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Para além da legalidade: A importância pedagógica dos Movimentos Sociais Populares (página 3)

Rosalvo Schütz
Partes: 1, 2, 3

Consideramos que os exemplos dados acima e a forma como expomos a questão sejam suficientes para indicar que muitas das bandeiras fundamentais dos MSP apontam para um horizonte que exige uma nova configuração do Político, uma vez que aponta para um horizonte de emancipação humana que não cabe na noção de emancipação política moderna . E ao mesmo tempo que este processo de transformação/emancipação encontra nos MSP organizados autônomos (o que não significa isolados!) uma de suas condições imprescindíveis, uma vez que este processo "demanda a luta social que é quem faz o tensionamento e o questionamento das questões estruturais. "

Na perspectiva da superação do horizonte limitado pela legalidade burguesa, percebe-se, por exemplo, a construção de novas formas de relação, produção e consumo, muitas vezes numa íntima relação com os MSP. Desta forma as questões da reprodução e das relações materiais, que pela estruturação do Estado de Direito Moderno foi excluída da esfera de interferência de nossa liberdade, ressurge e revela um espaço de intensas relações sociais, com interesses diferenciados e com imensas possibilidades de atuação e proposição para os MSP. As práticas e os debates em torno da Economia Popular Solidária (EPS), tem mostrado que, com base na cultura popular, mantida e fortalecida pelos espaços comunitários e MSP, existem hoje experiências suficientes, com acúmulos em diversas áreas (produção, consumo, comercialização, serviços, etc) e temas (ecologia, autogestão, consumo crítico e solidário, constituição de redes de produção e consumo, moeda social, etc), que permitem visualizar alguns novos princípios de relação econômica e social. O que, no entanto, nos parece uma das maiores contribuições destas práticas é a de que elas evidenciam que também as relações econômicas nas sociedade atual são permeadas por relações sociais e que são fruto de escolhas, seja de pessoas como de grupos. Tanto em nível das micro, como por exemplo nas formas de consumo cotidiano, como nas relações estruturais/internacionais regidas por organizações como o FMI, Banco Mundial, etc, que dizem respeito a questões como a dívida externa, taxas de juros, etc. Evidencia-se, assim, que, além do campo tradicionalmente atribuído a política, existe um outro campo de atuação dos movimentos (com o qual praticamente, pelo menos no RS, quase todos os MSP já se ocupam de uma ou de outra forma!) Por vezes o campo da economia tem se apresentado como uma possibilidade de aliança estratégica muito mais concreta do que aquela em torno de um partido político, na qual se apostou nos anos 80. As experiência, além de serem um exercício pedagógico cotidiano e integral de novas relações, são também expressão de uma nova forma de poder popular, não mais expresso apenas na sua tradicional forma política mas também econômica e cultural. Desta forma começa a se afirmar uma nova configuração do Político, que já não cabe mais dentro da noção de cidadania proposta pela sociedade liberal, e seus caminhos formais, o que traz para a arena pública todo um outro e novo rol de questões.

Fóruns regionais de EPS também tem sido exemplos de espaços públicos não estatais populares, com um grande facilidade para agregar atores e movimentos do campo popular, o que tem contribuído muito para a construção de uma identidade popular e elaboração de ações conjuntas e articuladas. Estas formas de organização de espaços públicos não estatais populares não tem acontecido só na EPS, mas também em torno de temas como o desenvolvimento alternativo, da ecologia, da segurança, da saúde, da cultura, etc A constituição destes começa, assim, se mostrar como uma estratégia que simultaneamente abre novas frentes de atuação temática para os MSP como a possibilidade de ampliação de alianças entre si e com setores que não são MSP (universidade, igrejas e ONGs, por exemplo.). Além de serem espaços de formação e politização da população em geral.

