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O poder do styling nos desfiles do São Paulo Fashion Week (página 2)

Mariana Rachel Roncoletta
Partes: 1, 2, 3

As entrevistas com os stylists Daniel Ueda, Mauricio Ianês e Paulo Martinez e com o designer Fause Haten, realizadas pessoalmente, estão em formato digital (mp3), sendo transcritas as partes relevantes, anexadas. A entrevista com o designer Alexandre Herchcovitch, realizada por e-mail, também segue em texto.

Como recurso utilizamos uma pesquisa imagética através da Internet, em sites das marcas estudadas, sites especializados em Moda (como o Chic e Erika Palomino), sites de vídeo (como o Uol, YouTube e Terra), sites de localização de imagens (como Google e Wikipedia), além de periódicos impressos (como jornal A Folha de São Paulo e revistas como Key e Vogue Brasil). Estão inseridos, em formato DVD, os trechos dos desfiles analisados, e as imagens fotográficas localizadas no decorrer do trabalho. A lista de figuras localiza-se no final.

Vale ressaltar que verbetes em inglês são comumente utilizados para denominar certas expressões no meio da Moda. Muitas vezes, não existe a tradução em português para o termo em questão, e em alguns casos o conceito da palavra em português difere do sentido que ela possui em inglês. Os termos serão mencionados em nota de rodapé, dentro da solicitação desta pesquisa, sem a pretensão de caracterizá-los como termos absolutos e sim como informações utilizadas enfatizando o próprio discurso.

1. O stylist como construtor de imagens

Abordamos a utilização do termo stylist, sua consolidação no mercado de Moda, origem e campos de atuação. Consideramos o stylist um intérprete da Moda, e sua atuação, indispensável para compreensão de um look de Moda. GARCIA e MIRANDA (2005:31) entendem por look "uma organização na construção de determinadas roupas, associadas à postura corporal, à atitude, cabelo, maquiagem, etc." Cada stylist interpreta a vestimenta e a propõe de maneira diferente. Na imagem abaixo, podemos observar, no editorial da revista Vogue Brasil de outubro de 2006, uma matéria realizada com a mesma peça de roupa, o trench-coat da marca Maria Bonita, utilizada de três maneiras distintas conforme a proposta de cada fashion stylist[3]

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Fig. 1: Reportagem de Adriana Bechara sobre stylist da Vogue Brasil. Fotos: Rodrigues Marques. Fonte: Revista Vogue Brasil 338.

Este editorial também nos revela a importância, no Brasil, que um profissional, antes pouco reconhecido, ganha a partir dos anos 1990, como veremos a seguir.

1.1 Stylist não é produtor – a utilização do termo em inglês

O termo stylist foi apropriado da língua inglesa, utilizado no meio profissional de Moda para designar o profissional responsável pela construção e conceito da imagem.

Segundo PALOMINO (1999:263), o termo surgiu no Brasil em 1995. Com o crescimento do mercado de Moda brasileiro observado na década de 1990, surgiram algumas terminologias para especialidades profissionais inéditas no Brasil. A função já existia em menor escala e denominada como produtor. Este responsável pela "produção em si" do editorial de moda ou desfile, envolvendo tanto a logística (agenda de modelos, alimentação, transporte etc.) como também o conceito criativo. A função da logística, hoje é atribuída ao produtor executivo, enquanto o conceito criativo ao stylist.

Do produtor geral de desfiles originaram-se diversas outras profissões, algumas já da área de moda - como diretores, editores, produtores executivos – e outras de áreas agregadas - como cenógrafos, coordenadores de camarim, djs, beauty-artists[4]etc.

O produtor de um desfile, por exemplo, era responsável pelo conceito da imagem, pela direção, pela seleção de modelos, e pela edição dos looks entre outras funções, e era chamado normalmente de produtor. Desta década em diante, o antigo produtor, atual stylist, ainda é responsável pelo conceito criativo do desfile, porém ele trabalha com uma equipe de profissionais onde cada um é responsável por uma área: o fashion director ou diretor dirige e às vezes coreografa, mas sua principal função é "soltar o desfile"; o cenógrafo, responsável pela ambientação; o produtor executivo, pela logística; a equipe de beauty, responsável pela "beleza" das modelos (cabeleireiros e maquiadores) e, em alguns casos, ainda temos um diretor de casting, que cuida da seleção de modelos entre outras funções. O stylist é o maestro.

Importante ressaltar que o stylist não faz nada sozinho; ele coordena um desfile com a aprovação do designer ou estilista[5]de moda, trabalhando em conjunto com os demais profissionais envolvidos.

Para BORGES (2003:1003), a carreira de stylist se consolida no Brasil a partir da Criação do Calendário de Moda, na década de 1990. A organização do Calendário de Moda[6]parece ser o princípio da utilização do termo stylist, depois disseminado por todos os meios de comunicação nacionais.

Devido ao desenvolvimento da Moda no Brasil houve a necessidade de diferenciar os profissionais, antes conhecidos no mercado editorial como produtores ou editores de moda, até mesmo pela segmentação do próprio mercado. Aos editores de moda, título utilizado em maioria aos profissionais da mídia impressa, segundo nossa pesquisa de campo, cabe as funções de elaborar pautas, escolher as equipes (fotógrafos, stylists etc.), acompanhar a paginação em conjunto com o diretor de arte, escrever textos e assistir os desfiles e lançamentos em show-room.

O mercado editorial, antes dominado pelas revistas de moda reconhecidas como Vogue, Elle e Marie Claire, intensificou-se por publicações como TPM, Speed, MMM, Moda da Folha de São Paulo, entre outras, além do surgimento dos sites especializados, como o Chic, Erika Palomino, etc. Com a crescente proliferação dos meios de comunicação e sua profissionalização, além do grande número de profissionais terceirizados conhecidos como free-lancers, houve necessidade de agregar valor para diferenciar o profissional antes conhecido como produtor de moda. O termo stylist foi importado, e adotou-se sua utilização em inglês também para o mercado editorial.

O produtor de moda é um assistente do editor de moda das revistas consolidadas até os anos 80, quando os produtores[7]executavam as pautas dos editores. Atualmente, os produtores realizam as sugestões dos editores de moda, e dos stylists.

"A função do produtor de moda é geralmente captar a atmosfera desejada pela editoria de moda ou diretor de arte, contatar as modelos, conseguir as roupas e acessórios necessários para vesti-los de acordo com o tema ou pauta, agendar os profissionais da beleza, marcar carro e motorista e conseguir a locação para as fotos, caso não sejam realizadas em estúdio." SABINO (Op. cit.:503).

Eram chamados de "sacoleiros fashion"[8] por serem encarregados de produzir, trazer pra redação as peças solicitadas. Eram também "os olhos" dos editores, mas a grande diferença entre o stylist e o produtor de moda é a autonomia dentro do próprio veículo (a capacidade de criação de uma imagem e de construir um conceito), sendo a participação criativa do produtor importante, porém não tão significativa. Com a profissionalização do mercado de Moda, o stylist pôde concentrar-se na criação e desenvolvimento do conceito de uma imagem, enquanto o produtor, seu assistente, realiza.

Apesar de uma tradução[9]do termo stylist da língua inglesa ser produtor, no mercado nacional, desde os anos 1990, existe esta diferença enquanto categorização. Portanto, é de extrema importância compreender que o termo stylist não pode mais ser utilizado no lugar da palavra produtor, já que, nos tempos atuais, os conceitos brasileiros de produtor e stylist pertencem a categorias distintas, mesmo quando ambos trabalham juntos. O produtor continua sendo "os olhos" do stylist ou do editor de moda. Profissionalmente, o stylist atua como um editor de moda, porém este título é, na maioria das vezes, utilizado no mercado editorial para os profissionais não-terceirizados das revistas. Nos desfiles de moda quem edita o desfile é simplesmente chamado de stylist.

Curioso observar, ainda, que muitos profissionais "construtores de imagens" prefiram ser chamados de consultores de imagem, ou simplesmente de editores de moda, pela própria banalização midiática do termo stylist.

1.2 Definição de stylist

"Stylist: palavra inglesa para referir-se ao profissional que define a imagem de um desfile, catálogo ou editorial de moda. Sugere e ajuda a selecionar modelos, faz a edição das roupas a serem usadas e ajuda a determinar a maquiagem e o cabelo a serem adotados; nos desfiles, interfere na atitude das modelos e opina sobre cenário e trilha sonora". SABINO (Op. cit.:563).

A citação acima resume as funções do profissional conhecido no Brasil atualmente como stylist. Seu reconhecimento está associado a suas habilidades, porém não são apenas suas funções que o definem, como veremos a seguir:

"O fashion stylist ou simplesmente stylist é um intérprete da moda, não é um designer, é o personagem responsável pela imagem de moda que coordena os looks", de acordo com JONES (2005:209). É o profissional responsável por criar e desenvolver o conceito de uma imagem em uma mídia que pode ser secundária, como o indivíduo vestido ou os desfiles de moda, ou terciária, como as imagens de sites ou da TV.

