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A causa de pedir e os interesses individuais homogêneos (página 2)

Diógenes Faria de Carvalho
Partes: 1, 2, 3

Entretanto, essa dicotomia, que existe em todos os países de tradição romana do Direito, passou a sofrer crítica muito acentuada, principalmente nestas três últimas décadas. Em primeiro lugar, porque hoje a expressão interesse público tornou-se equívoca, quando passou a ser utilizada para alcançar também os chamados interesses sociais, os interesses indisponíveis do indivíduo e da coletividade, e até os interesses coletivos, os interesses difusos etc. O próprio legislador não raro abandona o conceito de interesse público como interesse do Estado e passa a identificá-lo com o bem geral, ou seja, o interesse geral da coletividade ou o interesse da coletividade como um todo. Em segundo lugar, porque , nos últimos anos, tem-se reconhecido que existe uma categoria intermediária de interesses que, embora não sejam propriamente estatais, são mais que meramente individuais, porque são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas, como os moradores de uma região quanto a questões ambientais comuns, ou os consumidores de um produto quanto à qualidade ou ao preço dessa mercadoria.

Especialmente depois de 1974, a partir dos trabalhos e conferências de Mauro Capelletti, surgiu a exata consciência de que os interesses de grupos apresentavam peculiaridades: como cuidar da representação ou da substituição processual do grupo lesado? Como estender a coisa julgada para além das partes do processo? Como repartir o produto da indenização entre lesados indetermináveis? Como assegurar a presença de todo o grupo nos processos coletivos para decisão e composição de tais conflitos intersubjetivos?

Todas essas dificuldades estavam a recomendar que os interesses de grupos alcançasse uma disciplina processual própria, para sua adequada defesa em juízo.

No Brasil, a defesa dos interesses de grupos começou a ser sistematizada com o advento da Lei n. 7.347/85 - Lei de Ação Civil Pública (LACP), e, em seguida, com a Lei n. 8.078/90 - Código de Defesa do Consumidor (CDC), que distinguiu os interesses transindividuais em difusos, coletivos em sentido estrito, e individuais homogêneos.

2.2. INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

Nem sempre os governantes fazem o melhor para a coletividade: políticas econômicas e sociais ruinosas, guerras, desastres fiscais, decisões equivocadas, malbaratamento dos recursos públicos e outras tantas ações daninhas não raro contrapõem governantes e governados, Estado e indivíduos.

Como o interesse do Estado ou dos governantes não coincide necessariamente com o bem geral da coletividade, Renato Alessi[1] entendeu oportuno distinguir o interesse público primário do interesse público secundário; com efeito, em suas decisões, nem sempre o governante atende ao real interesse da comunidade.

O interesse público primário é o interesse social, o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo.

A distinção de Alessi permite evidenciar, portanto, que nem sempre coincidem o interesse público primário e o secundário. Nesse sentido, o interesse público primário pode ser identificado com o interesse social, o interesse da sociedade ou da coletividade, e até mesmo com os mais autênticos interesses difusos.

Partindo da constatação de que a sociedade atual é cada vez mais complexa e fragmentada, pois os interesses de grupos se contrapõem de forma acentuada, alguns doutrinadores, mais recentemente, negam que exista um único bem comum. Assim, exemplifica Hugo Nigro Mazzilli[2], instalar uma fábrica numa cidade pode ser um grande benefício social no que diz respeito à geração de empregos diretos e indiretos, à arrecadação de tributos e à vida econômica do lugar, mas, ao mesmo tempo, pode trazer sérios danos ao meio ambiente na região, dependendo da atividade a ser desenvolvida.

Sem negar, porém, o caráter da conflituosidade, normalmente inato na discussão dos interesses transindividuais, cremos, porém, na supremacia da noção do bem comum, ou seja, do interesse público primário. Assim, no exemplo acima, a solução exigida pelo bem geral consiste em instalar a fábrica e, ao mesmo tempo, respeitar o meio ambiente, ainda que com isso, estejamos a não agradar integralmente, ou a desagradar preponderantemente a todos os grupos mais ativamente envolvidos na controvérsia.

2.3          INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS E SUA TUTELA COLETIVA

Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, existem os interesses transindividuais, os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. São interesses que excedem o ámbito estritamente individual, mas não chegam a constituir interesse público.

Sob o aspecto processual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo, não é apenas, porém, o fato de serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos pela mesma relação jurídica ou fática, mas, mais do que isso, é a circunstáncia de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à justiça seja substituído por um processo coletivo, que não apenas deve ser apto a evitar decisões contraditórias como ainda conduz a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido de uma só vez, em proveito de todo o grupo lesado.

Atendendo a essa realidade, e procurando melhor sistematizar a defesa dos interesses transindividuais que já tinha sido iniciada pela Lei de Ação Civil Pública, o Código de Defesa do Consumidor passou a distingui-los segundo sua origem:

a)                            Se o que une interessados determináveis, com interesses divisíveis, é a origem comum da lesão, temos interesses individuais homogêneos;

b)                            Se o que une interessados determináveis é a circunstáncia de compartilharem a mesma relação jurídica indivisível, temos interesses coletivos em sentido estrito;

c)                            Se o que une interessados indetermináveis é a mesma situação de fato, mas o dano é individualmente indivisível, temos interesses difusos.

Há, pois, interesses que envolvem uma categoria determinável de pessoas, como os interesses individuais homogêneos e os interesses coletivos; outros, são compartilhados por grupo indeterminável de indivíduos ou por grupo cujos integrantes são de difícil ou praticamente impossível determinação, como nos interesses difusos.

Todos os interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas merecem tutela coletiva para acesso à justiça, e não apenas tutela individual.

