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Feminismo e Campesinato no Brasil (página 2)

Isaura Isabel Conte

Entendo que se não tivermos a capacidade de fazer a conexão entre o início da atividade agrícola e o poder das mulheres, com o campesinato atual, estaremos num primeiro momento, negando o papel histórico feminino e sua contribuição à humanidade. Em segundo lugar, há de se concordar que o atual campesinato teria nascido do nada, sem história, sem acúmulo de aprendizado e de experiências. Aí teríamos que nos perguntar, também, como fomos nos constituindo pessoas, já que, o trabalho é constituidor do ser humano (Antunes, 2004). Constata-se, também, que, foi ocorrendo a divisão sexual do trabalho, sendo que aquele, caracterizado como feminino passa a ser de menos importância na sociedade. O trabalho das mulheres, em grande parte, vira serviço e isto as coloca como serviçais e não como trabalhadoras.

Parece ser uma aberração relacionar feminismo, o qual é tão recente, com a era primitiva. Mas, pelo que se sabe, no primitivismo as mulheres gozavam de liberdade e poder em boa parte das tribos, e, atualmente lutam para consegui-los de volta, através da luta feminista. Não é espantoso?

Segundo Muraro (2004), há mais ou menos 25.000 anos atrás existiu uma fase, na história da humanidade, onde as mulheres eram consideradas deusas. Neste período, elas eram comandantes e coordenavam rituais sagrados vinculados á produção e a reprodução da vida. O empoderamento delas se dava em função da importância dos conhecimentos sobre as plantas e a alimentação, bem como, pela capacidade de gestação. Detinham, portanto, sabedoria e poder, o que foi sendo transferido ou tomado, pelos homens, com a constituição da sociedade patriarcal. Para ilustrar:

As bruxas na Idade Média eram as mulheres que tinham orgasmo e poder. As duas transgressões mais graves que uma mulher poderia viver. Na idade Média todas as mulheres que sentissem prazer e fossem inteligentes mereciam a fogueira (MURARO, 2004: p. 162).

Obviamente que a perda do poder das mulheres não se deu instantaneamente. Demorou muitos séculos, pois, segundo a mesma autora, as mulheres comandaram o maior período na existência da humanidade. Se por um lado, o patriarcado se estabelecia em algumas sociedades chamadas de tributárias[5]em outras parte do mundo ainda vigorava o matriarcado com poder de comando das mulheres. As forças para o submetimento delas, se deu, inclusive, na idade Média, o que é bastante recente.

 

O empoderamento assim como a perda são construções históricas, portanto, se as mulheres estão em desvantagem, neste momento, é possível a superação, sabendo que implica em transformações profundas.

 

Após relembrar alguns aspectos do início da atividade agrícola, e da perda do empoderamento feminino, passamos a enfocar, de forma mais precisa, o Brasil, para tentar chegar a ponto de poder falar em feminismo e campesinato. Diante disso é preciso reconhecer que desde a invasão do Brasil, em 1500 ou anterior a isto, havia um campesinato marginal[6]em grande parte não reconhecido até os dias atuais.

Sabe-se que nesta época, o trabalho agrícola era desenvolvido, exclusivamente, para a subsistência e troca entre diferentes grupos. Muitos estudos afirmam que o modo de produção e vivência indígena não constituiu formas de campesinato no país. Acredito, no entanto, que não podemos negar o jeito diferente de trabalho produtivo, o qual possibilitava existência e cultura. Não se discorda que, inclusive, se utilizavam de técnicas avançadas[7]de melhoramento de sementes, armazenamento de produtos e conservação de alimentos, além da domesticação de animais.

É difícil falar em campesinato daquela época, nos moldes que o conhecemos e o conceituamos atualmente. Havia produção de alimento e relação com a terra, técnicas de plantio, cultivo, colheita, e industrialização, porém, sem a mediação de um mercado regulador. São os elementos acima citados que caracterizam o campesinato segundo Carvalho (2005). Sabe-se que as leis eram baseadas na cultura[8]sendo que aparecem, fortemente, rituais envolvendo produtos do trabalho. Afinal, se conhecemos e conceituamos o campesinato, de onde ele teria surgido?

