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Estetização da política vs. formação da opinião pública: uma aporia da razão comunicacional? (página 2)

Amarildo Luiz Trevisan

Quando fala na estetização da política, Benjamin tem presente a estética da destruição[2]própria dos acontecimentos da 2ª guerra, transformada em obras de arte pela propaganda e pelos grandes espetáculos de massa, nos quais jogos, paradas militares, danças, ginástica, discursos políticos e música formavam um conjunto ou uma totalidade coercitiva única, visando a tocar fundo nas emoções e paixões mais primitivas ou recalcadas da sociedade. Nessa perspectiva, a reprodutibilidade técnica das artes estava indubitavelmente a serviço da propaganda de mobilização totalitária das classes sociais em torno da figura do "grande chefe". Segundo a avaliação de Habermas, a tentativa do fascismo visava a quebrar a autonomia da obra de arte para promover uma simples estetização bruta do poder:

Sem dúvida Benjamnin, como Marcuse, vê na arte de massa do fascismo, que surge com a pretensão de ser política, o perigo de uma falsa dissolução da arte autônoma. Essa arte propagandística dos nazistas liquida efetivamente a arte como uma esfera autônoma, mas atrás do véu da polítização ela está a serviço, na verdade, da estetização do poder político bruto. Ela substitui o valor de culto da arte burguesa pelo valor produzido por intermédio da mera manipulação. O fascínio religioso só é rompido para ser sinteticamente renovado: a recepção de massa transforma-se em sugestão de massa. (1980, p. 175).

Mas é importante lembrar que as massas não foram simplesmente manobradas nesses casos. Há, em certos meios, uma tendência a atribuir àqueles que ascenderam ao poder (Hitler, Mussolini, Franco) toda a responsabilidade histórica dos eventos que aconteceram em seus países. As massas também tiveram papel ativo, de modo que, sob certo ponto de vista, um conjunto enorme de indivíduos praticava a violência indiretamente, quando ela era permitida pelo Estado. Não por acaso o símbolo do fascismo italiano era o fascio romano, que ilustra bem a relação entre povo e poder: um feixe de varas unido fortemente num cabo que formava uma espécie de machado, símbolo da autoridade (o machado) apoiada sobre o povo (as varas).

Mas de que modo, segundo Benjamin, a arte poderia contribuir para um processo autêntico na relação com a política? Conforme referi em outro escrito (TREVISAN, 2000), as motivações da arte autônoma burguesa e o ideal de politização da esfera estética já estavam presentes em Kant. Nas palavras de Hannah Arendt (1992), Kant teria encoberto as suas posições políticas sob o manto da estética, o que resultaria numa espécie de politização da esfera estética. Ora, de Kant a Adorno, passando por Walter Benjamin, a arte exerceu funções de reconciliação entre sujeito e objeto, servindo como uma espécie de solução antecipada das contradições entre os pólos distanciados do conhecimento. E isso explica, em certo sentido, as motivações da arte autônoma burguesa para assumir posições em prol das vítimas da própria racionalização moderna, produzindo imagens desestabilizadoras do real. A estética moderna funciona assim como uma espécie de amálgama para suprir o déficit ou a lacuna acumulada na relação bipartida entre sujeito e objeto, homem e natureza. A utopia emerge no âmbito da arte como uma contraface da dominação técnica efetuada pelo homem, como promesse de bonheur, isto é, como promessa de uma futura felicidade através da reconciliação mimética com a natureza objetivada. E por isso a verdade da obra de arte resiste ao enquadramento no plano da representação e do domínio conceitual, permanecendo no nível prédiscursivo.

É nesse sentido que Walter Benjamin vai apostar numa iluminação profana da obra de arte. E é aqui também que se distinguem as preferências de Benjamin daquela estética do fascismo, uma vez que, enquanto ele elogiava o Surrealismo e a arte das vanguardas estéticas, o fascismo acusava-as de promover a arte degenerada[3]O princípio de constituição das partes de uma obra de arte surrealista formava um todo não ordenado previamente, mas que necessitava da participação do intérprete. Com isso, Benjamin procurava se opor à totalidade coercitiva própria da racionalidade instrumental, ao conceber a idéia de que os potenciais revolucionários da obra de arte poderiam ocorrer, não apenas na contemplação da arte autônoma burguesa, mas também nos modos coletivos de recepção, como a fotografia e o cinema.