A tutela coletiva caracteriza-se por dois fatores:

a)                              Na tutela coletiva, estabelece-se uma controvérsia sobre interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas, enquanto, nos conflitos coletivos, o objeto da lide são interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, já, nos conflitos individuais, de regra a controvérsia cinge-se a interesses propriamente individuais;

b)                              Na tutela coletiva, é freqüente a conflituosidade entre os próprios grupos envolvidos, enquanto, nos conflitos tipicamente individuais, a lide se estabelece entre autor e réu, ainda que agindo em conjunto com litisconsortes, já nos conflitos coletivos, temos, não raro, grupos, categorias ou classes de pessoas com pretensões colidentes entre si, como as de um grupo que, ao invocar o direito ao meio ambiente sadio, deseje o fechamento de uma fábrica, e as de outro grupo de pessoas que dependam, direta ou indiretamente, da manutenção dos respectivos empregos ou da continuidade da produção industrial, para sua própria subsistência;

c)                              A defesa judicial coletiva faz-se por meio de legitimação extraordinária, enquanto, nos conflitos individuais, aquele que pede a prestação jurisdicional é, de regra, quem invoca a titularidade do direito a ser defendido, já, nos conflitos coletivos, o autor da ação civil pública ou coletiva defende mais do que o direito próprio à reintegração da situação jurídica violada, pois também e especialmente está a defender interesses individuais alheios, não raro até mesmo divisíveis, os quais são compartilhados por grupo, classe ou categoria de pessoas;

d)                              Na tutela coletiva, a destinação do produto da indenização normalmente é especial, enquanto, nas ações civis públicas ou coletivas que versem interesses difusos e coletivos, o produto da indenização vai para um fundo fluído, de utilização flexível na reparação do interesse lesado, já nas ações individuais, o produto da indenização destina-se diretamente aos lesados, assim como ocorre, por exceção, na defesa coletiva de interesses individuais homogêneos;

e)                              Na tutela coletiva, como os co-legitimados ativos para a ação civil pública ou coletiva não são titulares dos interesses transindividuais objetivados na lide, é necessário que a imutabilidade do decisum ultrapasse os limites das partes processuais (coisa julgada erga omnes), ao contrário do que ocorre com a coisa julgada nas ações tipicamente individuais (onde a imutabilidade do dispositivo fica restrita às partes do Processo);

f)                               Na tutela coletiva, prevalecem os princípios de economia processual, (enquanto, na tutela coletiva, discute-se numa só ação o direito de todo o grupo, classe ou categoria de pessoas, já, na defesa individual, as ações judiciais dos lesados ficam pulverizadas, o que normalmente enseja julgamentos contraditórios, com grande desprestígio para a administração da Justiça, pois indivíduos em idêntica situação fática e jurídica acabam recebendo soluções díspares; essas incoerências, aliadas às despesas do processo, levam muitos lesados a abandonarem a defesa de seu direito e desistirem do acesso individual à jurisdição) .

2.4. CONCEITO DE INTERESSES DIFUSOS

Difusos, como conceitua o CDC, são interesses ou direitos "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstáncias de fato".[3] Os interesses difusos compreendem grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático preciso. São como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de pessoas indetermináveis, unidas por pontos conexos.

Advirta-se, porém, que, embora o CDC se refira a ser uma situação fática o elo comum entre os lesados que comungam o mesmo interesse difuso, é evidente que essa relação fática subordina-se, também, a uma relação jurídica; entretanto, no caso dos interesses difusos, a lesão ao grupo não decorrerá da relação jurídica em si, mas sim da situação fática resultante. Assim, citando exemplo de Hugo Nigro Mazzilli[4], um dano ambiental que ocorra numa região envolve tanto uma situação fática comum como uma relação jurídica que incida sobre a hipótese; mas o grupo lesado compreende apenas os moradores da região atingida e, no caso, este será o elo fático que caracterizará o interesse difuso do grupo. Tomemos outro exemplo: uma propaganda enganosa pela televisão envolve, sem dúvida alguma, questões fáticas e jurídicas; contudo, o que reúne o grupo para fins de proteção difusa é o fato do acesso efetivo ou potencial à propaganda enganosa.

Há interesses difusos tão abrangentes que chegam a coincidir com o interesse público, como o meio ambiente; menos abrangentes que o interesse público, por dizerem respeito a um grupo disperso, mas que não chegam a confundir-se com o interesse geral da coletividade, como o dos consumidores de um produto; em conflito com o interesse da coletividade como um todo, como os interesses dos trabalhadores na indústria de tabaco; em conflito com o interesse do Estado, enquanto pessoa jurídica, como o dos contribuintes; atinentes a grupos que mantêm conflitos entre si, interesses transindividuais reciprocamente conflitantes, como os decorrentes da poluição sonora causada pelos trios elétricos carnavalescos.

O objeto dos interesses difusos é indivisível. Assim, por exemplo, a pretensão ao meio ambiente hígido, posto compartilhada por número indeterminável de pessoas, não pode ser quantificada ou dividida entre os membros da coletividade; também o produto da eventual indenização obtida em razão da degradação ambiental não pode ser repartido entre os integrantes do grupo lesado, não apenas porque cada um dos lesados não pode ser individualmente determinado, mas porque o próprio interesse é indivisível. Destarte, estão incluídos no grupo lesado não só os atuais moradores da região atingida, como também os futuros moradores do local; não só as pessoas que ali vivem atualmente, mas até mesmo as gerações futuras, que, não raro, também suportarão os efeitos da degradação ambiental. Em si mesmo, o próprio interesse em jogo é indivisível.

Com efeito, como individualizar as pessoas lesadas com o derramamento de grandes quantidades de petróleo na Baía de Guanabara, ou com a devastação da Floresta Amazônica? Como determinar exatamente quais as pessoas lesadas em razão de terem tido acesso a uma propaganda enganosa, divulgada pelo rádio ou pela televisão?

2.5. CONCEITO DE INTERESSES COLETIVOS

Em sentido lato, ou seja, de maneira mais abrangente, a expressão interesses coletivos refere-se a interesses transindividuais, de grupos, classes ou categorias de pessoas. Nessa acepção larga é que a Constituição se referiu a direitos coletivos em seu Título II, ou a interesses coletivos, em seu art. 129, III; ainda nesse sentido é que o próprio CDC disciplina a ação coletiva, que se presta não só à defesa de direitos coletivos stricto sensu, mas também à defesa de direitos difusos e individuais homogêneos.

Mas, ao mesmo tempo em que se admite esse conceito amplo de interesses coletivos, o CDC, entretanto, introduziu também um conceito mais restrito de interesses coletivos. Coletivos, em sentido estrito, são interesses transindividuais indivisíveis de um grupo determinado ou determinável de pessoas, reunidas por uma relação jurídica básica comum.