Mídia significa meio, um espaço intermediário comunicacional. A mídia primária segundo PROST apud BAITELLO (2005:31-35) é o nosso corpo, ao nos encontrarmos pessoalmente com outra pessoa passamos um grande número de informações visuais, olfativas, auditivas, táteis e até mesmo gustativas. Esta comunicação é presencial, exige o limite temporal e espacial do aqui e do agora.

A mídia secundária é a comunicação de um corpo com outro através de um objeto exterior ao corpo, podendo, através deste objeto, perpetuar-se no tempo de forma limitada. Portanto, uma roupa é uma mídia secundária tanto como objeto de comunicação como em seu poder nãopresencial. Um desfile ou uma revista são mídias secundárias em que o fashion stylist atua. Quando o mesmo constrói a imagem de uma pessoa ele é chamado de personal stylist ou consultor de imagem pessoal.

A veste fala por si mesma, transmite códigos e significados pelo tato (o toque do tecido quente ou frio), pelo olfato (o cheiro do algodão por exemplo), pela visão (a forma e caimento de um look), pelo paladar (no caso das roupas comestíveis de sex-shop) e até mesmo auditivas (um tecido de papel ou a palha de seda pura são famosos pelo barulho). Porém, as roupas possuem o limite da transportabilidade, sendo necessários outros meios de comunicação: para divulgar a imagem da própria veste, precisamos ter a revista, ver a pessoa ou assistir ao desfile pessoalmente para interpretarmos tais códigos[10]

A roupa como objeto não transcende o espaço, mas sua imagem, sim, através de um suporte de informação como a televisão ou o computador. Por meio destes veículos a imagem de um desfile de moda pode ser considerada uma mídia terciária, onde recebemos os códigos dos sentidos à distância, através de estímulos visuais e auditivos. Não temos mais acesso ao cheiro, ao gosto ou ao tato. A comunicação é feita através das imagens produzidas por tais instrumentos. Esta era visual, altamente valorizada pelo crescimento das mídias terciárias, será um ambiente perfeito para consolidação do stylist, um especialista em construir imagens. Tal fenômeno será abordado no capítulo seguinte.

Vale observar que, para que haja comunicação, é sempre necessária a mídia primária, ou seja, uma informação só é transmitida se o corpo puder codificá-la.

Sendo o stylist um intérprete da Moda na recombinação dos looks e de seus significados, podemos concluir que sua interpretação é uma criação de um novo look, portanto uma reconstrução significativa das mídias sejam elas secundárias ou terciárias.

O stylist é, portanto, um mediador da Moda, assim como um curador é para a Arte. Segundo TEJO (2005:29-31) o curador é por definição um mediador com o objetivo de comunicar a obra de arte ao público através da sua interpretação, sob a perspectiva pós-moderna[11]onde as subjetividades do próprio indivíduo são levadas em consideração.

A comparação do stylist como mediador e interlocutor entre o público e o designer de moda com o curador que realiza o arranjo de composição na apresentação das obras artísticas na exposição, causa uma imagem e um efeito de sentido, um determinado impacto. Se as mesmas obras fossem organizadas de outra maneira, ou por outro curador, o efeito de sentido seria diferente. Tanto o stylist quanto o curador não criam as peças plásticas em si; os criadores são os artistas, para as Artes, e os designers[12]para a Moda. Os stylists são responsáveis pela composição do look, ou seja, pela maneira como tais peças serão apresentadas, assim como o curador de arte.

"O curador passou de responsável pela manutenção e escolha das peças de uma coleção e pelo entendimento que o público tem desta coleção para protagonista da construção de sentido da obra de arte e animador cultural (...) o curador escolhe, contextualiza, recorta, redimensiona de acordo com sua interpretação, seja para uma exposição individual, coletiva, retrospectiva ou temática". SPALDING (1999:28-44) apud TEJO (2005:29).

Na semiótica francesa, discursiva ou greimasiana, o efeito de sentido "não é descrição do sentido, mas a construção que visa produzir uma representação da significação", segundo GREIMAS (1989:137). A semiótica é o estudo do sentido, ou seja, do significado. O stylist torna-se, portanto, um co-autor da imagem de Moda apresentada pela re-significação de sentido. Vale ressaltar que as imagens aqui observadas já sofreram outras intervenções dos fotógrafos ou cinegrafistas, assim podemos apenas observar os efeitos de sentido já interferidos. Aplicando a teoria semiótica a Moda, temos as seguintes leituras:

  • O plano de expressão/manifestação, onde se encontram os formantes plásticos: cor, material, forma e topologia. Neste plano, podemos observar sua materialidade como significante que vai além da função de simples suporte de um conteúdo.

  • O plano de conteúdo (nos níveis fundamentais, narrativos e discursivos) é onde podemos analisar os efeitos de sentido como "realidade" produzida por nossos sentidos, inseridos na cultura contemporânea. Para CASTILHO e MARTINS (2005:54), o look passa de um "objeto construído" para um "objeto em construção", apresentando-se como "projeto, fruto de pesquisa, e o seu resultado é que dialoga com os mundos possíveis e imaginários...".

Compreendemos o efeito de sentido causado pelo stylist como enunciador[13]da re-significação de um look, e sua grande influência na construção e organização da imagem do look como conceito, em que os efeitos de sentido são as possibilidades de leitura através da descontrução dos planos de expressão e conteúdo.

1.3 Origem do stylist

Eles sempre existiram para a realeza (ou nobreza). Rose Bertin prestou serviços para Maria Antonieta e Georges Brummel foi conselheiro do rei inglês Georges IV, afirma João Braga no livro Personal Stylist de AGUIAR (2004:12). Os consultores de estilo, conhecidos como personal stylists, prestavam serviços para nobreza, porém a divulgação da profissão veio da "inversão do sistema de moda" localizada por LIPOVETSKY (Op. cit.:107115) a partir dos anos 1960. Os designers com suas grifes começam a ditar as tendências. As tendências de moda não vem mais da elite defendida pela moda dos 100 anos e pela alta costura e suas tendências hegemônicas. "A moda é plural e deixa coabitar os estilos mais discordantes", afirma o autor. A ascensão dos designers de moda como lançadores de tendências do prêtà-porter e sua crescente exposição midiática através das imagens de moda conceituais, jovens e inovadoras gerou também o crescimento exponencial da própria Moda e de suas profissões.

Desde o começo dos anos 1950, as galerias Lafayette, Printemps e Prisunic introduzem, em seus serviço de compra, conselheiras e coordenadoras de moda pra apresentar aos fabricantes produtos mais atuais. Nascem os escritórios independentes de Consultoria e Estilos: Relations Textiles, em 1961, e depois Promostyl, em 1963, ambos de Maïmé Arnodin, que no setor industrial são os primeiros escritórios a trabalharem com consultoria de estilos pelas tendências. O sistema de Moda percebe a importância de agregar valor à Moda, através dos criadores e consultores.

Segundo GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:38), a atividade de stylist como conhecemos atualmente foi inventada por Mary Quant nos anos 1960. Ela percebeu que os trajes apresentados em movimentos, acrescidos de brincadeiras e acessórios, agregavam valores capazes de fortalecer seu poder de sedução, diferenciando-os das apresentações tradicionais da época.

A História da Moda nos mostra que a profissão do construtor de imagem acompanha todo seu sistema, a partir da nobreza, e revela sua consultoria como um desdobramento da função de designer de moda até a visibilidade como profissão nos anos 1990.

Deste poder de sedução do look como apresentação do todo (vestimenta, atitude, acessórios, trilha sonora e até mesmo o cenário). Surgiu o profissional responsável por constituir uma imagem significadora de sentidos: o fashion stylist independente do designer.

1.4 Campos de atuação do stylist

Segundo DINGEMANS (1999:1), são várias as categorias de stylists na indústria da Moda: hair stylists são os cabeleireiros, os make-up stylists são os maquiadores e stylists são conhecidos no Brasil como editores, consultores de moda e figurinistas.

Os fashion stylists são aqueles profissionais que trabalham diretamente com a elaboração de uma construção de imagem de moda e não com a confecção de roupas, caso dos designers ou criadores. Para GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:38): "sua função é enriquecer o desfile, catálogo ou editorial, formando looks em conformidade com as temáticas abordadas pelo estilista e assim estabelecendo um padrão de uso, conhecido como tendência".