 

São poucas as escritas sobre os indígenas e a produção camponesa, até porque, em via de regra, não são considerados camponeses(as) e, mais rara, ainda, é a alusão ás mulheres indígenas como trabalhadoras. A história "oficial" do Brasil as nega e elas aparecem bem mais como criaturas bizarras, procriadoras, sujas e libidinosas; tentadoras dos homens brancos (Ribeiro, 1995). Pouco se fala da escravidão do povo indígena.

 

Quando o Brasil é invado não existia, propriamente, uma sociedade dividida em classes sociais, mas já estava em funcionamento o patriarcalismo, onde grande parte das mulheres eram submissas e consideradas inferiores aos homens. Como exemplos:

Nas comunidades caingangues o cacique designava territórios as diversas comunidades, escolhida os caciques subordinados (...) e cedia as mulheres da tribo como esposas. (...) Nas comunidades Jês, havia divisão sexual do trabalho (...) as mulheres permaneciam sob autoridade masculina e o adultério feminino era duramente castigado. Os homens podiam repudiar suas esposas e os grandes caçadores podiam ter diversas mulheres (MAESTRI: 2000: p. 44).

Segundo Ribeiro (1995), com a invasão os indígenas, foram convertidos na mais importante mercadoria de exportação, depois do pau-brasil. Milhares deles(as) foram gastos no trabalho escravo até serem substituídos por negros e negras trazidos á força da África. Junto a isto, foram permitidos e estabelecidos os latifúndios para produção do que deveria ser exportado para a metrópole. Houve aniquilamento dos povos indígenas e suas práticas de diversidade, para dar lugar aos monótonos engenhos e canaviais.

Com relação as mulheres indígenas, sabe-se que se antes da invasão, gozavam de certa liberdade, e, após ela, passam a ser violentadas, perseguidas e mortas, com poucas exceções. Grande quantidade delas foram caçadas e aprisionadas por causa que dominavam muitas técnicas vinculadas a plantação e alimentação.

Ainda segundo Ribeiro, somente no século XVII a escravidão negra supera o número de escravos indígenas no trabalho brasileiro. E, os negros e negras foram trazidos e escravizados, quando o número de indígenas não era mais suficiente para a produção agrícola e de gentes, pois eram "gastos" na escravatura aos milhões.

Seguiu a escravidão negra prosseguindo a dizimação tanto indígena quanto dos negros e negras escravizados(as). Frente ao trabalho estafante que levava à morte, uma das únicas alternativas de resistência negra, em maior parte, era a fuga da escravidão das fazendas para formar os Quilombos[9]Sabe-se que ali se praticava a agricultura, também, da diversidade e, sendo assim, tem-se um outro jeito de campesinato marginal, onde de forma geral, a terra cultivada era coletiva. Percebe-se, com isto, um campesinato pouco falado e estudado, mas, que fazia contraponto ao sistema de agricultura imposto: latifundiário de monoculturas e agroexportador.

Sabe-se que nos quilombos o número de mulheres com relação ao de homens, era bem menor, e elas, também, eram responsáveis pela diversidade de alimentos. Era comum, também, da parte delas, servir sexualmente a muitos homens e diz-se que esta era uma prática de solidariedade, entretanto, pouco ou quase nada se ouviu por parte delas.

Segundo Saffioti (1969), na escravidão, as negras exerciam, além do trabalho nas fazendas e casas, o papel de prostitutas. Serviam tanto os senhores e seus filhos nas casas grandes, bem como eram levadas para outros senhores de outras fazendas. Além disso, muitas eram prostituídas nos povoados que se formavam, sendo esta, outra fonte de renda para os patrões. E, com a abolição da escravatura, elas, em grande medida, continuaram se prostituindo como uma das únicas alternativas de sobrevivência.

Não dá para deixar de mencionar que em mais ou menos meados do século XIX, no processo da luta abolicionista brasileiro, houve boa mobilização das mulheres nas cidades. E, nesta mesma época é escrito um jornal de cunho feminista, com circulação nacional[10](MMTR RS, 1999). Percebe-se o campo como fomentador de elementos que levam à luta de cunho feminista, entretanto, permanece fora dos debates e repercussões que se davam devido a falta de informações chegarem ao campo.