Cabe, também aqui, uma advertência. Embora o CDC se refira a ser uma relação jurídica básica o elo comum entre os lesados que comungam o mesmo interesse coletivo, ainda aqui é preciso admitir que essa relação jurídica disciplinará inevitavelmente uma hipótese fática concreta; entretanto, no caso de interesses coletivos, a lesão ao grupo não decorrerá propriamente da relação fática subjacente, e sim, da própria relação jurídica viciada que une todo o grupo. Assim, por exemplo, tomemos um contrato de adesão, com uma cláusula ilegal. A ação civil pública que vise à anulação dessa cláusula envolverá uma pretensão à tutela de interesse coletivo em sentido estrito, pois o grupo atingido estará ligado por uma relação jurídica básica comum, que, nesse tipo de ação, deverá necessariamente ser resolvida de maneira uniforme para todo o grupo lesado.

Tanto interesses difusos como coletivos são indivisíveis, mas distinguem-se pela origem: os difusos supõem titulares indetermináveis, ligados por circunstáncias de fato, enquanto os coletivos dizem respeito a grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, ligadas pela mesma relação jurídica básica.

Os interesses coletivos e os interesses individuais homogêneos têm também um ponto de contato: ambos reúnem grupo, categoria ou classe de pessoas determináveis; contudo, só os interesses individuais homogêneos são divisíveis, supondo uma origem comum.

Exemplifiquemos com uma ação civil pública que vise à nulificação de cláusula abusiva em contrato de adesão. No caso, a sentença de procedência não vai conferir um bem divisível aos integrantes do grupo lesado. O interesse em ver reconhecida a ilegalidade da cláusula é compartilhada pelos integrantes do grupo de forma não quantificável e, portanto, indivisível: a ilegalidade da cláusula não será maior para quem tenha dois ou mais contratos em vez de apenas um. A ilegalidade será igual para todos eles.

2.6. CONCEITO DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

Os interesses individuais homogêneos, para o CDC, são aqueles de grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem prejuízos divisíveis, de origem comum, normalmente oriundos das mesmas circunstáncias de fato[5].

Em sentido lato, os interesses individuais homogêneos não deixam de ser também interesses coletivos.

Tanto os interesses individuais homogêneos como os difusos originam-se de circunstáncias de fato comuns; entretanto, são indetermináveis os titulares de interesses difusos, e o objeto de seu interesse é indivisível, já nos interesses individuais homogêneos, os titulares são determinados ou determináveis, e o dano ou a responsabilidade se caracterizam por sua extensão divisível ou individualmente variável entre os integrantes do grupo.

Como exemplo de interesses individuais homogêneos, suponhamos os compradores de veículos produzidos com o mesmo defeito de série. Sem dúvida, há uma relação jurídica comum subjacente entre esses consumidores, mas o que os liga no prejuízo sofrido não é a relação jurídica em si, mas sim é antes o fato de que compraram carros do mesmo lote produzido com o defeito de série. Neste caso, cada integrante do grupo terá direito divisível à reparação devida. Assim, o consumidor que adquiriu dois carros terá indenização dobrada em relação ao que adquiriu um só. Ao contrário, se a ação civil pública versasse interesses coletivos, em sentido estrito, deveria ser decidida de maneira indivisível para todo o grupo.

Em outras palavras, é obvio que não apenas os interesses coletivos, em sentido estrito, têm origem numa relação jurídica comum. Também nos interesses difusos e individuais homogêneos há uma relação jurídica subjacente que une o respectivo grupo; contudo, enquanto nos interesses coletivos, propriamente ditos, a lesão ao grupo provém diretamente da própria relação jurídica questionada no objeto da ação coletiva, já nos interesses difusos e individuais homogêneos, a relação jurídica é questionada apenas como causa de pedir, com vista à reparação de um dano fático indivisível, ou, às vezes, até mesmo divisível.

3 INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL

3.1. OS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS NO CENÁRIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL

Mauro Cappelletti e Bryant Garth[6] em uma obra ímpar e pioneira, que discute os problemas do amplo e efetivo acesso à justiça, lembram que interesses difusos são interesses fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente saudável, ou à proteção do consumidor. O problema básico que eles apresentam, a razão de sua natureza difusa, é que ninguém tem o direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação. Um exemplo simples pode mostrar por que essa situação cria especiais barreiras ao acesso. Suponhamos que o governo autorize a construção de uma represa que ameace de maneira séria e irreversível o ambiente natural. Muitas pessoas podem desfrutar da área ameaçada, mas poucas, ou nenhuma, terão qualquer interesse financeiro direto em jogo. Mesmo esses, além disso, provavelmente não terão interesse suficiente para enfrentar uma demanda judicial complicada. Presumindo-se que esses indivíduos tenham legitimação ativa, eles estão em posição análoga à do autor de uma pequena causa, para quem uma demanda judicial é antieconômica. Um indivíduo, além disso, poderá receber apenas indenização de seus próprios prejuízos, porém não dos efetivamente causados pelo infrator à comunidade.

Verifica-se no trecho acima citado todo o esforço que a doutrina processual, a partir dos estudos de Cappelletti e Garth, vem desenvolvendo para um efetivo acesso à justiça: romper os obstáculos que impliquem em impedir o acesso a uma ordem jurídica justa, através das chamadas ondas renovatórias que, a partir da década de 60, se fizeram sentir: assistência judiciária aos pobres; representação dos interesses difusos; e um novo enfoque de acesso à justiça, voltado à efetividade do processo, sendo que Cándido Rangel Dinamarco[7] já ensinara que a expressão acesso à justiça vai além do simples acesso ao Poder Judiciário. Representa, segundo o autor, "a obtenção de resultados justos". Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem. Augura-se a caminhada para um sistema em que se reduzam ao mínimo inevitável os resíduos de conflitos não jurisdicionalizáveis e em que o processo seja capaz de outorgar a quem tem razão toda a tutela jurisdicional a quem tem direito.