Assim a esperança na revolução socialista, como emancipação do gênero humano, levou Benjamin a considerar favoravelmente a perda da aura e a reprodutibilidade da obra de arte como processo de democratização da cultura, como direito de acesso às obras artísticas por toda a sociedade e, especialmente, pelos trabalhadores. A reprodutibilidade das técnicas permitiria a assunção da arte politizada. Reacionária, por exemplo, diante de um Picasso, a massa poderia mostrar-se progressista ao assistir um filme de Chaplin. A característica de um comportamento progressista reside no fato de o prazer do espetáculo e a experiência vivida correspondente ligarem-se, de modo direto e íntimo, à atitude do conhecedor. Desse modo, em lugar de a arte ser um privilégio de uma elite, seria um direito universal.

Mas, segundo Habermas:

Em nenhum ponto, Adorno contradisse Benjamin tão energicamente como neste. Adorno compreende a arte de massa, surgida com as novas técnicas de reprodução, como uma degenerescência da arte. O mercado, que inicialmente tornou possível a autonomia da arte burguesa, faz surgir uma indústria cultural que se infiltra nos poros da obra de arte e impõe ao observador, devido ao caráter de mercadoria da arte, a atitude padronizada de um consumidor (1980, p. 183).

Adorno não abre mão da autonomia do reino estético, balizado no entrelaçamento entre mímesis e racionalidade, que pode ser demarcado como tema nuclear da sua teoria estética. Isso lhe possibilita propor a autotranscendência da razão através da abertura de horizontes para o "conhecimento" do reino estético, em busca de uma relação não-alienada entre sujeito e objeto. Compreender a dialética entre mímesis e racionalidade no interior da obra de arte tem sentido, à medida que pode auxiliar a elaborar o que foi reprimido no passsado, trabalhar o medo, o abismo, o que repugna, enfim, o trágico. Essa atitude de Adorno frente à arte se justifica, porque não houve uma rejeição popular ao regime nazista, não houve uma reflexão interna capaz de considerar repugnante tudo aquilo. Ao invés, o que ocorreu foi uma incapacitação (do exterior) para a continuidade do regime – a aniquilação das forças do país. Desse modo a Alemanha não "exorcizou" o nazismo por si, embora o tenha feito (em grande parte) durante os anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Adorno crê que a arte tem uma função importante nesse contexto, no sentido de colaborar para abrir a mente humana para instâncias da sensibilidade. Educar para a sensibilidade é o verdadeiro compromisso de uma educação pós-Auschwitz, para que sejam removidas as condições de retrocesso à barbárie.

A esperança de Walter Benjamin malogrou e em certo sentido o desenvolvimento dos processos históricos ulteriores deram razão à posição defensiva de Adorno. Embora o nazi-fascismo houvesse terminado com o final da Segunda Guerra Mundial, a massificação propagandística da arte a serviço da política não terminou: ela foi incorporada pelo stalinismo (que redundou na estética autoritária do realismo socialista[4]e pela indústria cultural dos países capitalistas. No primeiro caso, podemos exemplificar a presença desse fenômeno no Brasil através da referência à estátua O Homem Nu, colocada na Praça 19 de Dezembro, em 1953, no centro da cidade de Curitiba/PR, uma cidade conhecida pelas suas soluções arquitetônicas originais.