Em nossa pesquisa de campo, percebemos outras abordagens dos stylists de desfiles além das tendências. Os stylists entrevistados afirmam uma preocupação com o público-alvo, com a identidade da marca, com uma proposta inovadora e ainda uma preocupação em gerar notícia. Relembrando que o stylist é um intérprete da Moda, acrescentamos que uma de suas funções é criar através da imagem uma afirmação de identidade[14]da mídia para qual o stylist trabalha, de acordo com a mensagem que se deseja transmitir.

Em entrevista concedida as autoras, o designer Fause Haten afirma que "o styling não pode se sobrepor a marca...As mãos do stylist não devem pesar na marca, se não fica tudo com a cara do stylist e não da marca". Este é um dos problemas do styling mal executado. O bom profissional trabalha os modismos e tendências para fortalecer a identidade da marca e não sufoca-la.

Esta identificação/identidade é reconhecida como uma assinatura, características reconhecíveis e presentes na maioria das coleções do criador. Essa assinatura se caracteriza pela ocorrência de elementos específicos que, quando inseridos e/ou repetidos, criam uma identidade visual perceptível.

Vale observar que as comunicações contemporâneas possuem valores elásticos inseridos num determinado contexto cultural. Portanto, as assinaturas mencionadas acompanham as maneiras e costumes sociais de cada época e cultura associados aos conceitos da marca ou pessoa (também mutáveis), acrescentados à subjetividade do stylist.

No Brasil, segundo nossa pesquisa de campo, a maioria dos profissionais são multifuncionais, ou seja, trabalham com styling de desfiles, revistas, sites, catálogos e campanhas publicitárias (filmes e fotos). Portanto, optamos por classificar didaticamente os stylists de acordo com seus campos de atuação, mesmo que na realidade brasileira muitos profissionais atuem em diversos campos. Adotaremos, assim, os termos styling e stylist, para nos referirmos à atuação de tais profissionais. Optamos também por colocar a relação em ordem alfabética, não privilegiando nenhum campo de atuação:

  • 1. Advertising styling ou stylist publicitário.

  • 2. Cinema / Television styling ou stylist de filmes. Fashion styling ou stylist de moda.

  • 3. Personal styling ou stylist pessoal.

Advertising styling ou stylist publicitário – são os stylists que trabalham em campanhas publicitárias fotográficas ou filmes comerciais para marcas não relacionadas diretamente com o universo fashion. Conhecidos como figurinistas[15]tais profissionais existem no Brasil desde os primórdios da propaganda-publicidade. O processo de construção do stylist de moda e do stylist publicitário são muito semelhantes, ambos profissionais trabalham com temáticas ou do designer, no caso do primeiro, ou do personagem no caso do segundo. Em geral os figurinistas também constroem painéis semânticos (painéis imagéticos de inspiração) para a construção de seus personagens, enquanto os stylist de moda ampliam os painéis dos designers.

Nos últimos anos, muitas marcas de outras áreas (automobilísticas, eletrodomésticos, celulares) associaram-se à Moda para agregar valor do próprio sistema de Moda, procurando, assim, profissionais com tal formação capazes de "criar estilos contemporâneos" condizentes com a linguagem de Moda, relacionados a tendências internacionais. É o caso das campanhas da Vivo, por exemplo.

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Fig. 2: Campanha da operadora Vivo realizada pela agência África. Fonte: folder Vivo.

Cinema / Television styling ou stylist de filmes – No Brasil, conhecidos também como figurinistas de programas de TV (jornais, novelas, etc) ou figurinistas de cinema (filmes nacionais). Internacionalmente, são chamados de costumer designers. São conhecidos como figurinistas por terem que utilizar a área do saber de construção de imagens que funcione para tais mídias, e, muitas vezes, precisarem fazer uso de habilidades do designer (desenhar, criar e mandar confeccionar um look). A maioria do styling desta categoria ainda é confeccionada exclusivamente para produções cinematográficas, principalmente nos filmes de época. Alguns personagens podem se utilizar de peças encontradas na indústria de Moda. Alguns programas de TV apresentam os créditos das roupas utilizadas.

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Fig. 3 e 4: Figurino de Kika Lopes para o filme Zuzu Angel. Fonte: site Zuzu Angel.

Fashion styling ou stylist de moda – são os stylists que fazem o styling de uma marca de moda, como o styling de desfile e de campanha de uma marca de moda para um veículo de moda (caso das revistas ou sites especializados em moda). Muitas vezes, são profissionais free-lancers, que trabalham para diversas mídias. Recebem a pauta do editor de moda ou diretor de arte ou ainda sugerem tais pautas em algumas mídias. Trabalham na construção do conceito do editorial[16]fotográfico de uma imagem de moda para tal veículo. São responsáveis pelo conceito do editorial em conjunto com o editor de moda, se o veiculo de comunicação tiver um, como também pela escolha dos demais profissionais (fotógrafo, modelo, beauty artist), participando da produção de moda em si, momento em que muitos stylists trabalham em conjunto com os produtores de moda. A maioria dos profissionais especializados em styling de desfile também trabalham em editoriais de moda ou nas campanhas das marcas de moda. São os stylists mais renomados da categoria em decorrência do grande crescimento midiático dos desfiles de moda. São os responsáveis pelo conceito e imagem do desfile, em conjunto com o designer de moda. Daniel Ueda, por exemplo faz o styling da Ellus, assim como sua campanha impressa (vista também no site), e ainda realiza editoriais para Vogue Brasil e Key. Paulo Martinez é o stylist da marca Fause Haten e editor de moda da ffMag. Mauricio Ianês é stylist de Alexandre Herchcovitch e trabalha como free-lancer para revista Key.

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Fig. 5: Capa da Revista Key número 4 de novembro de 2006. Foto: André Schiliró. Stylist: Mauricio Ianês. Beauty: Theo Carias.

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Fig. 6: Desfile de inverno 2007 do designer Alexandre Herchcovitch. Fotos: Silvia Borielo. Fonte: Site Erika Palomino.

Podemos portando, dentro da categoria dos fashion stylist, subdividi-los em:

  • Stylist de campanhas de moda – aqueles que elaboram a imagem de uma campanha de moda. Como campanha entendemos a imagem da marca de moda vinculada na forma de anúncios, out-door, catálogos etc.

  • Stylist de editoriais – profissionais que atuam para um veículo de moda, seja ele uma mídia secundaria ou terciária.

  • Stylist de desfiles – profissionais que atuam nos desfiles. O styling de desfiles são nosso objeto de estudo por ser o espetáculo o auge da manifestação do designer, assim como o "celeiro de idéias" para as uma grande quantidade de pautas dos veículos de moda, segundo nossa pesquisa de campo.

Personal styling ou stylist pessoal – mais conhecido como consultor de estilo pessoal. É um profissional altamente especializado, com a função de indicar o tipo de roupa que fica bem para o tipo físico da pessoa, associado ao seu lifestyle e às tendências de moda. É o criador das imagens de seus clientes, do modo como se projetam. O personal stylist trabalha normalmente para celebridades e/ou empresários.

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Fig. 7: Gabriela Duarte durante o lançamento do MG Hair Design, inaugurado em 18/05/2005. Foto: Gisele França. Fonte: Site Erika Palomino.

2. Sobre a importância da imagem na sociedade contemporânea

No Brasil, especificamente na cidade de São Paulo, onde surgiram os primeiros indícios da utilização do termo stylist como profissão, pode-se dizer que a conscientização do valor da imagem ganhou ênfase com a valorização da Moda e fortalecimento do setor na década de 1990. Para entendermos melhor como isso aconteceu, assim como também o contexto em que a profissão de stylist ganhou relevância, abordamos eventos pertinentes à área, que foram de capital importância para o processo de consolidação da imagem de Moda, crucial nesse sistema.

Não é de hoje que a Moda tem relevância nas sociedades contemporâneas, principalmente no Ocidente. O que a torna digna de destaque atualmente é a convergência de valores da Moda e da sociedade de valorização da imagem. A Moda viabiliza a construção de inúmeros pareceres, permite ao indivíduo escolher qual personagem deseja ser, oferece a possibilidade de participar de um mundo cheio de fantasias e eterna novidade. A Moda, com seu carrossel vibrante de novidades, oferece uma alternativa à realidade cotidiana, muitas vezes empobrecida pelas frustrações e estresse. O fato de ser efêmera, de demandar contínuas aquisições e do prazer da compra se extinguir com a posse do objeto não diminuem a crença do indivíduo de que a felicidade definitiva estará no próximo consumo.

2.1 Considerações sobre a Sociedade do Espetáculo

Em 1968, o filósofo francês DEBORD (1992:14) escreveu A Sociedade do Espetáculo, uma obra visionária que hoje, às vésperas de completar 40 anos, continua atual. "O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens". Expressões como a "era da imagem" ou "sociedade da imagem"[17] utilizadas para descrever os valores da sociedade atual remontam às formulações pioneiras dele. Guy Debord é a principal fonte utilizada para contextualizar o cenário global que influencia o tema desse trabalho, e é onde ele se desenvolve.