 

Em 1888, com "libertação" dos escravos pela Lei Áurea, surgem milhares de sem terras e uma situação não resolvida até os dias atuais. A terra já estava aprisionada pela Lei de 1850[11]e a necessidade era a produção de alimento para um país que tinha que se afirmar independente, na utopia de se desenvolver como uma metrópole.

 

Durante o período da República Velha, de 1889 a 1930, foram enviados da Europa e Ásia o maior número de pobres imigrantes. Eram em torno de sete milhões de pessoas que vieram para trabalhar na agricultura como camponesas (as), peões de fazendas, bem como, nas fábricas que surgiam (Ribeiro, 1995). Além do trabalho para a produção de subsistência e alimentos para o país, outra tarefa de grande importância era produzir muitos filhos, homens de preferência, para viabilizar mão de obra barata. E, é daí que se fala em campesinato brasileiro com maior ênfase (Carvalho, 2005).

 

Estabeleceu-se uma política, por parte do governo brasileiro, que as primeiras levas de trabalhadores (as), ainda, no início do século XIX, recebessem parcelas de terras, sementes, ferramentas e uma contribuição financeira por ano. Os que vieram mais tarde tinham que disputar territórios com negros, mestiços brasileiros e alguns poucos indígenas, que restaram das guerras e dos tratados. (Maestri, 2000).

A população tanto negra, quanto indígena, bem como os brasileiros desta mistura étnica, praticamente não foram contemplados com auxílios governamentais. Haviam exceções em alguns estados, onde era necessário conceder terra a indígenas e negros para que cumprissem a função de demarcação de fronteira com Bolívia e Venezuela, principalmente. (Carvalho, 2005).

 

O campesinato reconhecido a partir da chegada de imigrantes é feito, também, de muito trabalho e boas parideiras para aumentar, rapidamente, a população. Pairava a ilusão de trabalharem tanto a ponto de poderem voltar ricos para a Europa. Diante da necessidade de muita mão-de-obra, as mulheres, que na Europa faziam controle de natalidade, no Brasil, tem por obrigação, gerar de dez a vinte filhos, "naturalmente". Somado a este fato, é lhes imposta a negação do prazer sexual, conforme a igreja hegemônica e conservadora pregava e exigia, para manter o puritanismo.

O controle da igreja fazia com que os padres se encarregassem de questionar detalhes da vida das famílias realizando cobranças, especialmente, das mulheres em confissão ou nos sermões. Não poder ter filhos transformava-se numa verdadeira tortura, devido a auto- cobrança, somada as outras formas de pressões. Jamais seria natural alguma mulher optar em não ter filhos, ou não querer se casar, por exemplo. No campo, de forma mais rigorosa, as famílias tratavam de encaminhar todas as filhas ao casamento, com exceções das que sofriam algum tipo de enfermidade ou das que eram enviadas ao convento.

A felicidade pessoal da mulher, tal como era entendida, incluía, necessariamente o casamento. Através dele é que se consolidava sua posição social e se garantia sua estabilidade ou prosperidade econômica. (...) Sob uma capa de que o marido deveria oferecer a mulher, em virtude da fragilidade desta, aquele obtinha dela, ao mesmo tempo, a colaboração no trabalho e o comportamento submisso que as sociedades de família patriarcal sempre entenderam ser dever da mulher desenvolver em relação ao chefe da família. (SAFFIOTI, 1969: p. 36-37).

 

O massacre sobre as mulheres é algo bastante notório, perpassando toda a história brasileira, entretanto, houveram várias reações com maior ou menor intensidade. Segundo o MMTR RS (1999), no início do século XX já havia sinais de movimentação feminista, pois em 1910 foi fundado o Partido Feminino Republicano. Nesta mesma época, um número expressivo de mulheres faziam greves operárias nas indústrias têxteis e começavam a reivindicar direito a voto nas cidades.

No campo, pelo que se sabe, as reações organizadas das mulheres, contra todas as formas de negação e violência, não eram, ainda, visíveis na época. Nas revoltas populares, por exemplo, elas pouco aparecem na história, por mais que tiveram, também, comando e importante contribuição. A grande maioria das mulheres camponesas eram analfabetas, sendo este outro fator que impossibilitava algum tipo de reivindicação organizada. A igreja era uma das principais encarregadas da educação delas, pregando a submissão, em primeiro lugar á igreja e seus preceitos, e, em segundo lugar ao marido (Saffioti, 1969).