Mas o que uma simples estátua colocada na praça central de uma das principais capitais brasileiras pode informar sobre o movimento fascista de estetização da política? De acordo com a interpretação de Geraldo Leão Veiga de Camargo, no texto Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária, a obra foi concebida em homenagem ao centenário da emancipação política do estado do Paraná, sendo de autoria dos escultores italianos Erbo Stenzel e Umberto Cozzo, ambos radicados no Brasil. Por isso o logradouro, que havia sido criado 100 anos antes, também é conhecido por Praça do Homem Nu. Ela apresenta o desenho em granito da figura de um homem enorme, de cor morena, ao lado de uma mulher concebida no mesmo estilo. Os autores pretendiam representar o homem paranaense olhando para o noroeste e, com isso, simbolicamente, para o futuro. A figura feminina foi colocada recentemente, mas por não guardar proporções anatômicas, existem intenções de artistas locais de retirá-la, devolvendo a estátua a sua destinação original.

Segundo o comentário de Camargo, "A obra projetada tem caráter e constituição heróicos; assim como o mural, também de sua autoria e situado na mesma praça, a escultura é típica de uma morfologia corrente à época, baseada nas noções de realismo ligadas às polaridades ideológicas do período." E mais: "Grosso modo, essas concepções eram, por um lado, o realismo-socialista, cuja adaptação brasileira foi decalcada principalmente do muralismo mexicano, e, por outro lado, as formulações realistas derivadas do nacional-socialismo e do fascismo italiano" (2005, p. 5). A obra reflete o realismo artístico, que defendia posições antivanguardistas ou antiburguesas pelos partidos de massa de esquerda, ou os fascismos europeus, e que teve a sua contrapartida nos debates políticos brasileiros no período, através dos seguidores do Partido Comunista e do Integralismo. Após uma análise do fenômeno em questão, Camargo conclui que essa arte figurativa realista é bem uma representação de figuras para fins de propaganda política, revelando nos monumentos as características da estética autoritária de esquerda e de direita. Talvez por representar essas concepções, a estátua provocou reações a favor e contra na opinião pública. Apesar de ser concebida na tentativa de representar o estado do Paraná, ela foi acusada pela oposição de falta de identificação com o homem "loiro" do Paraná, por exemplo.

A antítese de politização da arte

A idéia de estetização da política que hoje vivemos em larga medida no espaço público, apesar das restrições à propaganda eleitoral feita na última eleição presidencial no Brasil, não é tributária simplesmente do momento, mas tem um longo acento, como disse anteriormente, nas idéias do fascismo e do nacional-socialismo. O seu antídoto, seria, segundo Walter Benjamin, a politização da arte, que foi de certa maneira um objetivo malogrado. Nas palavras de Habermas,

A decidida politização da arte era um conceito já elaborado, quando Benjamin dele se apropriou. Ele tinha suas razões para recorrer a esse conceito; porém, tal conceito não tinha qualquer relação sistemática com sua própria teoria da arte e da história. Na medida em que Benjamin o aceita sem restrições, admite tacitamente a impossibilidade de derivar de sua teoria da experiência uma relação imanente com a práxis política: a experiência do choque não é uma ação, e a iluminação profana não é um gesto revolucionário. (1980, p. 201).

Na verdade, Benjamin tinha como intenção, ainda segundo Haber-mas, buscar uma teoria da experiência da arte a serviço do materialismo histórico. Sob a influência de Brecht, ele acreditava na utilidade organizacional e propagandística da arte para a luta de classes. Sua posição em defesa da politização da arte era pelo engajamento da própria arte, portanto. Mas se a esperança messiânica deu de si, o mesmo não se pode dizer em relação ao diagnóstico de Benjamin sobre a fantástica proliferação de processos de reprodução de produtos, de textos e de informações que levam à clonagem ou imitação da obra de arte e, conseqüentemente, à perda de sua aura. Esse diagnóstico tornou-se uma das marcas distintivas do pósmoderno.

Nos debates sobre a pós-modernidade, segundo Fridman (1996), considera-se que vivemos em uma cultura dominada por imagens, na qual a mídia tem um papel fundamental na produção de narrativas que criam um universo de ilusão. O "espetáculo" midiático atinge as diversas esferas sociais, produzindo uma "realidade à parte" ou o "hiper-real", segundo a expressão de Baudrillard, coleção de cópias cujos originais foram perdidos ou, dito de outra forma, onde o referente vivido pelos homens desapareceu. Tudo vira espetáculo, tanto os conflitos afetivos, familiares, como os de vizinhança das populações pobres pacificadas.

