as repressões á livre expressão do pensamento criaram estratégias de defesa e de protecção comunitária, entre as quais é preciso contar com as derivas linguísticas, os códigos segundos e terceiros que, dentro de um texto em aparência inocente, fornecem informações que só decifra quem tem a chave. Veremos um desses dispositivos, patente na literatura egidiana, mas antes de lá chegarmos é bom assentar em que o maior milagre de S. Frei Gil é justamente aquilo a que chamo "literatura egidiana".

3. Literatura egidiana

Frei Gil, ou Santo Egídio, tem gerado uma quantidade enorme de textos sobre ele na Península Ibérica. Romances, poesia, teatro, hagiografias, artigos científicos de antropologia, arqueologia, um sem número de trabalhos dos autores mais importantes - Frei Luís de Sousa, André de Resende, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, António Correia de Oliveira -, e que convoca as principais três ciências que dominava Frei Gil: Medicina, Magia e Teologia.

A Frei Gil são atribuídas muitas obras, além dos fragmentos das Vitae Fratrum. Por exemplo, seria autor de um "Livro de Naturas", com receitas e nomes de plantas medicinais.

Corre um texto pequeno, em prosa, no teor idêntico ás Trovas do Bandarra, que justifica a temática sebastianista de alguns ensaios sobre ele. Este texto sebastianista diz-se que é de sua autoria. Também o consideram trovador, e tradutor de Razi, um alquimista e médico árabe, que terá sido o seu primeiro mestre. Mas nada disto, a ser verdadeiro, iguala a riqueza de trabalhos que se têm escrito sobre ele.

Repare-se que a Academia das Ciências publica um texto intitulado: "São Frei Gil e a Academia das Ciências". António Pereira Forjaz, o autor, refere-se á literatura sobre Frei Gil assinada por membros da Academia. Vejamos o rol dos académicos interessados em assunto que se diria o mais possível afastado das suas tradições de livre e maçónico pensamento: Eça de Queirós, Almeida Garrett, José Maria Rodrigues, Joaquim de Carvalho, Braamcamp Freire, António de Vasconcelos, António Sardinha, Teófilo Braga, Júlio Dantas, e "tantos mais", escreve o académico. Porque é que na Academia das Ciências há tanto interesse pelo taumaturgo? Porque é que, afinal, todos nos interessamos por ele, e não apenas os dominicanos? Será por causa de temas como o do Fausto português? Ou por este Fausto ser uma obra colectiva dos esoteristas portugueses?

A literatura egidiana é uma floresta que convém explorar. À semelhança de Santo Alberto Magno, de Ramón Llul e de tantos outros, cujas obras de alquimia não parecem ter sido obra deles, a autoria de um incerto S. Frei Gil há-de ter servido para desviar as suspeitas dos inquisidores do verdadeiro autor das obras que lhe são imputadas.

4. As três ciências

A literatura egidiana situa-nos Frei Gil quase sempre num espaço de transitoriedade, ou porque ele viaja de universidade em universidade, o que é próprio dos alquimistas, ou porque o seu lugar é novo, do que ainda não é completamente, mas virá a ser. Assim ele é um homem da formação da nacionalidade, num tempo em que as fronteiras de Portugal ainda não estavam definidas; ele ainda não tem nacionalidade nem cultura definidas, transitava da cultura árabe para a hispânica. Ele é estudante do mosteiro de Santa Cruz, num tempo em que em Portugal ainda não existia Universidade, mas em breve existiria. Em 1290, D. Dinis cria o Estudo Geral em Lisboa, com licenciaturas em Artes, Direito Canónico, Civil e Medicina. No seu tempo de estudante, quando leu as 33 obras da bem provida livraria do mosteiro, como garante Eça de Queirós, no seu lindíssimo conto inacabado, Santa Cruz desempenhava funções de Universidade, mas era apenas uma escola catedralícia.