Dentre os processualistas brasileiros, quem tem demonstrado grande interesse pela terceira onda, identificando-a com a atual fase metodológica da ciência processual, a fase instrumentalista, é o Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, do E. Superior Tribunal de Justiça. Em duas oportunidades, pelo menos, o Ministro identifica a atual onda, fruto da síntese das anteriores como mencionam Cappelletti e Garth, como a onda que se volta para a efetividade da prestação jurisdicional, "refletindo ideais de justiça e princípios fundamentais, tendo como idéias matrizes o acesso a uma ordem jurídica justa e a celeridade na solução do litígio, ao fundamento de que somente procedimentos ágeis e eficazes realizam a verdadeira finalidade do processo"[8].

Ora, esses reflexos se fizeram e se fazem sentir até hoje, bastando mencionar, como exemplo, a produção científica advinda com o fenômeno que o mesmo Cándido Rangel Dinamarco identifica como "a instrumentalidade do processo", em que o autor analisa os denominados "pontos de estrangulamento" para que se possa desfrutar de um efetivo acesso a uma ordem jurídica justa, encontráveis: na problemática da admissão do juízo; no modo de ser do processo; na justiça das decisões; na utilidade das decisões.

Para a ruptura das barreiras de acesso à justiça, nas hipóteses que ora nos interessam, ou seja, para a defesa de interesses que estivessem acima dos interesses privados e dos públicos secundários, foi necessária a edificação de uma sólida doutrina, que estudasse os interesses transindividuais, como gênero dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Nesse particular, Hugo Nigro Mazzilli[9] afirma ter sido a partir de 1974, com estudos de Mauro Capelletti, que a tradicional dicotomia interesse público/interesse privado sofreu uma incisiva crítica, que abalou essa summa divisio, até então praticamente inquestionável. Diz o autor:

Demonstrou-se, inicialmente, a existência de uma categoria intermediária, na qual se compreendiam interesses coletivos, ou seja, aqueles referentes a toda uma categoria de pessoas. São interesses metaindividuais, porque atingem grupos de pessoas que têm algo em comum. Ora o que as une é estarem na mesma situação de fato, ora é a circunstáncia de compartilharem a mesma relação jurídica. Contudo, mesmo dentro dessa categoria intermediária, foi possível estabelecer uma distinção entre os interesses que atingem uma categoria determinada de pessoas, e os que atingem um grupo indeterminado de indivíduos.

Bastará, então, concluir, diante de determinados interesses transindividuais considerados, se se trata de interesses indivisíveis, ou divisíveis; se resulta de uma origem fática comum, ou resulta de uma mesma relação jurídica, envolvendo os interessados; enfim, há que se analisar as particularidades de cada um dos interesses transindividuais e, assim, identificar a sua peculiar natureza. Somente o caso concreto, na forma que se indicará ao final, é que possibilitará uma conclusão precisa.

3.2. OS INTERESSES DIFUSOS E COLETIVOS: PRINCIPAIS ELEMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO

Interesses difusos são os interesses de grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico ou fático muito preciso. Na feliz expressão de Hugo Nigro Mazzilli[10], "são como um feixe de interesses individuais, com pontos em comum", ou seja, um conjunto de interesses individuais, em que cada um dos elementos do grupo indeterminado de pessoas possui o seu interesse, mas que guardam pontos comuns entre si, não sendo viável o quanto cabe a cada um dos interessados do todo, até porque, por definição do art. 81, parágrafo único, I do CDC, são indivisíveis.

Ainda que não se possa afirmar que a intensidade do interesse de cada indivíduo que integra esse grupo (não determinado nem determinável) seja a mesma, fruto da inexistência de vínculo jurídico ou, como ocorre em alguns casos, a inexistência de um vínculo fático bem preciso a uni-los, não se pode ignorar que tais interesses em alguns pontos coincidem.

Assim, nota-se que não se considera o mero somatório de cada um desses interesses. Antes, é justamente na medida em que se possa detectar um fio condutor desses interesses, fio condutor esse que se relacione com a indivisibilidade dos interesses de cada um dos integrantes do grupo, é que estará diante de um interesse difuso.

Mas outros elementos há para identificá-los.

O clássico exemplo de interesse difuso, a partir do qual se poderá vislumbrar com nitidez todas as características que o individualizavam, é o meio ambiente.

Reproduzindo-se uma indagação de Mauro Capeletti[11], traduzida livremente, do idioma italiano para o nosso, bem se pode concluir como os interesses decorrentes das relações do homem com o meio ambiente seriam catalogados como interesses difusos: "A quem pertence o ar que respiro?".

Com efeito, ainda que Hugo Nigro Mazzilli[12] prefira afirmar que os interesses difusos pertençam a grupos "menos determinados de pessoas", no caso do meio ambiente fica patente a impossibilidade de identificar e, assim determinar quem sejam os integrantes da coletividade que tenham interesse na manutenção, por exemplo, de um ar limpo e passível de ser respirado, sem prejuízos para a saúde, à fauna, à flora, bem assim que as atividades nocivas aos meios de produção natural do oxigênio sejam afetadas.

Todos, individualmente, ainda que a intensidade desses interesses não seja a mesma, têm o interesse na manutenção do meio ambiente equilibrado. Aliás, e isso parece de extrema importáncia, quaisquer manifestações do pensamento em contrário não têm o condão de invalidar a presunção que o legislador cria para a defesa desses interesses difusos. Assim, pouco importa que alguém busque de alguma forma "renunciar a parcela" do seu direito a um meio ambiente sadio. A presunção legal e a natureza desse interesse tornarão tal manifestação desprovida de qualquer eficácia. A defesa do meio ambiente, quando realizada, aproveitará inclusive àqueles que, como no hipotético exemplo, "renunciarem a parcela que lhes cabe".

Essa conclusão, ainda que óbvia, é imprescindível.

Dois dos mais importantes fenômenos relacionados à defesa em juízo dos interesses transindividuais apenas se justificam se se tomar o exemplo acima como uma premissa: a legitimatio ad causam, que na defesa dos interesses transindividuais é confiada a um ente dotado de representatividade adequada, seja por presunção, seja pelo preenchimento de determinados parámetros exigidos por lei; e, no outro extremo, a disciplina da coisa julgada, que merecerá uma série de mitigações, a fim de que todos os interessados possam se beneficiar da tutela jurisdicional.