O que se tornou evidente é que toda e qualquer transformação social, seja ela no campo da economia, da política ou da cultura só se sustenta e se aprofunda quando existe uma correlação de forças sociais favoráveis a estas transformações. Para isto precisam existir espaços/culturas capazes de, numa dialética de denúncia e anúncio, dinamizar e impulsionar permanentemente este processo. E o espaço privilegiado de construção disto não é dentro dos limites institucionais traçados pelas instituições do Estado liberal, mas sim, nos MSP, a partir da cultura e das identidades e especificidades concretas de grupos e/ou regiões. Desta forma começam a visualizar-se as possibilidades da construção e afirmação do poder popular a partir da, atualmente chamada sociedade civil, que aponta para a construção de espaços públicos com reais possibilidades de tematizar e enfrentar questões do interesse público, sem ter de eliminar as peculiaridades culturais, econômicas dos povos. Este novo horizonte de forma alguma se aproxima do capitalismo estatal, do estilo soviético ou chinês, comparáveis em muitos aspectos a Monarquia Absolutista, e necessariamente terá de superar a atual forma representativa liberal, onde o espaço público foi reduzido a um espaço de negociação de interesses privados, seja de grupos ou pessoas.

3. Considerações para o futuro

"Enquanto a humanidade não resolver seus problemas

básicos de desigualdades sociais, opressão e exclusão,

haverá lutas, haverá movimentos."

(Maria da Glória Gohn)

Observando-se o desenvolvimento dos MSP, da forma como o abordamos acima, a centralidade dos mesmos para um processo de transformação se evidencia sobremaneira. Na perspectiva apontada, os mesmos passam a assumir um papel social que não se evidencia a primeira vista. Pois muitas vezes aparecem apenas como sendo a expressão da insatisfação de um grupo com alguma situação ou questão que, quando efetivada/satisfeita, desaparecerá o motivo de sua existência. Algo mais dos que as bandeiras imediatas e cotidianas pode surgir e se desenvolve no modo como os MSP se constituem internamente e na forma como se relacionam com o conjunto da sociedade.

Esta concepção de MSP diz respeito fundamentalmente a uma concepção estratégica, que não se contenta mais apenas com a dimensão reivindicativa, mas que se desafia a, a partir das lutas e práticas cotidianas e do confronto com as estruturas existentes, num processo de permanente aprendizagem, construir horizontes e princípios que progressivamente vão instaurando uma novos ordenamentos sociais. Os MSP são, desta forma, um jeito de construir novos modos de vida, de relação, que passam a se apresentar como válidos para toda a sociedade, ou seja, com pretensões de universalidade. Não são, portanto, uma simples junção de indivíduos para conquistar, pela soma das forças individuais objetivos e/ou direitos que individualmente não conseguiriam. Embora este possa ser seu ponto de partida, e o confronto com estruturas e lutas cotidianas seja o "combustível" cotidiano das MSP, na processualidade do seu modo de ser é que se constitui seu sentido mais profundo, as condições de possibilidade de seu caráter revolucionário. Desta maneira, a fundamentação de uma nova ordem social só pode emergir e se consolidar, fundamentalmente, da própria organização popular e conseqüente poder popular.

Para tanto não existem fórmulas ou caminhos predeterminados. O dar-se conta da redicalidade histórica e da possibilidade de intervenção na mesma é passo fundamental para que as ações cotidianas sejam emprenhadas de sentidos transformadores. Foi esta postura diante da realidade, que tornou os MSP no Brasil tão significativos e que permitiu uma abertura de possibilidades políticas e pedagógicas enormes. A afirmação e aprofundamento desta postura pode contribuir enormemente para clarear a sua identidade e importância, tornando-os mais contundentes e firmes na sua conduta. Pois, não havendo caminho pré-estabelecido, a construção do, ou dos, caminhos e o aprender constante com o próprio processo de construção destes, é que passa a ser o balizador da ação. O que garante a permanente dinamização e construção dos processos. Infelizmente a estrutura do Estado como tal, muitas vezes foi visualizado como sendo o horizonte último, lugar a partir de onde, quando se estaria no poder, seria possível superar todas as mazelas e alcançar todas as utopias. Felizmente, também a respeito da estrutura neutralizadora do Estado moderno, os MSP tem aprendido suficiente para construir horizontes e estratégias mais amplas, onde a ocupação e mudança das estruturas do Estado aparece apenas como um dos momentos. Ou seja, "a chegada ao poder é apenas um momento, por mais decisivo que seja."