Só em 1309 o mesmo rei funda em Coimbra o Estudo Geral, para ensino da Sacra Página, Decretais, Leis, Medicina, Dialéctica e Gramática. Finalmente, ele situa-se nos primórdios da fundação da Ordem Dominicana.  

Com a Medicina, ele é também um homem de vanguarda: esse ensino ainda não existia em Portugal, no reino havia falta de médicos, Frei Gil será dos primeiros escolares a beneficiarem das bolsas de estudo concedidas com o fim de os estudantes do mosteiro de Santa Cruz irem a Paris tirar o curso.

Com que intenção terá um jovem bem nascido, rico, tirado o curso de médico, se, como apurou João Oliveira, o médico não só era mal visto como ganhava três vezes menos que um tabelião? O rei podia estar interessado em médicos, mas a Igreja nem por isso, pois a fé bastava para curar. Frei Gil é o homem das três ciências, e a maior de todas, diz o Demónio, é a Magia. A batalha vai travar-se entre as duas ciências do sobrenatural: Magia e Teologia. Uma vez que Gil se converte e abandona a Magia, diríamos que venceu a Teologia, outra forma de medicina. Ele é chamado médico das almas, na fase em que proliferam os milagres, já depois de recuperado o contrato feito com o Demónio. A Medicina não tem importância na narrativa, os autores sabem que ela trabalha no domínio das coisas naturais, e o natural é uma categoria de realidade inferior. Em aparência, dada a espectacularidade e quantidade dos milagres, que incluem ressurreição dos mortos, a Teologia é a mais poderosa das ciências, pois fornece cura para todas as doenças.

Acontece que nem os clérigos acreditam nestas histórias. O tradutor de André de Resende queixa-se de que ele está sempre a fazer troça, outros desesperam-se porque os autores antigos escrevem em latim bárbaro e cometem erros inexplicáveis, temos em cena uma Academia das Ciências a reclamar para ela uma literatura egidiana - e que literatura é essa, saída da Academia das Ciências? Como seria de esperar, é uma literatura que está do lado da Medicina e da Magia, não do lado da Teologia. O ponto de vista académico ilumina o alquimista, o nigromante. E que pode saber a Academia das Ciências que não saibam os clérigos cuja hermenêutica se faz exclusivamente na linha da medicina das almas, ou seja, da vitória da Teologia sobre a Magia?

A Academia, instituição de origem maçónica, sabe ler nas entrelinhas. Quem hoje detém as chaves da Tradição e se esforça por conservar os conhecimentos do esoterismo é a Maçonaria. Se a Academia das Ciências leva a sério o que para uma mente positiva, ou mesmo positivista como é o caso de Teófilo Braga, que escreve a mais monumental obra sobre Frei Gil, não passa de um acervo de patranhas, em que nem os dominicanos acreditam, é porque as patranhas são forma discreta de falar.

5. Legenda: o que está escrito

Na literatura egidiana, um termo com o qual deparamos a cada passo é legenda . Lenda também aparece, mas menos vezes. Legenda é o que deve ser lido, logo aquilo que está escrito. O facto afasta-nos do significado habitual de "lenda", a narrativa com origem na cultura popular. O povo era analfabeto, a sua cultura era oral e não escrita. Na Idade Média, a despeito de o ensino estar concentrado nos mosteiros, raros clérigos e raros nobres sabiam ler e escrever. A legenda era assim algo próprio de uma pequena élite de letrados, que naturalmente incluía o alquimista. Estes intelectuais exaltam a escrita á esfera do divino, porque maioritariamente são gente do sagrado.

Só numa corporação de escritores se concebe que um pacto com o Demónio tenha de ser de papel passado, e escrito a rubro, como as rubricas egípcias. Thot, o Hierogramático Perfeito, é que escrevia a vermelho.

Não sei em que cor escreveu Deus os Dez Mandamentos, nas tábuas que entregou a Moisés. Também não sei de que cor eram os caracteres impressos naquele pano que Jibrail, o Anjo Gabriel, pôs á frente dos olhos de Muhammad, abençoado seja o seu nome, exigindo: "Lê!"