Mas, retornando ao exemplo, é justamente esse ponto em comum, ou seja, a manutenção do equilíbrio do meio ambiente, que está a unir os integrantes da coletividade de pessoas (como se vê, não há uma relação jurídica a uni-los). Antes, estão unidos por uma determinada circunstáncia fática como, por exemplo, o desmatamento de uma determinada reserva ecológica de preservação permanente, ou o fornecimento de um produto nocivo à saúde, ou a atitude nociva e agressiva ao patrimônio histórico.

O fator quantitativo também serve para identificar os interesses difusos, diferenciando-os das demais categorias de interesses transindividuais: os interesses difusos podem, como no exemplo dado, dizer respeito " até a toda humanidade", o que não acontece, por exemplo, com os interesses coletivos em sentido estrito.

Além disso, o fator qualitativo também servirá para identificar os interesses difusos, porque consideram o homem exclusivamente na sua dimensão de ser humano.

Outros interesses transindividuais consideram o homem na sua dimensão corporativa, ou seja, consideram o homem enquanto ser que pode se aglutinar com outros para a persecução de seus interesses.

Além dos elementos constantes da definição de interesses difusos proposta por Hugo Nigro Mazzili, poderíamos citar as definições adotadas por outros estudiosos.

Assim, Rodolfo de Camargo Mancuso[13] "São interesses metaindividuais que, não tendo atingido o grau de agregação e organização necessário à sua afetação institucional junto a certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente definidos, restam em estado fluido, dispersos pela sociedade civil como um todo, podendo, por vezes, concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido. Caracterizam-se: pela indeterminação dos sujeitos, pela indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade interna e por sua tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço".

A "indeterminação dos sujeitos" e "indivisibilidade do objeto", contidas na definição acima transcrita, já foram consideradas e coincidem com aquelas apresentadas por Hugo Nigro Mazzilli.

Resta, para uma maior compreensão do conceito de Rodolfo de Camargo Mancuso, buscar o significado de "intensa litigiosidade interna" e "tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço".

Por "intensa litigiosidade interna" quer o autor significar o fato da existência de conflitos entre grupos relacionados com o interesse difuso que se busca preservar, porque são interesses soltos, fluidos, desagregados e disseminados nos mais diversos segmentos sociais, sem um vínculo jurídico à base.

Assim, o exemplo que cita[14] é o dos lenhadores versus entidades ecológicas que buscam a proibição do corte de árvores. O conflito dos interesses de um e outro grupo é evidente: aquele no abate de árvores para a subsistência do grupo e este na manutenção do meio ambiente.

Quanto ao aspecto da mutação, o autor lembra que, diante do fato de não existir uma relação jurídica que embase esses interesses, eles podem mudar muito mais rapidamente do que as relações que são disciplinadas pelo direito, que cria um vínculo jurídico básico. Assim, mutáveis são esses interesses como o são as situações de fato, tudo dependendo do valor dominante no momento da consideração do interesse.

Dessa opinião partilha José Celso de Mello Filho,[15] que assim se pronunciou:

Na real verdade, a complexidade desses múltiplos interesses não permite sejam discriminados e identificados na lei. Os interesses difusos não comportam rol exaustivo. A cada momento e em função de novas exigências impostas pela sociedade moderna pós-industrial, evidenciam-se novos valores, pertencentes a todo grupo social, cuja tutela se impõe como necessária. Os interesses difusos, por isso mesmo, são inominados, embora haja alguns, mais evidentes, como os relacionados aos direitos do consumidor ou concernentes ao patrimônio ambiental, histórico, artístico, estético e cultural.

Cabe, ainda, menção à definição de Péricles Prade: [16]

Os interesses difusos são interesses que pertencem de maneira idêntica a uma pluralidade de sujeitos mais ou menos determinada, a qual pode ser ou não unificada e unificada mais ou menos estreitamente, em uma coletividade.

A seguir, enumera o autor as principais características, segundo a sua óptica, encontráveis nos interesses difusos: a) ausência de vínculo associativo; b) alcance de uma cadeia abstrata de pessoas; c) potencial e abrangente conflituosidade.

Além de Rodolfo de Camargo Mancuso e Péricles Prade, Antônio Augusto Mello de Camargo Ferras, Nelson Nery Junior e Edis Milaré[17] apresentam dois exemplos que bem demonstram os debates e a conflituosidade que a defesa dos interesses difusos geram: "A obrigação das empresas de, por exemplo, empregarem embalagens assépticas de melhor qualidade reflete-se imediatamente nos custos dos produtos e no preço; a interdição de uma empresa poluente gerará desemprego." Assim, ipso facto, a tutela desses interesses implica na afetação de outros; d) ocorrências de lesões disseminadas em massa; e) vínculos fáticos entre os titulares dos interesses. Do quanto já se pôde analisar acima, essas características se evidenciam nos interesses difusos, alterando-se apenas a terminologia empregada por cada autor.

Cabem algumas considerações sobre os interesses coletivos, em sentido estrito.

São os interesses que compreendem uma categoria determinada, ou pelo menos determinável de pessoas, dizendo respeito a um grupo, classe ou categoria de indivíduos ligados por uma mesma relação jurídica básica e não apenas por meras circunstáncias fáticas, como acontecia nos interesses difusos.

Em linhas gerais, essa é a definição de Hugo Nigro Mazzilli, que faz expressa referência ao teor da definição veiculada pelo próprio CDC, alertando para a semelhança existente entre um dos elementos que também integram o conceito de interesses difusos: aqui também são indivisíveis os interesses.

Parece que na modalidade de interesses transindividuais ora analisada fica patente a característica de indivisibilidade: não se conceberia um tratamento diversificado entre membros de uma mesma categoria, não naquilo que constituísse a essência dessa categoria.

Os interesses coletivos, contudo, daqueles se afastam diante da existência de uma relação jurídica-base a unir todos os interessados, bem assim pela possibilidade de determinação dos mesmos: todos estão unidos porque pertencem a uma mesma categoria, com ela mantendo cada qual uma relação jurídica idêntica e, por definição, acham-se unidos para alcançarem aquilo que sintetiza as aspirações do grupo, identificando-o como tal.