Vários teóricos pós-modernos reafirmam o diagnóstico de Benjamim como elemento característico da pós-modernidade. Connor vê nesse contexto uma "diminuição da autoridade de idéias de originalidade" (1993, p. 124). Tomando emprestada a expressão de Walter Benjamin, de que a arte se mistura indissoluvelmente à compra e venda de produtos, através da criação de narrativas que favorecem investimentos imaginários e libidinais dos consumidores em torno das mercadorias, Jameson (1996) fala da "estetização da realidade". Para Harvey, a conseqüência mais evidente da análise de Benjamin, de aumento da "capacidade técnica mutante de reproduzir, disseminar e vender livros e imagens a públicos de massa, e a invenção da fotografia e, depois, do filme (ao que hoje acrescentaríamos o rádio e a televisão)" acabaram mudando "radicalmente as condições materiais de existência dos artistas e, portanto, seu papel social e político" (2001, p. 32).

Mas não apenas a vida dos artistas é afetada. Rochlitz viu configurada nessa posição a própria experiência de Benjamin como escritor, depois do fracasso de sua carreira universitária. Embora livre das exigências acadêmicas, ele vai descobrir o preço a pagar por essa liberdade: "Submetido às pressões do mercado literário, o escritor faz da sua subjetividade, de sua experiência íntima, uma mercadoria que sempre deve encontrar comprador" (1992, p. 160).

São muitos os antecedentes do conceito de sociedade da imagem. Um deles remonta à década de 1960 na França através das formulações de Guy Debord, o cineasta, filósofo e militante político. Debord (1997) sustentava que a onipresença dos meios de comunicação de massa e suas encenações espetaculares ampliavam a coisificação e a reificação. Para ele, "Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos" (1997, p. 13), em que, poderíamos acrescentar, o real foi substituído pelo virtual. Posteriormente, Baudrillard adicionou que a "produção de realidade", a partir de narrativas midiáticas, criava um mundo de "simulacro" que dispensava a experiência vivida.

Como exemplo, nesse sentido, Fridman (1999) citada as sucessivas guerras militares anglo-americanas, como a guerra do Golfo e as investidas contra o Iraque, que foram assistidas ao vivo como um jogo virtual. Não se viu sangue nem a vivência do horror da guerra, no máximo imaginaram-se tragédias. Houve sim uma atmosfera de "limpeza", "assepsia" e "espetáculo", que permitiu um estado de suspensão com relação à morte e à destruição. Parece haver uma "lição de comunicação" aprendida da guerra do Vietnam, onde a presença da imprensa no campo de batalha teve importante papel sobre a opinião pública norte-americana e internacional, com influências sobre a negociação política e as possibilidades de paz. Sem dúvida, quando a guerra vira um espetáculo, uma "realidade à parte", a consciência do espectador é convidada a entrar em regiões estranhas de experiência dacognição. É a substituição do real pelo próprio espetáculo, o que termina promovendo uma fusão entre base e superestrutura social:

A utilização dos termos fusão e eclipse para tratar da relação entre a base e as superestruturas busca ressaltar que, mesmo que não tenham sido quebradas as relações sociais que constituem o capitalismo e a modernidade, a cultura atual faz mover o capitalismo segundo padrões não observados na história (FRIDMAN, 1999, p. 9-10).

Mas o fenômeno da relação da estética com a política pode ser vistopositivamente. É isso que pretende Iser, quando argumenta que a desintegração das ideologias que pregavam um fim da história trouxe à luz da consciência pública a idéia de que ela (a história) não está se movendo para nenhum fim antecipado. Essa finalidade aberta do mundo fez a política se aproximar da arte e da estética, pois elas respondem de maneira mais produtiva a esses desafios contemporâneos. Sendo assim,

Em vez de congelar a finalidade aberta, como ocorre com todos os tipos de ideologia agora em declínio, as possibilidades provenientes da operação modeladora do estético articulam a finalidade aberta por meio de uma multiplicidade de padrões que continuamente surgem e se esvaem novamente (ISER, 2001, p. 47).