Como? Como é que um analfabeto poderia ler? Num desespero, reclamou, como se Deus fosse ignorante da sua ignorância: "Não sei ler!". Mas Jibrail insistiu e Muhammad, que Deus o cubra de glória, leu, porque esse foi um milagre da escrita sagrada e a primeira revelação.

Este é o espaço cultural da legenda do Beatus Aegidius . Nada tem de popular. Outro lugar-comum na sua literatura é a frase: "Os que antes de mim escreveram". Podemos não ter já as fontes primárias, mas elas eram escritas. A cultura é escrita e de transmissão de testemunho, reverenciam-se os autores. Mundo dos escolares, da escolástica. Ora a escolástica gera a rebelião, pois por muito doutos que sejam os mestres, e por muito pobres que sejam os estudantes, a juventude contém em si a semente da contradição, degrau da ascensão á sua própria mestria e individualidade. A este Espírito de Contradição da juventude, dá Teófilo Braga o nome de Titivetilarius. Titivetilarius é o escolar pobre, o pobre de espírito, Espírito Santo, que ás vezes apetece chamar Espírito Santo de Orelha. é um que ás vezes os mestres põem ao canto da sala de aula com orelhas de burro enfiadas na cabeça, porque comete muitos erros e dá muitas silabadas no latim.

Se a lenda egidiana nada tem a ver com a cultura popular, já se insere naturalmente na tradição estudantil. Da legenda ouvimos por vezes dizer que contém erros de palmatória, que está escrita em latim bárbaro, que o autor troça enquanto escreve. São caracteres diagnosticantes de uma literatura de estudantes em que a autoria é imprecisa, porque a obra é colectiva e os textos aumentam de reedição para reedição; pode aparecer o pseudónimo nela em vez do nome; essa literatura está escrita num latim miscigenado com a língua materna, o que resulta numa nova língua, um híbrido chamado latim macarrónico; nesta literatura os autores estão sempre a fazer troça.

Os estudantes sempre se associaram, e por vezes o seu associativismo é revolucionário. Em finais do século XVIII, em Portugal, as associações de estudantes são sociedades iniciáticas. De uma delas, a Maçonaria Académica, vai nascer outra, que a páginas tantas transborda para fora das escolas por se transmitir aos quartéis e um pouco a toda a gente, incluindo frades. Falo da Maçonaria Florestal, ou Carbonária, cujo catecismo levou á implantação da República.

Uma das obras mais importantes sobre S. Frei Gil, já o afirmei, pertence a Teófilo Braga. Certamente não agradará á Igreja católica, mas Theophilo, cujo nome nem é de baptismo nem pseudónimo literário, divulgador do positivismo em Portugal, tinha relações mais estreitas com outra Igreja, a Igreja Positivista do Brasil, que se apressou a manifestar-lhe apoio em telegrama, mal ele assumiu a primeira Presidência da República. O livro, 300 páginas de teatro em verso, irrepresentáveis mesmo em telenovela, funciona como sebenta, para usar um termo do calão universitário. Homem de cultura colossal, Teófilo conhecia muito bem as instituições escolares: publicou uma História da Universidade de Coimbra.

A história de S. Frei Gil é obra de escolares, por isso colectiva, galhofeira, irreverente, cheia de monstruosidades linguísticas e de cultura geral. São académicos, autores ligados estreitamente a associações de estudantes que pegam nela, e dois são muito conspícuos: Teófilo Braga e Almeida Garrett. Almeida Garrett foi um dos membros da Sociedade dos Jardineiros, provavelmente seu co-fundador, em Coimbra. A Sociedade dos Jardineiros, ou Sociedade Keporática, como lhe chama Oliveira Marques, é uma organização da Maçonaria Florestal, mais conhecida entre nós como Carbonária.