Como se pode depreender da conceituação de Hugo Nigro Mazzilli sobre interesses transindividuais, em sentido lato, interesses coletivos designam tanto os interesses difusos como os coletivos propriamente ditos e mesmo os individuais homogêneos.

Coletivos lato sensu, é bom que se diga, são todos os interesses transindividuais, que são titularizados da mesma forma por várias pessoas.

Vê-se, contudo, que, apesar de muitos utilizarem a expressão interesse coletivo como se fosse ela um gênero, quando na realidae é uma espécie, não constituem (interesses difusos e interesses coletivos) expressões sinônimas, bastando um simples cotejo das diferenças entre as duas expressões, para verificar suas essenciais divergências conceituais.

Além de todos os inconvenientes de se definir, de forma equivocada, os interesses difusos como sendo categoria dos coletivos, ou que constituam expressões sinônimas, como bem lembrou Rodolfo de Camargo Mancuso[18], devemos lembrar que o direito é uma ciência e, assim, cada expressão que designa um instituto jurídico deve ter o seu próprio e exclusivo significado e alcance prático.

Dentre outros autores que nos exortam a esse contínuo exercício poderia citar Tercio Sampaio Ferraz [19], que ensina: "A ciência é constituída de um conjunto de enunciados que visa transmitir, de modo altamente adequado, informações verdadeiras sobre o que existe, existiu ou existirá", que guardará relação de refinação em relação à linguagem comum, daí uma das diferenças do conhecimento vulgar e do conhecimento científico, o que faz o homem comum entender muito pouco os fenômenos jurídicos expressos em linguagem científica própria. Ainda, sobre a linguagem própria que a ciência deve manter, lembremos os ensinamentos de Cándido Rangel Dinamarco,[20] em que o autor afirma: "Mede-se o grau de desenvolvimento de uma ciência pelo refinamento maior ou menor do seu vocabulário".

Assim, para um remate na identificação dos interesses coletivos, convém a transcrição de uma perspectiva captada por Rodolfo de Camargo Mancuso[21], reveladora de sua essência:

No capítulo precedente, vimos que por interesse coletivo, propriamente dito, se deve entender aquele concernente a uma realidade coletiva, ou seja, o exercício coletivo de interesses coletivos; e não, simplesmente, aqueles interesses que apenas são coletivos na forma, permanecendo individuais quanto à finalidade perseguida, o que configuraria um exercício coletivo de interesses individuais.

Essa diferença deixa mais evidente o que se pode entender por interesses coletivos, mostrando bem que a união dos interessados a priori e não apenas para a defesa de seus interesses em juízo, merecendo cada qual idêntico tratamento, é o que mais caracteriza essa modalidade de interesses transindividuais, e será útil, ainda, para diferencia-los dos individuais homogêneos, como se verá em seguida.

Quando os interessados se unem para a defesa de um interesse, não estando unidos por relações jurídicas básicas, apenas e tão-somente realizando a união para a defesa de um determinado interesse, plenamente cindível e atribuível a cada um dos interessados, não haverá defesa de interesses transindividuais, na modalidade de interesse coletivo: no caso, o que ocorrerá, desde que previsto nas hipóteses elencadas pelo Código de Processo Civil, será a figura do litisconsórcio.

Apesar de todas as diferenças entre as duas categorias, apontadas pelo labor doutrinário, nota-se uma coincidência entre essas duas modalidades de interesses transindividuais no que tange ao trato da causa de pedir.

Tanto os interesses difusos como os coletivos devem, para que se possam conceitua-los e identifica-los, circunscrever-se a uma única e exclusiva causa de pedir, que tenha à sua base, como fundamento jurídico, um interesse que seja indivisível, naquela perspectiva empregada e destacada por José Carlos Barbosa Moreira, em passagem destacada neste trabalho.

Assim, o fato que gera um conflito coletivo, capaz de demandar tutela jurisdicional, no caso de interesses difusos e coletivos, deve infringir interesses/direitos indivisíveis, que afetem de forma idêntica toda a coletividade, mais ou menos identificável, ou de impossível identificação.

Diante da especial qualidade do direito material (indivisibilidade), em um único fato capaz de determinar a união de todos os interessados e a defesa de interesses que a todos pertencem. Portanto, não é qualquer causa de pedir próxima, entendida aqui, como a "razão imediata do pedido", segundo Nelson Nery[22], que enseja a utilização da sistemática processual das demandas coletivas, na forma disciplinada pelas Leis n. 7.347/85 e n. 8.078/90. Há que verificar se a causa de pedir, muitas vezes única, ou seja, materializada num único evento, teve a força de provocar ameaça ou lesão efetiva a interesses indivisíveis.

Cabe lembrar que o rol do art. 1º da Lei n. 7.347/85, assim como aquele contido no inc. III do art. 129 do Texto Supremo, são meramente exemplificativos. Não há que questionar da existência prévia de determinados interesses indivisíveis para saber se a técnica das demandas coletivas deve ser utilizada. A análise não se dá por hipóteses estritas, encontráveis num determinado rol. O operador do direito deverá analisar o direito material que se situa na base da relação jurídico -processual para, depois, concluir que, se indivisível, apenas se empregarão as técnicas próprias das demandas coletivas. Assim, causas de pedir (razões imediatas do pedido; eventos que levem ao pedido) que atentem contra interesses indivisíveis devem conduzir a demandas coletivas.

Resta a análise das características dos interesses individuais homogêneos.

3.3. OS INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS: PRINCIPAIS ELEMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO

Assim, chega-se aos interesses individuais homogêneos que constituem o tema central do presente estudo.

São também interesses coletivos, consoante bem ressalta Hugo Nigro Mazzilli.[23]

Contudo, não se nota em tal modalidade uma transindividualidade essencial. Como o próprio nomem iuris sugere, são interesses individuais ( divisíveis, cindíveis), na sua essência.