A miscigenação entre os imigrantes e o povo que já estava no país anteriormente (indígenas e negros) possibilitou acréscimos dos jeitos de praticar a agricultura e a diversidade de espécies a serem cultivadas e consequentemente consumidas. Diante disso, não há nenhuma ressalva em afirmar que as mulheres eram as responsáveis pelas técnicas de armazenamento e industrialização desses alimentos, além da produção dos mesmos para consumo.

 

Outra afirmação, sem melindres, que pode ser feita é que, apesar da função das mulheres camponesas como geradoras de mão-de-obra, realizavam, também, o trabalho na roça e as tarefas domésticas como lavar, cozinhar, tecer, remendar, fazer remédios, cuidar dos pequenos animais e horta. Não há dúvida sobre a jornada tripla de trabalho das mulheres, sendo, inclusive, o trabalho feito por elas, considerado serviço e, portanto, invisibilizado. E, é deste jeito que vai se consolidando um outro campesinato de numerosas famílias trabalhadoras, sendo as mulheres, naturalmente, subordinadas aos pais ou maridos.

 

Com relação á miscigenação, em si, não podemos fechar os olhos e fazermos de conta que foi algo espontâneo e tranqüilo, porque não foi. Pode-se afirmar que ocorreu, sempre, com grande carga de violência sobre as mulheres. Especialmente as indígenas foram todas violentadas, tomadas a força pelos brancos desde a invasão portuguesa, e , mais tarde de novo, caçadas no mato, com a vinda da nova leva de imigrantes.

 

As famílias camponesas brasileiras até a metade do século XX eram bastante independentes[12]pois, construíam toda a estrutura de que necessitavam, com pouca contribuição da indústria e da modernidade. Faziam suas casas, galpões, centros comunitários, poços, cercados, e não raras vezes, estabeleciam regras de convivência. Nessa época as mulheres camponesas jamais sonhavam com o feminismo por mais que o jugo do mando masculino era pesado sobre elas. Criar uma filha e saber que o marido que a iria receber, teria, também, "o direito" de bater nela, era quase que naturalizado, inclusive entre as mulheres. Para as mulheres camponesas, além do convento, praticamente, não havia alternativas a não ser se casar e agüentar a situação imposta.

Na década de 1930, com a República Nova, surgem outras efervescências populares, em grande parte, por influência anarquista. 80% da população brasileira era camponesa, sendo que na cidade o movimento grevista estava fortalecido. A luta sufragista continuava em andamento e em 1922 surge a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (MMTR RS, 1999). Na década de 1950 a mesma revolta dos que quase nada possuíam, levou a formação das Ligas Camponesas no nordeste (Stédile, 2003), e também, veio ao Brasil a primeira mulher, identificadamente, feminista. (Muraro, 2004).

A vinda de Betty Fridman, a temida feminista com apelido de Betty, a feia, foi de conhecimento de poucas mulheres e causou muito alvoroço no Rio de Janeiro. Era uma primeira tentativa de falar e convencer as mulheres que elas poderiam possuir algum direito. Ainda na mesma década, havia elementos da educação popular que tentava ensinar a leitura e a escrita das letras para a não aceitação da normalidade da sociedade injusta. Junto a isto, a contribuição da teologia da libertação[13]como subversão de parte da Igreja. Mas, tudo o que levaria a libertação de homens e mulheres, foi abortado pela ditadura militar de 1964 a 1984.

Nem a educação popular, nem a teologia da libertação assumiram a causa das mulheres, como recorte específico, por serem elas as mais exploradas, oprimidas e violentadas pela sociedade classista e patriarcal. (Pañuelos en Rebeldía, 2007).

Na década de 1950 para 1960, enquanto os militares ensaiavam o golpe de estado, pode-se dizer que a situação das mulheres camponesas não mudara muito com relação a opressão patriarcal. No máximo, o feminismo ficou entre algumas consideradas loucas na cidade, e, se ensaiava pelo menos falar em gênero na tentativa de colocar as mulheres em cenário, ainda não de poder, mas de alguns direitos. O feminismo, como toda a subversão, margeava pelos "corredores secretos" nas cidades maiores.