O "S. Frei Gil" de Teófilo é um tratado sobre a cultura medieval, com o amor cortês, votado á dama e a Nossa Senhora, perseguido como heresia, pois o Amor é nela mais forte do que o Verbo. Este Amor é um anagrama de Roma, funcionando como assinatura dos Fiéis do Amor, os que se opunham á Igreja de Roma. Todo o livro, de resto, é joanino, o que nos leva para as regiões do Espírito Santo, de Joaquim de Fiore, etc.. Na hermenêutica de Teófilo, S. Frei Gil era um trovador, um herege, um alquimista, apaixonado por D. Teresa, a rainha divorciada do rei de Leão, que entrara num convento de beguinas em Toledo. As beguinas professavam a heresia do Espírito Santo, desse Amor cátaro que desprezava o corpo.

Nas Covas de Toledo, Teófilo Braga inicia Gil, o Fiel do Amor, na Irmandade do Livre Espírito. O recipiendário teve Thomaz Scotto por padrinho. Publicado o livro em 1905, á beira da República, e certamente porque ele mesmo era um jardineiro, Teófilo faz o santo ser iniciado na Maçonaria Florestal Carbonária.

6. Titivetilarius, ou a escrita do Diabo

Titivetilus é uma personagem da peça de Theophilo Braga, "S. Frei Gil de Santarém". é uma figura compósita, que representa o escolar pobre, mas também o mestre e o criado. é com Titivetilarius que Frei Gil faz contrato escrito, portanto Titivetilarius é o Diabo. A partir da iniciação em Toledo, e lembremos que Gil é iniciado na Carbonária, uma organização subversiva e terrorista, Titivetilus, na redacção abreviada, passa a ser o companheiro de de S. Frei Gil. Mas Titivetilarius, na origem, não é uma pessoa nem um demónio, sim a presença do erro deliberado na escrita. Como podem calcular, nós sacralizamos a palavra escrita, de modo que admitir que alguém altere em cem anos a data de ingresso de S. Frei Gil na Ordem dos Pregadores é o mesmo que admitir que Deus possa ter errado de propósito o que escreveu nas Tábuas da Lei.

Mas note-se: esse erro não está dissimulado, dissimulado está o erro de quatro ou cinco anos. Um desvio de um século em cima de uma data errada em cinco anos já é publicidade, exibicionismo. Perante esse sinal de trânsito, o leitor tem forçosamente de parar, de fazer perguntas, porque o caminho se tornou uma encruzilhada. Olhando para o erro, o leitor insurge-se contra o autor: "Não! Isto não é possível! Estás a gozar comigo!"

Vejamos o que a respeito nos diz Theophilo:

"Na tradição das Escholas das Collegiadas e das Universidades foi creado esse typo, que encarna a Dialectica dissolvente; era a entidade malevola Titivetilarius, que apanhava na discussão e exposição escholares todas as syllabadas, que tornavam erroneas as fórmulas dogmaticas. Desde que a Verdade se não procurava nos phenomenos, mas nas fórmulas verbaes que os significavam, o erro systematico era uma condição para dar margem á livre critica. Victor Leclerc, o erudito que mais profundamente conheceu a vida das Universidades nos seus usos e conflicto de doutrinas, notou essa Entidade malévola creada sob o terror da Sciencia no seu destino emancipador. Titivetilus é pois um Symbolo de origem escholaresca, que, sem o ridículo do diabo de farça, exprime bem o aspecto de insurreição mental que hallucinou a maior parte dos pensadores da primeira Renascença; e para que essa Entidade tome realidade e actue na agitação das Escholas, encarna-se no typo vulgar do Escholar pobre, tão caracteristico pela sua vida errante de Universidade em Universidade, e na turbulencia estudantesca levada ás veses a plenas revoltas. Mephistopheles suscita na segunda Renascença a seducção pela Natureza, particularisada na sensualidade feminina; Titivetilus provoca a insurreição mental, e pelo abuso da Dialectica formalistica arrasta á Negação, que predominou na primeira Renascença".