Assim o estético, continua Iser, como "cascata de possibilidades", pode "lançar luz sobre a pluralidade como uma marca distintiva de nosso mundo" (ibid.).

Notas conclusivas

Embora Habermas não tenha ainda formulado uma teoria da arte, as várias investidas que fez nesse campo permitem assinalar uma posição mais reservada nesse ponto, ou mais comedida do que a de Walter Benjamin e os pós-modernos, por um lado, e mais avançada ou progressista, digamos assim, do que as posições defensivas do alto modernismo de Adorno. Para ele, o sucedâneo mais recente do processo de dominação material capitalista é a "colonização" do mundo da vida (Lebenswelt) pela razão instrumental, corporificado na aproximação entre base e superestrutura, que tende a transformar tudo, inclusive a imagem, em mercadoria. Em artigo recente intitulado O caos da esfera pública, admite que o iconic turn, isto é, o que ele chama de "a virada da palavra pela imagem", afeta o conjunto das nossas relações com o cotidiano, exigindo novas demandas, alterando inclusive o papel do intelectual.

Seu diagnóstico parte da idéia de que a ciência e a técnica transformaram-se na principal força produtiva no campo do agir instrumental (onde reina a "evolução das forças produtivas"), criando, com o espectro da modernização forçada, protestos de toda ordem, inclusive da esfera estética. A aspiração de que através da razão os homens controlariam seu destino e alcançariam a felicidade derivou para um mundo fora de controle, processo de amplas conseqüências sobre a economia, a política, a cultura e a subjetividade. Fiel à herança da discussão da teoria da Escola de Frankfurt, que examina a trajetória da racionalidade ocidental, Habermas não concorda que o declínio da aura que levou ao estouro das veias de autonomia do estético, defendido pelo pós-modernismo atual, deva necessariamente borrar as fronteiras entre os diferentes subsistemas que compõem a racionalidade: ciência, moralidade e arte. Por isso, uma razão que age no domínio público deve zelar (eticamente) pelo bom uso da razão estética.

Assim, como não desenvolveu uma teoria estética suficiente, ele fica suscetível às diversas cobranças nesse sentido. Martin Jay, no artigo Habermas y el modernismo, questiona a sua hesitação em tomar uma posição favorável a Adorno ou Benjamin. No Cuestiones e contracuestiones, Habermas explica que não se define porque, por um lado, a iluminação profana de Benjamin é otimista com relação à "desauritização" da arte, com a tecnologia de produção de massa. Mas essa posição pode recair no mesmo problema do Surrealismo, que pretendeu uma integração prematura da arte com a vida. Nesse sentido, concorda com Adorno, quando esse havia promovido um rechaço a priori da arte esotérica, chamando a atenção para o fato de que a integração da arte à vida recai na degeneração da arte em imitação comercial vulgarizada. Por outro lado, em Adorno a mímesis do futuro, embora resguarde a pretensão de autonomia de uma sociedade liberada, permanece em processo de "hibernação" na arte. No momento em que Adorno busca uma saída para o domínio administrado, uma fuga do pensamento identificador e do mesmo na apreensão mimética do outro, como algo exterior à racionalidade, recai na crítica do performativo da linguagem, ao negar, ao fim e ao cabo, a vigência de uma racionalidade na estética.

Pelo contrário, sua posição vai em direção a considerar que existe uma semelhança ou correspondência entre uma ordem estética complexa, autônoma, abstrata e racionalizada (os ganhos da modernidade que Adorno queria garantir a todo custo) e o contexto comunicativo, presente no mundo da vida (para o qual Benjamin chamava a atenção), de onde emergem e deveriam retornar as experiências da arte autêntica. Acentua que o movimento iniciado por Benjamin tem como objetivo reforçar o papel de destrancendentalização da arte, isto é, retirá-la das alturas esotéricas para situá-la mais em contato com o mundo da vida. Desse modo, o lugar habitado pela mímesis não é incompatível com o mundo cotidiano, mas, sim, é possível estabelecer mediações construtivas entre as esferas da prática sistêmica e do mundo da vida, mantendo a autonomia dos campos da razão. Fazer essa relação é estabelecer a conexão da arte com a vida, é abrir os olhos da razão, das expectativas cognitivas e éticas. Manter

o distanciamento é produtivo, tanto para alimentar o plano racionalizado e autônomo da obra de arte quanto das biografias e histórias de vida. E isso permite que a arte e a estética tenham o seu campo de validade autônomo e preservado, evitando assim a subserviência de um campo ou de um complexo do saber às demandas e prerrogativas de atuação do outro.