No livro, o filósofo analisa a sociedade contemporânea que privilegia a imagem e a representação. Debord critica a sociedade, que para ele é apática, submissa ao sistema capitalista e influenciada excessivamente pelas imagens. O contexto social, cultural e político da década de 1960 conspirava para que as pessoas vivessem num mundo regido pelas aparências e consumo de notícias, imagens e mercadorias, colocando em segundo plano a vivência da própria realidade. Buscavam nas imagens, nas mensagens publicitárias e nas pessoas de destaque tudo aquilo que não encontravam na própria vida: aventura, emoção e eterna felicidade. Para Debord, o consumo do espetáculo era a alternativa às frustrações e à monotonia da vida real. Os meios de comunicação em massa fomentam essa "cultura da evasão"[18], uma vez que manipulam a realidade, propagando ícones e imagens e passando a mediar uma existência onde se deseja viver através das imagens idealizadas.

Para LIPOVETSKY (Op. cit.:210), a cultura de massa está imersa na Moda e possui a mesma dinâmica de funcionamento: renovação acelerada, foco no presente, lazer imediato sem preocupação com valores outros além da diversão, readaptação dos discursos e atitudes ao código do contemporâneo. O código da contemporaneidade permite que o que era condenado anteriormente passe a ser aceito desde que receba o rótulo de "moderno"[19]. Na Moda, percebemos claramente a constante dialética validação/invalidação de estilos anteriormente considerados "cafonas" - como é o caso de elementos da década de 80 - que são recombinados formando outros looks com novos significados. Já a cultura de massa está constantemente reciclando valores do contemporâneo. O que era individualismo no passado pode, hoje, ser apenas liberdade de exercer a própria personalidade. Por terem tanto em comum, a Moda encontrou na "Sociedade do Espetáculo" ou "Era da Imagem" terreno para sua expansão.

Para PRECIOSA (2005:30), a Moda "é uma forma absolutamente singular de sintonizar idéias, sensações, que vão modelando o contemporâneo, encarnando-as. Nesse sentido, ela, em certa medida, pode nos oferecer um diagnóstico do mundo em que vivemos". Conceito reforçado por MESQUITA (2004:32), que afirma ser a Moda a "mais completa tradução da sociedade contemporânea". Podemos considerar, portanto, que através da Moda como linguagem social constroem-se imagens e novas realidades com as quais as pessoas dialogam.

É nesse contexto de criação, valorização e propagação de imagens que o stylist se estabelece como profissional pertencente ao mecanismo da Moda. O termo ganha visibilidade no Brasil[20]principalmente através das mídias sobre os bastidores da Moda, pois este profissional é um especialista em construção de imagens que utilizam a Moda como recurso de comunicação.

2.2 Na era da imagem, aparência é texto, Moda é comunicação

No contexto atual, onde há predominância do sentido visual sobre todos os outros, a Moda é um dos principais meios de comunicação. Na construção de um visual, seja para o indivíduo ou para a marca, há um discurso rapidamente absorvido pelo interlocutor, muitas vezes inconscientemente.

2.2.1 Editoriais de Moda

Um editorial de moda é uma seleção e organização de looks, dentro de uma temática específica que pode ser veiculado na mídia impressa e/ou eletrônica, mas de acordo com nossa pesquisa de campo o compreendemos como uma opinião do veículo sobre a moda daquela estação. O editorial compreende título, olho e legenda como pequenos textos explicativos, mas o atrativo está nas imagens. A mensagem é rapidamente transmitida no conjunto das roupas, assessoradas pela luz, maquiagem e cenário. Todos esses ítens devem estar em sintonia com o perfil da publicação ao qual o editorial pertence, para não haver conflito na recepção da mensagem. Um editorial que apresentasse uma moda de vanguarda não encontraria nenhuma receptividade junto ao público de uma revista conservadora.

Na década de 1990, a revista Vogue Brasil passou por uma reformulação de conteúdo e visual com o propósito de "afinar" conceito e imagem ao perfil de seu público AAA, como nos relata BORGES (Op. cit.:1059). Foi nessa época que o mercado editorial, despertado pela globalização, intensificou sua preocupação com a comunicação visual e a transmissão de conceitos. O profissional responsável pela coordenação de imagens, o editor de moda, ganhou maior importância e seu nome adquiriu maior destaque nos créditos do veículo editorial ou nos releases[21]dos desfiles.

Na era da imagem, a necessidade de uma comunicação visual mais eficiente levou a mídia impressa, da área de Moda ou não, a sucessivos aprimoramentos estéticos. No segundo semestre de 2006, a Revista da Folha, publicação semanal do jornal Folha de São Paulo, trouxe o designer Karin Rashid[22]atualmente em destaque no cenário mundial, para fazer uma reformulação gráfica, com o objetivo de atualizar a revista. Neste caso, atualizar, tendo em vista a era da imagem, significa dinamizar a leitura por meio da articulação do layout com o texto imagético e o texto verbal. Rashid, que flerta com a moda e atua em diferentes áreas do design, foi o responsável por inserir na revista da Folha novas cores, formas e tipologias que transmitem a idéia de contemporaneidade e credibilidade antes mesmo que o conteúdo seja percebido. O designer trouxe elementos da moda como movimento, leveza e dinamismo para facilitar a percepção do conceito.

2.2.2 Propaganda e Publicidade

A propaganda/publicidade[23]assim como a Moda, seduz pela aparência e deve surpreender e mudar sempre. A publicidade eficiente é aquela que não somente oferece o novo como o faz de maneira que a mensagem seja facilmente apreendida em um rápido olhar. Segundo LIPOVETSKY (Op. cit.:187), se a Moda busca a individualização da aparência, a publicidade cria uma "personalidade" para a marca. O autor cita como exemplo o homem do cigarro Marlboro. Todo o conceito da marca está vinculado à imagem máscula e poderosa do cowboy.

Na concepção de uma peça publicitária, o stylist é fundamental, pois é quem caracteriza os personagens dentro da proposta comercial desejada. Nos comerciais de margarina, por exemplo, a intenção é ressaltar a qualidade de vida proporcionada pelo consumo de produtos saudáveis. Para isso, os personagens selecionados geralmente são um homem, uma mulher e uma criança, representando uma família feliz. Possuem aparência saudável e bem apessoada. Vestem roupas visualmente harmônicas e estão inseridos num cenário agradável e bem decorado que representa um cômodo da casa. Todos os detalhes de figurino, cenário e seleção de modelos são pensados para se adequarem à imagem do produto anunciado.

Neste campo de atuação, o figurinista ou advertising stylist é responsável pelo look dos modelos, a locação é realizada por um produtor de locação, a logística por um produtor executivo, a ambientação por um cenógrafo e assim sucessivamente. As campanhas publicitárias do mercado de Moda às vezes não possuem orçamento para uma equipe especializada, cabendo ao fashion stylist resolver os problemas de logística e criação da imagem. Em nossas entrevistas averiguamos, infelizmente, a falta de uma maior organização do próprio mercado de Moda e um reconhecimento da profissão do stylist[24].

2.2.3 A aparência do indivíduo

Passando de um universo macro para o universo pessoal, é possível observar que, no cotidiano, a aparência de um sujeito o qualifica, em primeira instância, como alguém confiável ou não. Isso acontece por uma demanda dos tempos atuais e de sua necessidade de processar rapidamente a informação num único olhar. O homem contemporâneo é bombardeado diariamente por enorme quantidade de informações, e esta realidade gera um rigor maior na seleção do que é importante, destinando uma análise mais superficial ao que não seja importante. Nesse contexto de fluxo veloz, as imagens são usadas como forma de leitura rápida. Portanto, a aparência traz um discurso, pois as roupas são, como diz AGUIAR (Op. cit.:09), "formas de comunicação não-verbal". Origem, profissão, gostos pessoais, desejos, classe social e até mesmo sutilezas psicológicas podem ser percebidas na composição de um visual. A maneira do indivíduo se apresentar tem ganhado tanta importância na sociedade contemporânea que a profissão de consultor de imagem ou personal stylist está em ascensão. A esse profissional cabe a tarefa de construir uma imagem para o cliente, agregando valor a sua personalidade, sempre em harmonia com valores e hábitos de vida.

Pelos diferentes exemplos citados acima, a elaboração de um "parecer" vai muito além da função estética. Sua finalidade é também a transmissão de valores sociais, morais ou de mercado assim como a afirmação de uma identidade.

2.2.4 Desfile de Moda

"Entende-se como desfile de moda uma apresentação de roupas e acessórios, realizada em data e horários pré-fixados pelo destinador, na qual um grupo de modelos caminha por aproximadamente 30 metros de passarela durante 20 minutos. Com trilha sonora especialmente criada para esse fim, elas exibem em torno de 75 looks a um público aglutinado em filas dispostas lateralmente em torno da passarela". GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:86).