Titivetilarius é uma pedra de tropeço, um obstáculo á leitura, porque é um escolar estúpido, ignorante, comete muitos erros, é um frade que não distingue frades maiores de frades menores, Gil e Gelásio, para ele, são a mesma pessoa, e aquilo de que ele realmente gosta é de ler e falar ao espelho, para em vez de Frei Gil dizer Lig Ierf, em vez de Roma dizer Amor, e em vez de Theresa dizer Heresta - Heresta vê-se logo que é um anagrama de Heresia.

O leitor que lê ao espelho tem um nome: chama-se Não! é alguém que, ao ver um dominicano considerar-se frade menor, e ao situar Frei Gil, contemporâneo da fundação da Ordem na Península e quase da nacionalidade, no século XIV, arma um pé de guerra com o clero todo e grita: "Não! Isto não é possível! Ninguém comete erros destes, portanto isto não é um erro, é um aviso!".

A escrita do Diabo, ou de Titivetilarius, é uma língua muito rica, na qual saliento um dispositivo retórico para rematar esta intervenção: o anagrama. O anagrama inverte a ordem normal das letras na palavra, por isso é subversivo, equivale a uma insurreição verbal. Se for perfeito, como Amor/Roma, corresponde a uma escrita especular. Leonardo da Vinci usou-a nos textos em que descreve aparelhos por ele inventados, tendo ficado célebre assim a sua escrita ad latere .

O anagrama aparece na literatura egidiana, e algo muito mais espalhafatoso ainda: um convite para ler ao espelho. Quem convida é uma entidade referida como Frei Baltasar de São João, dominicano que em 1537 assinou uma "Vida de S. Frei Gil de Santarém". A pessoa que aceitou o convite de Frei Baltasar de S. João para ler ao espelho um segmento de escrita do diabo foi Aires do Nascimento, por isso vai ele explicar o que aconteceu:

"Um pouco de atenção leva-nos a reconhecer que o recto do 1º fólio colado á encadernação apresenta traços de escrita. O estratagema de um espelho permite-nos ler, na imagem, nada menos que o início do texto com leves incorrecções e alterações: In nomine Domini/ Dixit Dominus Domino meo /Incipit Vita Beati Gelasii seu Gilij natione Lusitani professione autem ordinis fratrum minorunque ."

Titivetilarius obriga-me a dizer "Não!" - Não, Gelásio não é Gil, e um autor da Ordem dos Pregadores nunca diria que os dominicanos são frades menores! Mas se vós, dominicanos, tendes de vós próprios esta imagem, então deixo-vos com a imagem e com o espelho.

BIBLIOGRAFIA

ALFONSO X, "Cantigas de Santa Maria". Ed. de Manuel Ferreiro Fernández & Carlos Paulo Martínez Pereiro. Associación Socio-Pedagógica Galega, Vigo, 1996.
Em linha no TriploV: http://triplov.com/poesia/afonso_x/teofilo.htm

AMÉSCUA, Mira de, "El esclavo del Demonio".

ANDRADE, Helena de Sousa e, Luís Lopes & Maria Cristina Neto, Sobre um relicário de S. Frei Gil. In: "Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém", actas. Org. da Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1991.

BERCEO, Gonzalo, De cómo Teófilo fizo carta con el diablo de su ánima et después fue convertido e salvo. Em linha:
http://triplov.com/poesia/gonzalo_de_berceo/index.htm

BRAGA, Teófilo, "Frei Gil de Santarém. Lenda faustiana da Primeira Renascença". Porto, Livraria Chardron, 1905. 

CACEGAS, Fr. Luís, "História de S. Domingos em Portugal" (Reformada em estilo & Ordem & Ampliada em Successos & Particularidades por Frei Luís de Sousa em 1678), Introdução e Revisão de M. Lopes de Almeida, 2 vol., Lello & Irmão, Editores, Porto, 1977.

CASTELO BRANCO, Camilo, "Noites de Insónia".