Vale constar que muitas mulheres da América Latina, que foram exiladas na Europa, durante a ditadura, tiveram contato com o feminismo e, no retorno, falavam dele. Nesta época as brasileiras que atuavam na luta armada sofriam preconceitos por parte dos companheiros de luta, pois eram consideradas, também incapazes, do ponto de vista deles (MMTR RS, 1999).

O êxodo rural funcionava a todo o vapor por causa do fenômeno da industrialização na tentativa de modernizar o Brasil. Muitas famílias deixavam o campo e formavam uma massa de trabalhadores nas fábricas. No campo o despejamento da chamada revolução verde, mudava o pensamento e a forma de produzir. As mulheres da cidade já estavam, em boa parte, nas fábricas e nos trabalhos de educação em escolas, porque se sujeitavam trabalhar por menos que os homens e não deixavam de realizar as tarefas domésticas, tidas como uma condição de mulher. A era desenvolvimentista getulhista concedeu o direito ás mulheres trabalharem em outra jornada, além da casa, inclusive com carteira assinada com delimitação de 8h de trabalho/dia.

 

O processo desenvolvimentista trouxe novidades ao campo desde a década de 1940, pois os pacotes químicos que sobraram das guerras foram transferidos para a agricultura brasileira[14]Mas, foi sentida com mais força os impactos da Revolução Verde na década de 1960, com a imposição militar, fortalecendo o capitalismo, que ia se consolidando a passos largos, através de um governo que dizia fortalecer o nacionalismo.

 

Somente do final da década de 1970 em diante, quando começa da cair de podre o regime ditatorial, forçado pela reorganização do povo, que se voltou a falar em direitos sociais, direitos das mulheres, reforma agrária... Eclode a voz das chamadas minorias, e, dentre elas, as mulheres, mesmo sendo maioria da população.

 

Durante as duas décadas de repressão os ideais humanistas abafados permaneciam na clandestinidade. Com certeza o feminismo, como forma de superação das inferioridades, era almejado por bom número de mulheres, mesmo sem terem ouvido falar dele.

Ainda na década de 1970, no Brasil, os movimentos organizados que acreditavam na possibilidade de socialismo, criticavam a luta específica das mulheres e a acusavam de ser divisora da luta de classes (Muraro, 2004). Argumentavam que quando se chegasse ao socialismo as questões das mulheres, automaticamente, seriam resolvidas como se o problema fosse de cunho econômico, somente. A palavra feminista era entendida como sendo o contrário de machismo, distorcendo sua intenção.

 

Segundo Frei Betto (2001), na década de 1970 em diante, o feminismo entra na chamada segunda fase indo além da reivindicação de cidadania. As mulheres passam a reivindicar direito a autonomia sobre seus corpos e ao prazer (sexual). E por isto que a partir da década de 1980, é tempo de tentar desprender os gritos sufocados de décadas e centenas de anos, enquanto mulheres camponesas. É partir daí que surgem Movimentos[15]específicos de mulheres camponesas no Brasil.

 

Urge analisar e refletir sobre todas as formas de negação das mulheres camponesas em vista de poderem ousar dizer a palavra[16]Olhar para a imposição de parir sobre a possibilidade de sentirem prazer. De trabalhar assumindo a jornada tripla e não serem reconhecidas. Em muitos casos, admitir como "direito masculino" o marido fazer sexo com prostitutas, pois, elas estavam sempre muito cansadas e carregavam o peso da santidade da virgem Maria, sendo o sexo somente para a procriação.

As contradições de todas as proibições sobre as mulheres camponesas fizeram emergir um feminismo tímido, difícil de ser assumido. Obviamente que a palavra Feminista causava medo e espanto porque era uma novidade tão grande e pouco falada. De início, as organizações camponesas não se assumiram como feministas, pois não tinham nem como entendê-lo.

Sabia-se pouco como seria o tal feminismo e a luta as fez descobrir que eram proibidas ousar, mas, que não deveriam aceitar serem tão menos que os homens. Os avanços foram se dando aos poucos. Passaram de não aceitar ser tão menos a não aceitação de serem nada menos, e, isso começou a intrigar a estrutura patriarcalista. O que é isso agora, que as mulheres estão dizendo!!! As mais ousadas que se faziam lideranças na luta das mulheres, eram acusadas de loucas, de serem contra os homens e de quererem perturbar a paz que reinara até então.