A descrição acima traduz a estrutura básica de um desfile. De sua criação no século XIX até os dias atuais, o desfile preserva sua essência: corpos humanos cobertos por roupas circulando num espaço determinado. Mas ao longo de sua existência, sua dinâmica tem sofrido contínuas interferências e influências. De evento discreto a show espetacular, os desfiles já passearam por diferentes categorias.

Nesse passeio, a arte sempre cruzou os caminhos da Moda. Designers inspiram artistas, artistas inspiram designers. Nos desfiles, podemos observar a conexão com a arte em produções performáticas, que utilizam elementos próprios das artes, como instalações, para transmitirem seus conceitos. No século XXI, diferentes conexões entre esses dois territórios são constantemente exploradas e, portanto, cabe dizer que um desfile é também uma performance[25]

No caso dos desfiles de moda, a comunicação se dá por meio da passarela, usada para transmitir o conceito da marca, seu posicionamento de mercado e suas intenções. Por meio da composição das roupas em conjunção com a ambientação, casting e trilha sonora, um show é planejado com o objetivo de gerar notícia, identificação e desejo pelo novo. Em poucos minutos de passarela, a marca deve surpreender, encantar, provocar desejo, empatia e reconhecimento, que é a identificação com a personalidade da marca, sua assinatura.

Os desfiles de moda costumam ser o ápice da criação de um designer e geram farta mídia espontânea. As imagens são amplamente divulgadas e repetidas em diferentes meios de comunicação. Dentro da sala do desfile há um ritual de apresentação, onde música e ambientação contribuem para envolver o espectador e influenciar sua análise. Na mídia impressa ou eletrônica, a percepção do espectador se resume às imagens das roupas apresentadas e aos comentários dos jornalistas especializados, o que torna a composição dos looks quase tão importante quanto a criação do designer. Na mão de um stylist, uma calça deixa de ser simplesmente uma calça e pode adquirir facetas insuspeitas através da articulação com outras peças da coleção.

Afirmam GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:89): "os adornos acrescidos ao corpo adicionam a ele informações e ampliam os campos comunicativos". Para que essa comunicação possa fluir sem ruídos, ou seja, para que a mensagem da marca alcance eficientemente seu interlocutor, seja ele o consumidor final ou o jornalista especializado, o stylist precisa ter amplo conhecimento sobre a marca, o processo de criação, além de conhecer detalhadamente o público alvo.

2.2.4.1 Breve histórico dos desfiles

A origem dos desfiles remonta a meados do século XIX, quando modistas contavam com uma moça para mostrar a roupa à cliente. Gagelin, um comerciante de tecidos parisienses, utilizou-se de manequins vivas para mostrar seus xales. Segundo a historiadora inglesa EVANS (2002:33), em 1847 Gagelin solicitou ao inglês Charles Frederick Worth[26]que criasse vestidos para valorizar a apresentação de seus xales. Posteriormente, ao abrir seu próprio ateliê, Worth importou a idéia de utilizar manequins vivas que desfilavam suas criações.

Na década de 1930, a italiana Elsa Schiaparelli, radicada em Paris, foi a primeira a produzir coleções temáticas em desfiles espetaculares que faziam uso de muita luz, música, dança e brincadeiras. A década de 1940 também foi pontuada por desfiles espetaculares, sendo o desfile de Christian Dior, em 1947, o mais emblemático de todos.

A inglesa Mary Quant e o francês André Courrèges reivindicam a autoria da mini-saia segundo SEELING (Op. cit.: 368 e 393). Na década de 1960, em diferentes momentos, ambos apresentaram, cada um em seu país, um novo comprimento de saia e vestido que virou um grande sucesso entre os jovens. Além dessa coincidência, eles partilharam, involuntariamente, o mérito de terem apresentado desfiles que rompiam com os tradicionais padrões de apresentação. Quant e Courrèges conceberam desfiles, ao som de um ritmo batido em alto volume, em que as modelos desfilavam de modo solto, informal e alegre em contraposição à figura austera e fria exibida anteriormente. Quant também inseriu a idéia de styling ao apresentar na passarela modelos exibindo como acessórios faisões abatidos[27]

A ascensão dos designers de prêt-à-porter está, segundo EVANS (Op. cit.:57-59), diretamente ligada à origem dos desfiles espetaculares de hoje. Mary Quant "percebera que, a menos que dramatizasse a apresentação, suas criações simples se perderiam entre outras, mais elaboradas." Foi na década de 1960 que os desfiles tomaram o formato atual, e não são mais abertos ao público em apresentações diárias. São exclusivos para a imprensa e lojistas.

Paralelo aos desfiles-show, designers mais conceituais[28]como Issey Miyake, Martin Margiela e Hussein Chalayan, começaram a desenvolver desfiles com conceitos próximos à arte, utilizando, para isso, instalações arquitetônicas, performances e conceitos abstratos.

Desfiles como espetáculos alcançaram seu auge nas décadas de 1980 e 1990 quando designers como Thierry Mugler, Alexander McQueen, John Galliano e Gianni Versace criaram nas passarelas verdadeiros shows extravagantes. As superproduções eram organizadas por empresários do show business e traziam elementos comuns a esse meio, como efeitos especiais e cenários cinematográficos.

O início do século XXI traz consolidado o desfile como espetáculo comercial, mas há também a preocupação com a imagem e a identidade da marca. Mas e os desfiles no Brasil?

Segundo POLLINI (2007:66-72), a casa Canadá, situada no Rio de Janeiro dos anos 1950 foi uma das pioneiras a realizar desfiles promovidos pelas fábrica de tecidos, como a Bangu. No final dos anos 1950 início dos anos 1960 a Rhodia, também uma tecelagem decidiu promover as fibras sintéticas através dos desfiles organizados por Lívio Rangan. Os shows com participações de artistas plásticos como Volpi, músicos como Caetano Veloso e Zimbo Trio, atores como Walmor Chagas e Raul Cortez eram apresentados na Fenit já na cidade de São Paulo.

2.2.4.2 Calendário oficial da Moda no Brasil - SPFW

Para análise dos desfiles no Brasil foi realizado um recorte dos anos mais significativos dentro do interesse desse estudo, que abrange o início da década de 1990 até os dias atuais.

Os anos 1990 foram marcados pela abertura de mercado[29]proporcionada pela era Collor. Produtos importados inundaram o Brasil e abriram novas possibilidades de consumo, ao mesmo tempo em que se estabelece inédita concorrência com os produtos locais resultando em progresso para alguns e falência para outros.

A indústria têxtil sentiu fortemente a nova realidade e muitas fábricas fecharam, desencadeando crise no setor. Para GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:58), a crise da indústria têxtil gerou encolhimento de mercado e pouca perspectiva profissional. Além disso, impulsionou jovens designers autodidatas a buscarem novos nichos de mercado, vendendo suas criações aos clientes dos clubes noturnos que eles mesmos freqüentavam na cidade de São Paulo.

Este foi o início de um movimento que encontrou reciprocidade num mercado ávido por novas idéias. O sucesso dos jovens designers clubbers, que vendiam suas peças no cenário underground[30]chamou a atenção de empreendedores.

"... veio uma era de megadesfiles, organizados por produtores como Paulo Borges e Carlos Pazetto, para membros do Grupo de Moda São Paulo. Afinal, essa era a metrópole em que os clubbers desfilavam seu visual inusitado e onde também se localizava a indústria têxtil." GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:59).

Em 1994, na cidade de São Paulo, aconteceu o Phytoervas Fashion organizado em duas edições anuais fixas (verão e inverno), reunindo jovens designers desconhecidos do cenário da Moda daquela época. Ao todo, o Phytoervas realizou sete edições. As primeiras tiveram direção de Paulo Borges e, nas últimas, Betty Prado (modelo internacionalmente reconhecida) assumiu o comando, de acordo com BORGES (Op. cit.:953). A parceria entre Paulo Borges, produtor do evento, e Cristiana Arcangeli, proprietária da marca de cosméticos Phytoervas e patrocinadora do evento, acabou após a quarta edição.

Após o rompimento, Paulo Borges fez uma parceria em 1996 com o Shopping Morumbi, que passa dar nome a um novo evento. O Morumbi Fashion Brasil surgiu da intenção de reunir todas as marcas num evento só e estabelecer um Calendário Oficial da Moda Brasileira. Em 2000, sem o patrocínio do shopping, consagra-se o São Paulo Fashion Week (SPFW) com foco no mercado internacional e uma infra-estrutura muito mais profissional.