CUSTÓDIO, Jorge, S. Frei Gil de Santarém, da Ordem dos Pregadores: Uma personalidade entre a lenda, a hagiografia e a história. In: "S. Frei Gil de Santarém e a sua época : catálogo". Exposição organizada pelo Museu Municipal de Santarém. Santarém : Câmara Municipal, 1997

FORJAZ, A. Pereira, São Frei Gil e a Academia das Ciências de Lisboa. Boletim da Academia das Ciências de Lisboa, XXXVII, 1965: 277-293.

GARRETT, Almeida, "D. Branca".

GARRETT, Almeida, "Viagens na minha terra".

GIL, S. Frei, "Vitae Fratrum". In Carlos Lino Seabra. 16 textos.

GOMES, Pinharanda, Frei Gil de Santarém e o mito sebastiânico. In: "Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém", actas. Org. da Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1991.

GRAVE, João, "S. Frei Gil de Santarém - O Homem do Diabo e de Deus" - 2a edição, Porto, Edições Lello & Irmão, Colecção "Revivendo" nº30, 1926.

GUEDES, Maria Estela, Prefácio a "Contos do Diabo", de Eça de Queirós, Júlio César Machado e Fialho de Almeida. Lisboa, Rolim Editora, 1983.

JOÃO, Frei Baltazar de S., "A Vida do bem-aventurado Gil de Santarém". Vide Aires do Nascimento.

MATOS, Manuel Cadafaz de, S. Frei Gil, do scriptorium universitário de Coimbra e de Paris ao renomado túmulo escalabitano. In: In: "Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém", actas. Org. da Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1991.

NASCIMENTO, Aires Augusto do, "A Vida do bem-aventurado Gil de Santarém, por Fr. Baltazar de S. João", INIC, Lisboa, 1982.

NASCIMENTO, Aires Augusto do, Frei Gil de Santarém, o Fausto português. In: "Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém", actas. Org. da Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1991.

OLIVEIRA, António Correia d', "Tentações de Sam Frei Gil". Ferreira & Oliveira Lda Editores. Lisboa, 1907.

OLIVEIRA, João, "Frei Gil de Portugal, Médico, Teólogo e Taumaturgo". Vouzela, Edição da Comissão do Centenário de S. Frei Gil, 1973.

PINTO, Silva, "S. Frei Gil" (Notas históricas). Lisboa, 1903.

QUEIRÓS, Eça, "Lendas de Santos", Ed."Livros do Brasil", Lisboa, pp. 231-291 "S. Frei Gil", s/d.

RAMALHO, Américo da Costa, "A Conversão Maravilhosa do Português D. Gil" - um diálogo latino quase ignorado - da autoria de André de Resende. Revista da Universidade de Coimbra, XXVII, 1979: 239-262 il..

RASTEIRO, Alfredo, "O ensino médico em Coimbra - 1131-2000". Coimbra, Quarteto Editora, 1999.

SALVADORES, João José Gallego, São Frei Gil de Santarém: História e Lenda. In: "Colóquio comemorativo de S. Frei Gil de Santarém", actas. Org. da Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1991.

SEABRA, Carlos Lino, "São Frei Gil de Vouzela, um escritor medieval português". Ed. Câmara Municipal de Vouzela, 1996.

S.L.F., "S. Frei Gil", Lisboa, Tipografia Inglesa (católica), 1938.

SOUSA, Frei Luís de, "istória de S. Domingos". Livro II, capítulos XIII-XXXV, Porto, Lello & Irmão, Editores, 1977. Ver: CACEGAS.

 

 

 

Autor:

Maria Estela Guedes
estela[arroba]triplov.com

TriploV. APE. CICTSUL



 Página anterior Voltar ao início do trabalhoPágina seguinte 

Monografías Plus



As opiniões expressas em todos os documentos publicados aqui neste site são de responsabilidade exclusiva dos autores e não de Monografias.com. O objetivo de Monografias.com é disponibilizar o conhecimento para toda a sua comunidade. É de responsabilidade de cada leitor o eventual uso que venha a fazer desta informação. Em qualquer caso é obrigatória a citação bibliográfica completa, incluindo o autor e o site Monografias.com.