A afirmação de que as mulheres camponesas são as mais proibidas de ousar, é devido ao controle maior sobre elas e suas vidas, se comparado ás urbanas. Isto pelo fato de ficarem isoladas dos acontecimentos, de falta de compreensão sobre a amplitude do mundo que as cerca, da jornada penosa de trabalho, do fato de quase não saírem de casa, de não conhecerem a cidade do município, da pouca escolaridade, do cerceamento moralista da igreja reproduzido por homens e naturalizado por mulheres, do número de filhos e filhas, da divisão sexista de tarefas, da baixa estima como mulher camponesa, de suportar violência física, moral, psicológica e sentir vergonha e culpa e não poder denunciar...

É fazendo análise do parágrafo acima e afirmando que tudo isto aconteceu e acontece ainda, porém de forma mais velada, que se firmou o campesinato no Brasil. Muito recentemente, em pleno século XXI, se evidencia a necessidade do feminismo, colocado, por elas, em vista da superação da condição de inferioridade.

Pergunta-se: a que custo se firmou este campesinato? Sabe-se, também, que o massacre sobre as mulheres camponesas não provém do campesinato em si, mas, do patriarcado, o qual encontra um campo fértil de conservadorismo e desinformação no campesinato.

 

No início da década de 1980, juntamente com a eclosão de movimentos sociais e populares, as mulheres camponesas organizadas em Movimentos reivindicam direitos, sendo que até isso, não foi bem visto aos olhos de muitos. Nessa década o estado brasileiro, com ampla pressão e envolvimento popular, assume a discussão da Constituinte[17]A Constituição Federal foi resultado deste processo, e as mulheres camponesas em luta, conquistaram o direito ao reconhecimento da profissão de agricultoras. É desta luta que surgem os segurados especiais da providëncia rural (AIMTR SUL, 1994).

A pressão do feminismo acontece mais de fora para dentro do país, do que internamente. Sabe-se que o feminismo no Brasil surge a partir da França, e Estados Unidos, sendo no início, um movimento pequeno burguês, até pelo fato das mulheres da classe média terem condições de pautar tais reivindicações. Sabe-se, também, que o feminismo brasileiro assumiu bem mais o cunho da luta classista em primeiro plano, do que reivindicações no campo da sexualidade das mulheres (Cestari, 2008).

 

A palavra feminismo em si é provocadora porque evoca as Mulheres, e, o poder delas que grita por reapropriação; ocupação de espaço que é seu e que no momento está ocupado por outro[18]Concorda-se que o feminismo transita com maior facilidade na cidade, mas, passa a agradar as mulheres camponesas, mesmo que a maioria não tenha coragem de afirmar e falar sobre o assunto. Sempre foi algo meio subversivo, mas quem disse que as mulheres camponesas não realizavam subversões? Talvez, se não as cometessem, não teriam sobrevivido.

As informações que tinham acesso, eram em grande partem da igreja e assuntos que circulavam nas comunidades, com restrições. Como deveriam entender o feminismo? Elas começaram, lentamente, a dar passos rumo a libertação se organizando em Movimentos específicos de mulheres. Falar de feminismo ou aborto, ambos temas polêmicos, na realidade conservadora em que viviam, seria menos estratégico. As ações foram mais importantes do que os nomes e isto demonstra ousadia e rebeldia...Era necessário se camuflar para resistir e imagino que foi este o jeito encontrado de fazer convergir feminismo e campesinato.

 

Na década de 1990, em pleno neoliberalismo e processo globalizaste do capital, incidindo sobre as relações entre as pessoas, entra-se na era da informática, da virtualidade, dos mercados, mercantilização, blocos econômicos e grupos transnacionais como controladores da produção e do trabalho. Facilmente criam-se necessidades de consumo como nunca e para os camponeses e camponesas, no entanto, não diminui ou pouco diminui a penosidade do trabalho. Os agrotóxicos passam a substituir grande parte da mão-de-obra no campo, mas precariza as condições de saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. O capitalismo, através da ação do neoliberalismo, inicia a maximização do capital e a minimização dos direitos conquistados anteriormente (MMC BRASIL, 2007).