2.2.4.3 Eventos paralelos de desfiles

A Semana de Moda / Casa dos Criadores nasceu em paralelo ao Phytoervas Fashion, fruto de uma regra desse evento que limitava a participação dos designers a apenas três edições. "Foi uma iniciativa dos próprios criadores de reunir, num acontecimento único, de periodicidade anual, aqueles cujo trabalho não fora selecionado para compor o elenco do Phytoervas Fashion." GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:61).

O Projeto Amni Hot Spot surgiu da idéia dos organizadores do SPFW de desenvolverem um evento menor que pudesse descobrir novos talentos. Em 2001, foi realizada a primeira edição, tendo a Rhodia/Amni como principal patrocinadora. A idéia não era somente a exposição através dos desfiles de moda e sim proporcionar aos jovens designers selecionados uma infra-estrutura e suporte técnico para produção e comercialização das criações, segundo BORGES (Op. cit.:998).

2.3 Espetáculos da moda

Sonhos de consumo se materializam nas passarelas dos desfiles, o grande show da moda na "Sociedade do Espetáculo". Por meio dos desfiles é construído um tempo espetacular, distante da realidade onde, segundo BÜEST (2006:73), se legitimam as falsas necessidades impostas pelo espetáculo: últimas tendências em estilo, roupa e até mesmo pessoas (como as top models e celebridades em destaque). As temporadas de desfile apresentam ao espectador de hoje uma variedade[31]de códigos de estilo, comportamentos e atitudes como proposta a ser inserida no cotidiano. É comum encontrarmos rótulos de estilo como "surf-noir", "death-metal" e "carnaval expressionista"[32]. Os desfiles oferecem, assim, uma interpretação singular de uma atividade social idealizada. Nos desfiles de moda "o consumidor real torna-se o consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão efetivamente real, e o espetáculo é sua manifestação geral." DEBORD (Op. cit.:33).

No São Paulo Fashion Week, cerca de 50 marcas desfilam, cada qual com um ou vários conceitos e uma promessa divulgados mundo afora pelos meios de comunicação. Mulheres modernas, ousadas, tecnológicas, homens esportistas, executivos elegantes. Roupas perfeitas que oferecem a esperança de uma vida perfeita e a promessa da felicidade ao alcance de um talão de cheques. Segundo DEBORD (Op. cit.:106), as imagens são consumidas como sendo momentos da vida real, mas nada mais são do que a vida "realmente espetacular".

Por trás da fábrica de fantasias estão os construtores de imagem, os stylists, que utilizam todos recursos que afetam os cinco sentidos do observador para criar um ambiente de sonho e convencimento. O espetáculo, muitas vezes, remete ao teatro, mas é ainda melhor, pois alguns dos figurinos exibidos no "palco" podem ser levados para casa e junto com eles a esperança de viver um novo personagem, escolhido entre as diversas propostas híbridas dos designers ou impostas pelo próprio sistema de Moda, em sua própria vida.

3. Stylist na construção dos desfiles

Neste capítulo, observamos a relevância do stylist dentro da construção do desfile e a capacidade desse profissional em utilizar recursos como ambientação, trilha sonora, casting, edição de looks e coreografia. Criando um show suficientemente impactante, ele atinge diferentes objetivos como reconhecimento, desejo de compra e notoriedade por meio da mídia. Os elementos constituintes de um desfile, citados acima, e sua importância dentro do conjunto serão apresentados em detalhes. Analisamos casos específicos onde estes elementos se destacam e despertam as ordens sensoriais do observador, desencadeando efeitos de sentido.

3.1 O stylist como criador de imagens e significados

O stylist de desfile é um construtor de imagens e aglutinador de elementos cujo somatório se propõe a emitir o conceito da marca. Como um maestro que harmoniza todos os instrumentos de uma orquestra, ele coordena ambientação, trilha sonora, casting, edição de looks e coreografia para que estejam em harmonia com a imagem e a mensagem que a marca deseja transmitir. Essa coordenação é a base para um desfile coeso e tecnicamente correto. Mas o objetivo não se limita à funcionalidade do show, abrange também a articulação dos itens mencionados acima, visando criar efeitos surpreendentes que gerem significados para o observador[33]Um desfile de sucesso é aquele que consegue estabelecer empatia com seu espectador, seja por meio do espetáculo em si ou por identificação de valores em comum.

Atrair a atenção da mídia também é um objetivo considerado, pois os meios de comunicação divulgam repetidamente as imagens dos desfiles fazendo com que elas se destaquem entre tantas outras imagens que assediam o espectador/enunciatário[34]Essa repetição acaba consolidando o nome da marca e cria um diferencial. Para melhor exemplificar: no SPFW de junho de 2007, em sete dias foram apresentados 49 desfiles para um seleto número de pessoas, entre eles os jornalistas de moda, convidados de honra. Não é um evento de massa, e apenas uma pequena parcela da população tem acesso aos desfiles. Com a grande quantidade de apresentações, às vezes é difícil guardar o que é visto. Nesse contexto, criar um espetáculo marcante a ponto de virar notícia ajuda a divulgar a marca.

É nessa capacidade de editar a coleção, a ponto de criar imagens surpreendentes que se comuniquem com o enunciatário por meio de reconhecimento e empatia, que reside o talento do stylist. Em um contemporâneo sobrecarregado por informações visuais, atrair a atenção para uma marca, produto ou pessoa é cada vez mais um exercício de criatividade ilimitada. BAITELLO (Op. cit.:96) afirma que vivemos numa era de proliferação indiscriminada e compulsiva de imagens. Esse fenômeno, segundo ele, causa um paradoxo: quanto mais imagens há para se ver, menor é a capacidade humana para enxergá-las, o que desencadeia um movimento desesperado de busca pela visibilidade a qualquer custo.

O desafio do stylist é considerável. Ele deve divulgar corretamente o conceito da marca, formar vínculos comunicativos com o público e também construir imagens que superem as outras. Este desafio se torna maior na medida em que cresce a profissionalização dos desfiles de moda. A maior divulgação do evento e o potencial de repercussão dos desfiles, proporcionados pela cobertura dos meios de comunicação, diminuiu o amadorismo e abriu espaço para talentosos profissionais que se especializaram nos novos nichos de mercado como, por exemplo, a profissão de stylist. Para lidar com a demanda de criatividade e constante superação é necessário que o profissional domine todas as sutilezas de um desfile.

Um desfile é um momento singular. Segundo GARCIA e MIRANDA (Op. cit.:86) é "uma apresentação única, que se constrói em ato e não poderá jamais se repetir tal e qual". A luz, o ambiente e a música criam um ritual da moda onde todos os sentidos do observador são aguçados e solicitados a participar. Uma oportunidade especial que o stylist procura aproveitar ao máximo, buscando a melhor maneira de se comunicar com o público e transmitir o conceito da marca. Segundo BAITELLO (Op. cit.:70), "os processos comunicativos são construções de vínculos (...) a força de uma imagem provém de seu lastro de referências a outras tantas imagens". Para responder à altura do desafio de montar um desfile eficiente, no sentido de reconhecimento e repercussão, o stylist precisa ter uma ampla gama de informações que extrapolam o território da Moda. Conexões com a arte, arquitetura, música e literatura são ferramentas imprescindíveis na bagagem do profissional. Noções do quadro sócio-econômico e cultural ajudam a criar os vínculos necessários para um diálogo com o enunciatário e, por conseguinte, conquistar um espaço em sua memória.

Nos desfiles, a importância de um stylist passou a ser tão grande que alguns profissionais interferem até mesmo no papel criador do designer[35]A maneira de expor a roupa na passarela passou a ser tão importante quanto a criação, pois interfere na maneira que é percebida e divulgada. Além disso, os acessórios, composições e sobreposições que o stylist adiciona ao look, acrescentam informações fundamentais sobre a marca possibilitando ampliar a comunicação.

A seguir, abordaremos cinco dos elementos constituintes de um desfile a fim de analisar a interferência do stylist em cada um deles e observar o diferencial que esta interferência agregou ao show. Escolhemos estes elementos por acreditarmos serem eles de maior relevância e impacto na construção do conjunto. As entrevistas concedidas pelos stylists Daniel Ueda, Mauricio Ianês e Paulo Martinez ressaltam os elementos e suas interferências. Além do designer e do stylist, participam do projeto dos desfiles os profissionais responsáveis por cada área, com os quais as estratégias são discutidas.

3.2 A ambientação e cenografia da Ellus, inverno de 2006

Este elemento chamado de ambientação é o local em que o evento irá se realizar, podendo ser uma locação específica já existente, como as margens do lago do parque Ibirapuera (onde ocorreu o desfile da Ellus do verão de 2007, por exemplo), ou a construção de um local cênico especial para o desfile. No SPFW, abrigado pelo pavilhão da Bienal, MAM e recentemente pelo Shopping Iguatemi, são organizados cinco espaços, chamados de salas, onde as performances ocorrem. Tendo esta estrutura física, oferecida pela organização do evento, a maioria dos desfiles acontecem nessas salas, utilizando-se, portanto, da cenografia como elemento de ambientação.