Rodolfo de Camargo Mancuso[24], quando trata dessa modalidade de interesses, em uma obra destinada à análise da defesa do consumidor em juízo, lembra que há interesses que geram conflitos essencialmente coletivos (os difusos e os coletivos em sentido estrito) e outros que geram conflitos acidentalmente coletivos.

Contudo, os interesses coletivos em sentido estrito são indivisíveis.

Os interesses que compartilham os titulares dos interesses individuais homogêneos são, ao contrário, divisíveis, cindíveis, passíveis de ser atribuídos a cada qual dos interessados, na proporção que cabe a cada um deles, mas que, por terem uma origem comum, são tratados coletivamente, na forma destacada acima por Rodolfo Camargo Mancuso.

Não há o sacrifício da legitimação ordinária, como ocorria com os difusos e coletivos. Naqueles, não se concebe, porque indivisíveis, a defesa feita pelos próprios interessados. Não. Daí, Rodolfo de Camargo Mancuso, com base na doutrina de José Carlos Barbosa Moreira, lembrar que são essencialmente coletivos: são fruíveis e defensáveis apenas na modalidade coletiva.

Nos individuais homogêneos, tal fenômeno não ocorre. Aqui, cada interessado pode ajuizar a sua própria demanda para a defesa de seu próprio interesse. Não há um mecanismo totalmente eficiente para evitar a repetição de demandas. Cada qual, ademais, sabe o quanto de dano, material ou moral, sofreu, quando da ofensa experimentada.

Mas, para evitar a repetição de milhares de demandas idênticas e, assim, para que a atividade jurisdicional não reste desprestigiada, diante da possibilidade fática de prolatar pronunciamentos diversos para situações idênticas (origem comum, exigida pelo inc. III do parágrafo único do art. 81 da Lei n. 8.078/90), passou o legislador a admitir a defesa coletiva desses interesses que, na essência, são individuais.

Acrescente-se que esses interesses originam-se não de uma idêntica relação jurídica, mas sim de circunstáncias fáticas. Não há, portanto, relação jurídica-base a unir os interessados. Aliás, é justamente a circunstáncia de que a união dos titulares de interesses individuais homogêneos tenha sua origem numa situação fática, que esses interesses se aproximam dos difusos e se afastam dos coletivos em sentido estrito.

Com efeito, basta lembrar que os interesses difusos também têm origem numa situação fática, não havendo relação jurídica básica comum a unir os titulares indetermináveis dos mesmos. Numa palavra: para os interesses difusos, ocorre a união essencial para a defesa de seus interesses apenas pelo fato de uma causa ter produzido a lesão ao interesse indivisível. Nos coletivos, além dessa causa, reclama-se para união dos interessados em situações de comunhão, na mesma categoria, grupo ou classe de pessoas.

As principais diferenças entre os interesses individuais homogêneos e os difusos, portanto, residem na divisibilidade daqueles e indivisibilidade destes e, ainda, na possibilidade de identificação dos interessados naquela modalidade e a impossibilidade de identificação nesta.

As principais diferenças entre os interesses individuais homogêneos e os coletivos stricto sensu situam-se também na divisibilidade daqueles e indivisibilidade destes e pelo fato de os interessados que são titulares dos interesses coletivos no sentido estrito acharem-se unidos por uma mesma relação jurídica-base.

Essa categoria de direitos, passíveis de ser tutelados coletivamente em juízo, surge, ao menos com essa denominação, no CDC, sendo que alertam Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery[25] que a grande novidade trazida pela Lei n. 8.078/90 foi permitir que esses direitos, cujos titulares são plenamente identificáveis e cujo objeto é cindível, sejam defendidos coletivamente em juízo.

Guardadas todas as proporções devidas, representam as nossas class actions, como as que ocorrem no direito norte-americano.

Mais uma vez, há que destacar que, na hipótese de tais interesses necessitarem de tutela jurisdicional, não se estará diante de pluralidade subjetiva de demandas, como ocorre no litisconsórcio ativo. Os interesses individuais homogêneos são passíveis de ser defendidos numa única demanda, pelo substituto processual de seus titulares, sem que exista a necessidade de autorização desses, como ocorreria em hipótese de representação processual. A demanda será coletiva, porque postulará uma tutela coletiva, ainda que de conteúdo genérico a eventual condenação daquele que tenha infringido tal modalidade de interesses transindividuais ( art. 95 da Lei n. 8.078/90).

Quanto aos interesses que proporcionam litígios essencialmente coletivos, lembra José Carlos Barbosa Moreira[26]:

O seu objeto é por natureza indivisível, como acontece, por exemplo, em matéria de proteção do meio ambiente, em matéria de defesa da flora e fauna, em matéria de tutela dos interesses na preservação do patrimônio histórico, artístico, cultural, espiritual da sociedade; e como acontece também numerosas vezes, no terreno da proteção do consumidor, por exemplo, quando se trata de proibir a venda, a exploração de um produto considerado perigoso ou nocivo à saúde.

Quando cindíveis as situações de cada um dos interessados, a coletivização dos litígios será acidental, lembra Barbosa Moreira, exemplificando com a ocorrência de uma fraude financeira, que venha a causar prejuízo a um número determinado de pessoas, ainda que esse número seja elevado.

Ora, ninguém desconhece que cada qual dos prejudicados pela referida fraude hipotética poderia, por si mesmo, buscar em juízo a reparação do dano experimentado. Nada há de divisível no mencionado exemplo. O quantum de cada um é perfeitamente mensurável. Ao contrário, ninguém poderia apontar a sua parcela de interesse em relação a uma determinada paisagem natural, por exemplo. Aqui, o interesse de cada um estaria relacionado ao todo indivisível.

4 A CAUSA DE PEDIR

4.1 A CAUSA DE PEDIR NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

Num universo extraordinariamente extenso e expressivamente conflituoso, a atividade jurisdicional está disponível para conhecer e julgar todos os pedidos que ao Poder Judiciário sejam feitos, por meio do caminho previsto na ordem jurídica, ou seja, no bojo de processo, instaurado por força do exercício do direito de ação.

Ocorre que a multiplicidade de conflitos determina o surgimento de inúmeras lides, para as quais deve haver soluções específicas, objetivas, capazes de promover a pacificação caso a caso, interesse por interesse.