 

As informações chegam com uma rapidez maior, inclusive no campo, mas para boa parte dos camponeses e camponesas a palavra feminismo ainda soava mal, mesmo que já existiam várias organizações de grupos feministas no país. No campo, com as camponesas, há resistência, por mais que algumas já haviam conseguido fazer o exercício da desmitificação do que realmente é o tal feminismo.

 

Do novo século para cá, as palavras e exigências dos grupos chamados minorias começam a ecoar com muito mais força em nome da diversidade. Com relação ás camponesas muitas se encontravam vinculadas á sindicatos, e mesmo, a partidos políticos, espaços criados por homens, para os homens (Faria e Nobre, 2003). Não se nega que a participação das mulheres em espaços mistos seja importante, entretanto, foi a partir disso, que elas, com o tempo, se deram conta que a sua participação era restrita e que possuíam pouco direito a voz nestes espaços.

O direito, aparentemente, igual as discriminava porque não eram elas que tinham acesso a todas as informações, à construção das pautas e aos argumentos, por exemplo. Foi daí que as mulheres perceberam a importância e a necessidade de terem organizações autônomas, para tomarem suas decisões, e, ao mesmo tempo, fortalecer convicções políticas e aprendizados sem serem manipuladas.

 

Como Movimento camponês autônomo de mulheres, o primeiro a se declarar feminista no Brasil, é o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC BRASIL[19]Eis o desafio de lutar pela existência do campesinato e a inexistência de todas as formas de violências incrustadas nele, na perspectiva de serem sujeito de suas vidas, com direito a felicidade.

 

As mulheres camponesas do MMC defendem o campesinato como forma de existência, e resistência, vivência e cultura. Rebuscam no passado primitivo histórias de autonomia e poder como aprendizado. Apostam na construção do feminismo dentro do campesinato, sabendo que este sempre fora conservador e impregnado de machismo. Não podem negar o campesinato, pois ele é afirmação de território do núcleo familiar camponês. Querem e precisam dele, mas, já não aceitam que ele seja a continuidade da opressão sobre as mulheres. Querem que o campo seja um lugar bom de viver, onde elas não são consideradas menos que ninguém, tampouco, sobrecarregadas de trabalho e negadas de prazeres (Conte, 2008).

 

Gebara (2001), afirma que a identidade da mulher é subalterna, de baixo estima porque a hegemonia construída, com o padrão de "certo", é a cidade. Grande parte do trabalho que realizam não é valorizado. São desprezadas, consideradas sujas, relaxadas e atrasadas. Diante disso, é que precisam se organizar para travarem lutas cotidianas contra a condição de vida que foram e estão submetidas: violência, dominação, inferioridade, culpa, miséria, analfabetismo...Tudo que vai as matando aos poucos de sofrimento ou causando doenças.

Foi a organização feminista, como reação à invisibilidade imposta, que começou a fazer as mulheres reivindicarem o que lhes é de direito. Elas despertaram e estão fazendo se perceber e reconhecer.

Segundo o MMC BRASIL (2007), as mulheres camponesas vinculadas ao Movimento, que se afirmaram feministas estão construindo um feminismo que sirva para pautar as mulheres camponesas como sujeitos de dignidade, respeito e felicidade, na luta classista. Reivindicam direito a terra e a permanecerem no campo. Defendem os recursos naturais sendo contrárias ao agronegócio e monocultivos que acabam com a vida e com diversidade. Acreditam e constróem novas relações de gênero entre as pessoas e destas com a natureza. Exigem reconhecimento do trabalho que realizam, partilham conhecimentos, traçam estratégias, estudam e assim fazem contraponto a sociedade patriarcalista que sempre as negou e diminuiu no campesinato.

Contudo, está aí o grande desafio da contribuição do feminismo para a construção de uma nova forma de campesinato, onde as mulheres não sejam menosprezadas e imbecilizadas. O verdadeiro Socialismo deverá ser forjado junto às demandas e na atuação das mulheres, ou será pela metade, não sendo, então socialismo. O campesinato poderá deixar de ser conservador e negador das mulheres na medida em que elas, mais do que nunca, se colocarem por suas lutas. Elas precisam fazer exercícios de poder para forjarem a Nova Sociedade.