"Cenografia é um ato criativo (...) que tem a priori a intenção de organizar visualmente o lugar teatral para que nele se estabeleça a relação cena/público. O cenário, como produto desse ato criativo, tem que traduzir esta intenção e, portanto, só pode ser analisado dentro do contexto específico da montagem teatral encenada." MANTOVANI (1989:12)

A definição da autora fortalece a criação dos vínculos entre a cena e a apresentação como um todo, não se resumindo apenas à montagem cenográfica. Modelos, trilha, roupas e cenário compõem a cena do desfile.

Como exemplo escolhido para análise, temos o desfile da coleção de inverno 2006 da Ellus, realizado em 19 de janeiro do mesmo ano, no prédio da Bienal. Este exemplo foi escolhido pelo seu forte apelo teatral. O cenário teve igual ou maior relevância que a própria coleção apresentada.

As dimensões atípicas do espaço onde aconteceu o desfile dirigido por Bia Lessa[36]reforçaram o efeito de sentido de espetáculo e criaram antecipadamente um sentimento de expectativa. Enormes cortinas negras se abriram em um amplo palco esfumaçado, onde predominava a tonalidade avermelhada proporcionada pelo jogo de luz. A figura solitária de um jovem empunhando uma guitarra apareceu no palco, seguido de sua banda, Wry[37]em forte alusão ao universo roqueiro. A trilha sonora era ao vivo, como num show de rock. Em seguida, sob flocos de neve artificial referenciando a estação invernal, surgiram duas figuras masculinas trajando roupas escuras e empunhando uma grande quantidade de latinhas de refrigerante amarradas umas às outras, que produziam barulho quando chacoalhadas. Somente o contorno dos corpos era nítido, a penumbra do ambiente não deixava perceber qualquer detalhe da roupa. As figuras envoltas em sombras e o inusitado acessório composto por um "chocalho de latinhas" reforçavam a idéia de que as roupas eram coadjuvantes na estratégia discursiva com foco no espetacular.

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Fig. 8: A banda Wry. Fotos: Charles Naseh.Fonte: site Chic.

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Fig. 9: Letícia Birkheuer com o primeiro look

do desfile. Fotos: Silvia Boriello. Fonte: site Erika Palomino.

Quando o palco se iluminou, as pessoas imediatamente se colocaram em estado de alerta, pois o jogo de luz anunciava um acontecimento. Nesse momento, entrou a principal modelo, Letícia Birkheuer – atriz da novela Belíssima da Rede Globo, trajando um curto vestido negro rodado acompanhado de meias escuras e botas de cano curto, reforçando a estética gótica predominante no desfile. A neve artificial continuou caindo e, no chão, a fumaça de gelo seco reforçava o clima teatral. Sucederam a essa primeira entrada modelos vestidos em diferentes looks, predominantemente pretos ou em tons pastéis.

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De uma abertura no chão do palco surgiram pessoas segurando ramalhetes de girassóis sugerindo um pequeno parêntese, um toque de cor no clima invernal. Neste momento, as roupas apresentaram estamparia mais descontraída, surgiram babados em profusão e idéias bem-humoradas para os looks masculinos. Os girassóis deixaram o palco e foram substituídos por mulheres gigantes equilibrando-se em pernas de pau e trajando fluidos vestidos, que iam até o chão. Com esse forte elemento teatral circense, o desfile foi acentuando seu conceito de espetáculo. Os looks apresentavam pequenas variações de cor, padronagem e estilo em conformidade com as variações no cenário. Para acompanhar as mulheres gigantes, os modelos apresentaram roupas mais dramáticas, sobreposições, texturas inusitadas e recortes. Por fim, a principal modelo, trajando um inesperado casaco feito de penas negras, se destacou da multidão. Com as mãos na cintura e um olhar de águia ela personifica o próprio pássaro.

Ao apresentar um styling de desfile que transformou a passarela em enorme palco para um show espetacular e fez conexões com o território do rock, do circo e do teatro, o stylist procurou transmitir o conceito de vanguarda da Ellus, marca voltada a um público jovem, ou com espírito jovem, que aprecia certa dose de ousadia e autenticidade. Utilizaram textos de diversas culturas para agregar valor à roupa, associando-a ao conceito de contemporaneidade que demanda novidades constantes e troca de informações.

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Fig. 12: A apoteose do desfile. Fotos: Charles Naseh. Fonte: site Chic.

Um diferencial observado no styling foi o seu forte apelo lúdico. O cenário e os elementos teatrais acrescentaram ao desfile uma aura de magia e convidaram o espectador a adentrar no universo fantástico. A escolha da estratégia discursiva buscou sair do lugar comum dos desfiles, dimensionando seu impacto no observador. Para isso, criou um intrigante enredo misturando seres fantásticos e modelos vestindo looks que pareciam ter saído de narrativas variadas: a roqueira, a mulher pássaro, o dandy[38]moderno. O cenário, os figurantes fantasiados e a banda de rock formaram um conjunto tão fundamental no desfile que dividiram a atenção com a coleção apresentada. O desfile cumpriu suas metas, uma vez que gerou farta mídia espontânea, surpreendeu e encantou o enunciatário e reforçou o conceito de uma marca de vanguarda.

Daniel Ueda, stylist responsável por esse desfile, disse em entrevista que a inspiração para a construção de um desfile surge de diferentes fontes. Um grupo de rock, uma poesia, um transeunte na rua, qualquer coisa ou pessoa pode desencadear o processo criativo. Segundo ele, cabe ao stylist "amarrar" todas essas idéias dentro da imagem da marca e do diálogo que ela deseja estabelecer com o público em cada desfile específico.

3.3 O casting de Karlla Girotto para o verão 2007

Casting vem do verbo to cast, mais uma apropriação do termo em inglês usado freqüentemente no mercado de Moda. Segundo o dicionário Oxford, "é a seleção de um particular ator para uma peça, filme, etc". Para os desfiles de moda, seria a seleção do suporte para a apresentação do vestuário em si. Tal seleção é primordial na interpretação do próprio vestuário e, por conseqüência, dos efeitos de sentido do espetáculo.

Entendemos o casting como elemento essencial do desfile, dividido em duas categorias:

  •  - Casting vivo, onde são selecionados seres vivos, como pessoas ou animais, que vestem os looks das passarelas.

  •  - Casting inanimado são os suportes não convencionais que literalmente vestem as peças apresentadas no desfile. Tais suportes normalmente são construídos exclusivamente para tal apresentação. Este tipo de casting pode ser considerado um elemento cênico, porém se destaca do cenário por ser o suporte da coleção em si e de sua criação.

Foi escolhido para análise o desfile de verão 2006/2007, realizado em 16 de julho de 2006, de Karlla Girotto, por apresentar um casting fora dos padrões comuns ao desfiles. Esses padrões se caracterizam pela escolha de um tipo físico predominantemente magro, alto e de pele clara. Girotto optou por substituir modelos femininos por balões de gás, acoplados a cabides que traziam as roupas da coleção e eram conduzidos por modelos masculinos. Sendo assim, a opção de casting feminino foi pela ausência de casting. O masculino era composto por uma seleção de modelos longilíneos, dentro dos padrões estéticos do mercado da Moda.

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Fig.13 e 14: O primeiro modelo militar entrando com os balões e os modelos masculinos posicionados anexando os vestidos flutuantes nas pedras. Fotos: Daniel Pinheiro. Fonte: site Erika Palomino.

Numa ensolarada tarde de domingo, a designer Karlla Girotto convidou o público para uma performance no parque, sua ambientação de locação. Acostumados aos desfiles realizados em salas fechadas, o público foi surpreendido pela locação escolhida: as escadarias laterais do prédio da Bienal no parque Ibirapuera. Sapatos e pedras, como elementos cênicos, posicionados nos degraus, denunciavam um show fora dos padrões. Modelos masculinos apresentando looks, cuja rigidez lembrava uniformes militares[39]entraram carregando balões amarrados às roupas femininas. Após curto percurso, cada um se posicionou em um degrau pré-determinado e prendeu o balão na pedra ali localizada. Os balões ficaram flutuando sobre os modelos estáticos, enquanto as roupas se balançavam ao vento em surpreendente efeito de movimentação.

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Fig.15 e 16: Imagens do casting inanimado re-significador nos looks flutuantes da coleção de vestidos. Fotos: Daniel Pinheiro. Fonte: site Erika Palomino.

Ao optar por apresentar sua coleção amarrada a balões de gás, Girotto, stylist de seus próprios desfiles, contesta através do casting, formado por balões de gás, a ditadura da magreza, e enfoca a beleza da roupa capaz de vestir a variedade de corpos da vida real. Com este recurso de styling, a designer questiona os padrões estéticos do corpo sugeridos pela própria indústria da Moda e da beleza. A concepção do desfile coloca em pauta as regras vigentes em que o belo é sinônimo de juventude e magreza.