Se os benefícios reflexivos do plano da arte confluírem para a vida, por meio de mediações consistentes, se dissolvem, em certo sentido, as aporias entre estetização da política e formação da opinião pública, assim como entre arte e vida, estética e política, mundo sistêmico e mundo vivido. Tais conexões são encontradas nas práticas diárias de comunicação cotidiana, em que imitamos uns aos outros no uso de bons argumentos em direção ao consenso. Ao transferir mimeticamente para o plano da arte as condições de vida não fracassadas, a arte aproxima-se da mímesis cotidiana, isto é, do que ocorre no plano real da existência. Porém, pela autonomia conquistada, ao distanciar-se, ela colabora para formar uma esfera pública mais politizada, pois a arte autônoma representa um protesto, um efeito de choque em si mesmo, contra as atuais condições de pobreza e apatia vigentes. Nesse sentido, Habermas concordaria com as preocupações e cuidados de Marcuse com relação a uma integração prematura desses saberes: "Quanto mais imediatamente política for a obra de arte, mais ela reduz o poder de afastamento e os objetivos radicais e transcendentes de mudança. Nesse sentido, pode haver mais potencial subversivo na poesia de Baudelaire e de Rimbaud do que nas peças didáticas de Brecht" (MARCUSE, 1999, p. 14).

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Artigo recebido em: março/2007. Aprovado em: maio/2007.

 

 

Autor:

Amarildo Luiz Trevisan

amarildoluiz[arroba]terra.com.br

Professor de Filosofia no Centro de Educação/UFSM, Santa Maria/RS, e pesquisador do CNPq.


[1] Em função dessa declaração dada em 2001, e considerada politicamente indesejável, Karlheinz Stockhausen teve vários shows cancelados, culminando com um pedido de desculpas. Ele referiu numa entrevista que esse foi o dia mais triste de sua vida.

[2] Os ideais fascistas foram relacionados do seguinte modo por Suzan Sontag no brilhante artigo Fascinante Fascismo: o ideal de vida como arte, o culto á beleza, o fetichismo da coragem, a dissolução da alienação em sentimentos extáticos de comunidade, o repúdio ao intelecto e a família sob a paternidade de líderes. (1986, p. 76) Pode ser acrescentado também a esse elenco o prazer da violência, isto é, a vivência da própria destruição como um prazer estético de primeira ordem (BENJAMIN, 1985) e a exposição de objetos que culminava na erotização de símbolos (nazi-fascistas). Segundo a própria Sontag, existe, pois, uma "ligação natural entre sadomasoquismo e o fascismo" (1986, p. 81).

[3] é por isso que a aniquilação do judeu (bem como do cigano, do negro e de qualquer população "não-ariana") na Alemanha nazista não se limitava ao aspecto de violência física. Joseph Goebbels incentivava a queima pública de livros e trabalhos pretensamente judeus; cientistas foram expulsos e humilhados, pintores foram mandados para campos de concentração. Em 1943 houve uma grande destruição de cerca de 500 obras de arte, na França, entre as quais figuravam trabalhos de Pablo Picasso, Max Ernst e Paul Klee. Assim a violência cultural ressurgiu entre os nazistas que acusavam os próprios judeus de degenerar a verdadeira arte.

[4] "O realismo socialista foi uma doutrina que regulamentou a arte figurativa, com vistas á sua utilização na transmissão de valores ideológicos, que emergiu na União Soviética nos anos 1930, a partir de uma série de lutas internas que atravessou os anos 1920." (CAMARGO, 2005, p. 7).



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