Cada ação levada a juízo, portanto, deve ser particularmente observada, para que dela se extraiam elementos identificadores, de forma que possa ser considerada separadamente e distinguida das outras ações que também tenham sido propostas ou que possam vir a ser propostas futuramente.

E quais são esses elementos que permitem que cada ação seja isoladamente considerada? A doutrina e também o CPC (art. 301, parágrafo segundo) apontam três elementos, com base na teoria da tríplice identidade: as partes, o pedido, e a causa de pedir.

O nosso objeto de estudo é a causa de pedir.

4.1.1 A causa de pedir como elemento de identificação da ação.

Ao levar sua pretensão a juízo, o autor apresenta duas ordens de fundamentos: os fatos a respeito dos quais pretende uma solução do Estado e o direito que, em seu entender, decorre de tais fatos. Em razão disso, isto é, deste conjunto complexo de fatos e de fundamentos jurídicos, é que o autor formula seu pedido.

A causa de pedir ou razão do pedido significa, resumidamente, segundo Wambier[27], o conjunto de fundamentos levados pelo autor a juízo, constituído pelos fatos e pelo fundamento jurídico a eles aplicável.

O CPC adotou a teoria da substanciação, pela qual são necessárias, além da fundamentação jurídica, a alegação e descrição dos fatos sobre os quais incide o direito alegado como fundamento do pedido. A fundamentação jurídica é, via de regra, a causa de pedir próxima, enquanto o fato gerador do alegado direito se constitui, também na generalidade dos casos, na causa de pedir remota. Na opinião de José Rogério Cruz e Tucci[28], a causa de pedir próxima se constitui no "enquadramento da situação concreta (...) à previsão abstrata, contida no ordenamento de direito positivo", enquanto a causa de pedir remota está presente nos fatos "que fazem emergir a pretensão do demandante".

4.1.2 A causa de pedir e os interesses individuais homogêneos

Analisadas as características dos interesses individuais homogêneos, resta desenvolver o tópico nuclear do presente estudo e apontar o especial comportamento das causas de pedir nas demandas que visam tutelar os interesses individuais homogêneos, destacando a sua importáncia.

Para tanto, há que utilizar a definição clássica de causa de pedir, esposada por grande maioria de nossos processualistas, e, em seguida, considera-la à luz dos interesses individuais homogêneos, diante das características acima lembradas.

Com efeito, pudemos verificar que os interesses individuais homogêneos detêm natureza jurídica de interesses individuais, que podem, acidentalmente, merecer uma tutela jurisdicional coletiva. Referida tutela, contudo, apenas se dará se, e somente se, as inúmeras causas de pedir, das inúmeras demandas que poderiam ser ajuizadas isoladamente mediante legitimação ordinária de cada um dos interessados, forem idênticas.

A indivisibilidade, característica do direito material, que permitia a união indissolúvel dos interesses que se encontram em conflito, no caso de se considerar os interesses difusos e coletivos, aqui não existe. A fruição coletiva do interesse e sua defesa em juízo se dão pela especial característica do direito material, que é bastante e suficiente para caracterizar os interesses difusos e coletivos como essencialmente coletivos.

Ao contrário, no caso dos interesses individuais homogêneos, exige-se que vários tenham sido os eventos que representarão os fundamentos fáticos e jurídicos de inúmeras demandas possíveis. Contudo, porque homogêneos, há que transpor duas exigências: a) que sejam idênticos e b) que sejam múltiplos ( mais de um, não importando o número, pois a homogeneidade consistirá apenas e tão-somente fator de possibilidade de se utilizar, também e não exclusivamente, das demandas coletivas).

Interessante notar que, no procedimento especial destinado aos interesses individuais homogêneos, há um momento, o da liquidação da sentença, em que haverá a necessidade da comprovação da causa de pedir comum e de sua subsunção a cada um dos interessados. Numa palavra: ao menos neste processo, que tem natureza cognitiva, haverá a necessidade de se remontar ao evento comum para que ocorra, de fato, ema efetiva tutela jurisdicional.

Por determinação expressa da Lei n. 8.078/90, há um procedimento especial para a defesa dos interesses individuais homogêneos. No referido procedimento, admite-se a dedução de pedidos genéricos, até porque seria impossível conhecer o prejuízo de cada um dos interessados envolvidos na causa de pedir uniforme, e, como conseqüência, haverá um provimento de mérito também genérico, que demandará a sua ulterior liquidação, a fim de ensejar o processo de execução. No momento da liquidação, por óbvio, apenas conseguirá apurar o seu quantum debeatur aquele que detiver situação idêntica à narrada na inicial, que, ainda que também genericamente, afirmará, para que o pedido possa ser deduzido, que a causa de pedir se repetiu tantas vezes quantos forem os interessados que merecerão tutela.

Mas, desde a admissão do conflito em juízo, deverá o juiz analisar se há, ao menos em tese, a possibilidade de utilização da demanda coletiva, para que se proceda a uma defesa molecularizada de conflitos que, na essência, sejam individuais. Assim, a conclusão de que há uma causa de pedir idêntica, a cada um dos interessados, constitui mecanismo de extrema importáncia, que para que se viabilize a dedução da pertinência do pedido, quer para que se verifique se, efetivamente, se está diante de interesses individuais homogêneos.

Com a inicial há que demonstrar a plausibilidade de utilização da via eleita, até porque para cada modalidade de interesses transindividuais haverá questionamentos próprios sobre a legitimidade de agir e os limites subjetivos da coisa julgada, o que demanda do magistrado uma atenção constante para a possibilidade de utilização da via optada pelo legitimado extraordinário.

Portanto, na identidade de causas de pedir, relacionadas que estão a eventos que guardam homogeneidade, é que se questionará da utilização ou não das demandas coletivas.

4.2. O PROCEDIMENTO ESPECIAL DESTINADO À DEFESA DOS INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS EM JUÍZO: AÇÃO CIVIL PÚBLICA E AÇÃO COLETIVA

A grande crítica que se faz aos interesses individuais homogêneos está na ausência de efetividade do procedimento especial destinado a defesa dos interesses individuais homogêneos , já referido em outras passagens desse estudo.

Partes: 1, 2, 3


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