Tomar a concepção de indivíduo como fio condutor da análise/reflexão, a partir de onde vão se tornando visíveis/palpáveis as mudanças, garante que os MSP não se percam em pautas que contemplam apenas um ou outro nível de transformação. Simultaneamente descortina toda uma trama de relações sociais, afetivas, simbólicas, econômicas, etc, que fundamentam e legitimam as macro estruturas existentes, desmistificando a sua pretensa naturalidade e neutralidade. Permite, assim, visualizar, com relativa simplicidade, a íntima relação dos modos de vida cotidianos com as macro estruturas sociais e econômicas. Assim, torna-se possível perceber, por exemplo, que a concepção de indivíduo que está na origem da dominação e opressão de raça ou gênero é a mesma que gera uma relação utilitarista e predadora do meio ambiente, a mesma que reconhece e fundamenta o Estado burguês, etc.

Com isto as atividades cotidianas dos MSP revelam a profundidade do seu caráter político e pedagógico. É a partir de onde se estabelecem os alicerces para transformações estruturais mais profundas. Ao mesmo tempo, esta concepção evidencia a importância do engajamento crítico e busca da ampliação e transformação de espaços e instância existentes, mesmo que estas atividades não tenham caráter transformador imediato. São, além de formas de garantir e ampliar direitos no interior dos sistemas, oportunidades de momentos e instâncias de aprendizado e formulação. Neste processo de imersão na realidade, evidenciando as suas contradições e, simultaneamente, formulando formas de superação destes limites, que se constitui, ou não, o caráter revolucionário do movimento. Por isto ele é um processo que acontece intimamente relacionado com uma realidade a partir de onde se constituem as referências para propostas mais amplas. Por isto também é uma tarefa fundamentalmente de construção coletiva, pedagógica.

O desafio colocado para os MSP é o de se organizarem de tal forma que simultaneamente estejam presentes os três níveis político-pedagógicos acima destacados, a dizer, a construção cotidiana de novas subjetividades e modos de vida, organização popular com ocupação, confronto e explicitado das contradições e limites das estruturas existentes e a construção de novas formas de organização do espaço do Político, para além das atuais estruturas estatais. Movimentos que só se ocupam em constituir novas subjetividades, não se preocupando em fazer o confronto com a realidade e não desafiando os indivíduos a se engajarem na construção coletiva da mudança, dificilmente poderão realizar transformações significativas, nem na sociedade nem nos indivíduos. O engajamento em estruturas existente sem que haja valores/vivências que possibilitem um agir crítico em relação a estas, que possibilitem a visualização de projetos mais amplos e profundos, estará, certamente, fadado a ser absorvido e neutralizado pelas estruturas existentes. Da mesma forma a relação com as estruturas de poder político/estatal, tendo em vista a sua superação, se coloca como essencial dentro de uma visão global. Assim, o tripé político/pedagógico que usamos acima, garante uma processualidade que não se centra em nenhum dos pontos mas atua simultaneamente em ambos. Obviamente, com a existência da diversidade de movimentos, e dentro de estratégias conjuntas, estes podem privilegiar mais uma ou outra esfera, num processo de complementaridade e solidariedade mútua, entre si e com outros atores. Este parece ser um indicativo para a construção das possibilidades da hegemonia do poder popular, baseado na emancipação humana de todas as formas de opressão.

As novas possibilidades de análise e atuação que se abrem parecem ser um sinal da diversidade e da dinamicidade criadora presente na realidade e que, por isto, há de estar tanto na denúncia das injustiças atuais como no anúncio prático do novo mundo.

Kassel, primeiro semestre de 2003.

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Autor:

Rosalvo Schütz

rosalvoschutz[arroba]hotmail.com

Doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel, Alemanha e pesquisador CAPES no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas.

Docente de Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).

Agosto de 2003

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