O nome da coleção, "De verdade", se deve ao fato das roupas apresentadas serem de numerações 44 e 50. A designer inverte no texto[40]ou seja, no sentido da vestimenta, o conceito de pesado ao flutuar roupas de tamanhos grandes em contraposição ao conceito de leve. As roupas masculinas traziam formantes plásticos como tecido, corte e cor, reforçando o plano de expressão que fortalece o sentido de uniforme, associado a uma rigidez mais pesada. Carol Garcia, em sua dissertação de mestrado, expõe de maneira sucinta a idéia da valorização dos diferentes corpos físicos:

"... o enunciador rompe assim com o modismo anterior, optando por uma aderência à naturalidade da figura humana, um corpo sem artifícios. É possível ser gordo, magro, alto ou baixo, velho ou moço, já que a roupa é feita para se adaptar a essas liberdades". GERALDI (2002:98).

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Fig.17 e 18: Na primeira o encerramento do desfile; na segunda um dos balões se soltou. Em palestra na UAM, em 06 de novembro de 2006, a designer Karlla Girotto afirmou ser obra do acaso. Fotos Daniel Pinheiro. Fonte: site Erika Palomino.

Neste desfile, o casting inanimado, ou a ausência dele, mudou a percepção das roupas apresentadas. No plano de conteúdo, a metáfora com a leveza não teria sido possível caso a escolha fosse baseada apenas em modelos não-convencionais, tipos físicos comuns que fogem ao rigoroso padrão de medidas exigidos nos desfiles. Optando por pessoas comuns desfilando a coleção, Girotto estaria contestando o sistema, mas não teria conseguido ressaltar o conceito de leveza associado aos balões. Ao mostrar vestidos "flutuantes", confeccionados em medidas extragrandes[41]ela convidou o público a rever esse conceito. Mostrou que o leve não é intrínseco ao magro e sim à harmonia das formas.

Utilizando-se da ausência do casting feminino, Karlla Girotto criou impacto e promoveu um desfile diferenciado. Atraiu a atenção da mídia, reforçou o caráter autêntico de sua marca, despertou questionamentos e transmitiu a mensagem de que a beleza pode se apresentar em diferentes formas.

3.4 A coreografia re-significativa de Jum Nakao para o verão 2005

Coreografia, segundo o Dicionário digital HOUAISS (2007) "é a arte de conceber os movimentos e passos que vêm compor uma determinada dança". Este elemento, comumente banalizado por parecer um simples caminhar na passarela é cuidadosamente coreografado: por onde os modelos entram na passarela, por onde saem, onde devem parar para serem fotografados, a forma de caminhar solicitada pela trilha sonora e, principalmente, o final do desfile, quando os modelos se posicionam de uma determinada maneira para encerrar a performance. Este posicionamento final coreografado pode re-significar todo o desfile apresentado.

Para análise do elemento coreografia foi escolhido o desfile da coleção de verão 2004/2005, apresentada em 17 de junho de 2004, do designer Jum Nakao. Embora tenha apresentado elementos excepcionais em outras categorias constituintes do desfile, a coreografia representou sua apoteose.

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Fig.19 e 20: Looks de papel da coleção de Jum Nakao para o verão de 2005. Fotos: Silvia Boriello. Fonte: Site: Erika Palomino.

Na escuridão da sala, a passarela de desfile era iluminada por luzes acopladas a esculturas de papel que lembravam bolhas de sabão amontoadas umas às outras. Das sombras surgiu uma intrigante figura deslizando em movimentos contidos. Cabeça coberta por uma rígida peruca negra, braços e pernas vestidos por malha preta, ela parecia mais boneca do que gente, era o Playmobil[42]Ao ser iluminada, provocou burburinhos na platéia ao constatarem que seu vestido, cheio de detalhes complexos, era feito de papel vegetal. A ela se sucederam outras modelos trajando indumentárias construídas com o mesmo requinte de detalhes, que eram mais esculturas de papel que propriamente roupas. Uma a uma, sempre com andar lento e cauteloso, as modelos apresentaram diferentes looks como vestidos de mangas amplas, golas elaboradas e crinolinas.

NAKAO (2005:12), em seu livro A Costura do Invisível, disse ter se inspirado nas roupas do século XIX, um período em que a moda era "extremamente elaborada e preciosa, tanto no volume quanto nas texturas". Ao final da apresentação, todas voltaram à passarela e se perfilaram, mostrando o conjunto da preciosa coleção. No momento seguinte, para completa estupefação da platéia, as modelos começaram a rasgar suas roupas.

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Antes mesmo do momento final, o desfile já tinha alcançado grande sucesso junto ao público devido à inusitada manipulação dos formantes plásticos: matérico (que trouxe o papel à condição de material nobre), eidéticos (trabalhou com formas insuspeitas construídas com papel de delicada gramatura), e topológico (fez uso harmonioso dos formantes citados). A concepção de uma coleção inteira construída em papel já foi suficiente para engendrar um efeito de sentido de singularidade, desdobrado em sentimento de surpresa e assombro.

As modelos entram em seqüência para o final do desfile formando uma linha sinuosa perante a passarela. As luzes se apagam e apenas as luzes avermelhadas das esculturas de papel do cenário piscam. A trilha sonora é interrompida e, ao som de trovoadas, as modelos rasgaram as roupas-escultura. Neste momento, o styling, através da coreografia, foi re-significado, propondo outros efeitos de sentido ao show. Na performance final, a violência dos gestos, rasgando, picando e destruindo, contrastou com a delicadeza das roupas. Os últimos minutos produziram um novo discurso narrativo.

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KALIL, ao escrever sobre o desfile de Jum Nakao, em seu site Chic, afirmou que ele não fez um desfile de moda, e sim um desfile "sobre a moda". Nakao trouxe à passarela elementos caros ao meio, como a necessidade constante de apresentar novidades e causar encantamento num mundo onde as novidades se sucedem vertiginosamente. Em seu livro, o designer deixa clara a intenção de extrapolar o mundo fechado da Moda, testar a leveza de novos elementos e desconectar-se da realidade. Inserir o "vago", pois incertezas permitem o exercício da individualidade, já que "o que é subentendido torna o observador ao mesmo tempo cúmplice da intenção e sujeito da obra". NAKAO (Op. cit.:12).

A singularidade dos looks questiona a massificação do visual, ressaltada pela reprodutibilidade das bonecas Playmobil. O papel, material frágil, põe em debate a transitoriedade da estética e a obrigação das tendências. O desfecho surpreendente enfatizou os significados do criador: a volatilidade da Moda e a necessidade de estarmos abertos ao novo e a seus estranhamentos. Quando destrói sua obra prima, ele põe em destaque a efemeridade da Moda, que tudo destina ao esquecimento.

Jum Nakao é um designer que vai a contrapelo do sistema e lembra-nos o mito de Sísifo, condenado pelos deuses a empurrar rochedo acima uma pedra que, ao alcançar o topo, caía novamente. Os deuses acreditavam que não há castigo pior que um trabalho inútil e sem esperança. Para Albert Camus[43]Sísifo é o herói do absurdo, que responde ao mundo de maneira subversiva a fim de criar "sua própria realidade". Belting, em análise do texto de Camus, faz uma afirmação que achamos adequada a Jum Nakao em sua decisão de contestar o sistema através de sua arte:

"Para Camus ele é a figura símbolo de uma revolta que expressa na criação artística a experiência de um mundo absurdo. Sísifo sabe sobre a inutilidade de sua revolta, e só esse saber lhe restitui a autonomia pessoal que, do contrário, ele perderia ou teria perdido. Os artistas fazem um gesto de auto-afirmação, embora saibam que eles nada alterarão no mundo; mas eles podem se conscientizar de seu estado". BELTING (2004:42-48)

Todo o styling do desfile de Jum Nakao colaborou para transmitir a mensagem inicial de que a Moda pode dialogar com a arte em fina harmonia, como neste espetáculo. Se o desfile tivesse terminado com as modelos perfiladas na passarela, o conceito da marca seria impregnada pelo preciosismo e ineditismo do trabalho e sua possível associação com a arte. Sua performance contestou, por meio do papel branco, a Moda em diversos aspectos. Com a destruição da coleção, a mensagem se volta ao questionamento dos padrões vigentes e à decisão de não-subserviência a esse padrão. Poucas vezes uma coreografia causou tanto impacto num desfile quanto o ato de rasgar as roupas de papel. No final, certos de que dificilmente viveriam experiência similar àquela, o público foi à passarela para pegar o que sobrou das criações, assim como também o fez uma das autoras.

Partes: 1, 2, 3


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