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_______________ História de Luta das Mulheres. Textos internos. Passo Fundo, 1999.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo- acesso em 14/09/2008.

 

Autor:

Isaura Isabel Conte

isauraconte[arroba]yahoo.com.br

Graduada em pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul – UERGS, camponesa, dirigente do Movimento de Mulheres Camponesas MMC RS. Coordenadora do coletivo de formação do MMC e dirigente política da Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da Região Celeiro – Fundep, situada em Ronda Alta RS.

Filiação Institucional: Movimento de Mulheres Camponesas RS e Brasil

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[1] Que provém do patriarcado, e segundo Richartz (2004) apud Saffioti (2001) é a hierarquização entre os seres com poderes desiguais. Conforme Muraro (2004), o patriarcado surge em torno de 10 000 a 20 000 mil anos atrás com domínio dos homens sobre as mulheres, colocando-as como inferiores e incapazes.

[2] O pau de cavar, o estilingue, a alça do tiracolo para transportar sementes,

[3] Do texto "A Mulher na Evolução da Humanidade". MMTR RS, 1995.

[4] Inclusive por atuarem na área agrícola que incluía a saúde, com poder de cura pelo conhecimento da natureza e seus fenômenos naturais, bem como sobre a utilização das plantas medicinais.

[5] Na qual já havia pequenos focos de escravidão oriundos de guerras entre as tribos. Surgia um estado controlador e centralizador. As sociedades incaicas, por exemplo, eram tributárias antes de seu aniquilamento.

[6] Grifo meu, expressão minha. Explico: boa parte dos indígenas preferem não se assumir como camponeses(as) por manterem a identidade cultural. Por outro lado, sabe-se que os tupi-guaranis foram e continuam sendo grandes praticantes da agricultura e horticultura(Maestri, 2000). Mesmo que não denominados camponeses(as), não podemos ignorar a contribuição destes grupos á humanidade. Uma questão é o respeito á cultura dos povos autóctones, a outra, completamente diferente, é a negação desses povos por parte de muitos intelectuais brasileiros(as) que falam em campesinato após a chegada de imigrantes europeus a partir do século XIX.

[7] Para a época em questão.

[8] A qual já era patriarcal desde a ocupação da América Latina.

[9] Era um local de refúgio dos escravos no Brasil, em sua maioria afrodescendentes (negros e mestiços), havendo minorias indígenas e brancas. http://pt.wikipedia.org/wiki/Quilombo.

[10] Trata-se do Jornal das Senhoras, protagonizado por Joana Paulo Manso Noronha, em 1852.

[11] Criada em 1850 regularizando as posses existentes, ou seja, sacramentando os latifúndios, sendo que aqueles/as que não tinham a posse da terra, continuaram sem. A terra só poderá, daí em diante, ser de propriedade de alguém, se o comprar.

[12] Independentes com relação ao poder do estado, mas, por outro lado, o patriarcado era mais evidenciado.

[13] Corrente progressista das Igrejas, especialmente da Católica, que desafia a ditadura militar e faz formação de militantes desde a década de 1960, na subversão. é impulsionadora de vários Movimentos Populares.

[14] Segundo GORGEN, Sérgio ofm. Os Novos Desafio da Agricultura Camponesa. 3ª edição. Vozes, Petrópolis, 2004.

[15] No Sul do Brasil, em 1983 surge a Organização das Mulheres da Roça- OMR, no Rio Grande do Sul e, em Santa Catarina cria-se, também, como movimento autônomo de mulheres camponesas, o Movimento de Mulheres Agricultoras- MMA. Tais Movimentos são de caráter reivindicatório.

[16] Segundo Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.

[17] Processo que levou a criação da Constituição Federal em 1988, com a participação de muitos setores da sociedade. Os Movimentos Organizados, sindicatos de esquerda e setores combativos da igreja, fizeram muita pressão e discussão em torno da CF.

[18] Segundo Gebara 2001.

[19] Movimento de Mulheres Camponesas em parâmetro nacional a partir da realização do primeiro congresso nacional em 08/03/2004.



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