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Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil (página 3)

Edison Bariani
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10

Os outros participantes ("cariocas") eram Oscar Lorenzo Fernandez, Ignácio Rangel, José Ribeiro de Lira, Israel Klabin, Cid Carvalho, Cleantho de Paiva Leite, Fabio Breves, Ottolmy da Costa Strauch, Heitor Lima Rocha, Rômulo de Almeida, Moacyr Félix de Oliveira, além desses, os que mais tarde formariam o IBESP e o ISEB e ficariam conhecidos (juntamente com Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré) como "isebianos históricos" (PAIVA, 1986):[70] Guerreiro Ramos, Helio Jaguaribe, e Cândido Mendes de Almeida (JAGUARIBE, 1979d, p. 95; PÉCAUT, 1990, p. 108; PEREIRA, Alexsandro, 2005, p. 254). Esses compartilhavam com os "paulistas" - mormente seu líder – algumas influências comuns, mas – segundo Paiva (1986, p. 32) – distinguiam-se:

[...] os "isebianos históricos" beberam nas mesmas fontes que Vicente Ferreira da Silva [hegelianismo, existencialismo, fenomenologia, culturalismo, etc.]. Parece distingui-los o fato de que aqueles dirigiram suas preocupações para a sociedade, enquanto este permaneceu, como nos mostra sua produção ulterior, preso à reflexão sobre o indivíduo, condenando mesmo o caminho seguido pelos isebianos.

O principal articulador do grupo nas reuniões em Itatiaia, Helio Jaguaribe, aglutinava em torno de si as mais variadas personalidades, entretanto, quando as discussões ultrapassaram a especulação filosófica, incomodados – mormente pelas posições e volúpia intelectual de Jaguaribe, que advogava a aplicação teórica à realidade brasileira no sentido da mudança social – os "paulistas" (conservadores na maioria) desligaram-se do grupo, só Roland Corbisier permaneceu (PAIVA, 1986, 53).[71]

Em 1953, cristalizada sua vocação de estudos dos problemas brasileiros, o grupo remanescente das reuniões em Itatiaia cria o IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política) e passa a editar os textos das discussões sob o nome de Cadernos de Nosso Tempo – publicados entre 1953 e 1956, totalizando cinco volumes que vieram a marcar época. Colaboraram nos Cadernos: Alberto Guerreiro Ramos, Cândido Mendes de Almeida, Carlos Luís Andrade, Ewaldo Correia Lima, Fábio Breves, Heitor Lima Rocha, Helio Jaguaribe, Hermes Lima, Ignácio Rangel, João Paulo de Almeida Magalhães, José Ribeiro de Lira, Jorge Abelardo Ramos, Moacyr Félix de Oliveira e Oscar Lorenzo Fernandez (SCHWARTZMAN, 1979). Tinha início uma forma de interpretação (e engajamento) ainda inédita no Brasil. "A importância do IBESP e dos Cadernos [de Nosso Tempo] é que eles contêm, no nascedouro, toda a ideologia do nacionalismo, que ganharia força cada vez maior no país nos anos subseqüentes, e serviriam de ponto de partida para a constituição do Instituto Superior de Estudos Brasileiros [ISEB]" (SCHWARTZMAN, 1979, p. 3).

O IBESP (diferentemente do ISEB), mesmo não sendo composto de modo homogêneo e seus encontros extemporâneos, mantinha certa organicidade nas análises e produções, derivada das discussões conjuntas e prévias dos textos publicados, o que torna possível uma análise sistemática de suas formulações.

Os trabalhos publicados nos Cadernos de Nosso Tempo geralmente não contêm citações e/ou preocupações acadêmicas, são textos de construção e síntese que denotam a preocupação essencial dos autores: influir decisivamente na realidade brasileira. Entre os temas abordados, estão: o Estado, o pensamento social no Brasil, os agentes e fenômenos político-sociais, a economia, posição na geopolítica, a condição do negro (cf. RAMOS, 1979), etc. Nos textos, concebidos individual ou coletivamente (e sempre discutidos), os autores abordam questões urgentes da sociedade brasileira – naquela década de 1950 – e, mais que diagnosticar, por vezes, apontam formas de equacionar os problemas.

Embora mantivessem um caráter engajado e não-acadêmico, alguns textos – hoje lançados à margem – trazem interessantes contribuições teóricas a questões que viriam à berlinda nos anos posteriores. Em "O que é ademarismo" – publicado nos Cadernos... nº 2 (jan./jun. 1954) – Helio Jaguaribe enfrenta o então fenômeno político (e social) do "ademarismo", que à época surgia como uma esfinge na política brasileira;[72] na tentativa de desvendá-lo, empreende uma análise do populismo – um dos grandes temas a partir do final dos anos 1950 no Brasil e na América Latina – fortemente influenciada por um pragmatismo político e pelo pensamento de Ortega y Gasset (1933), no que refere à análise do comportamento político das massas:

O populismo, de que o ademarismo é a expressão brasileira, constitui a manifestação política das massas que persistiram como tais, por não terem seus membros logrado atingir a consciência e o sentimento de classe e por tender a se generalizar, como protótipo da comunidade, o tipo psicossocial do homem-massa. (JAGUARIBE, 1979b, p. 26).

Também são de Jaguaribe (1979a; 1979c) as análises baseadas na identificação de certo patrimonialismo presente na sociedade brasileira e na definição do Estado republicano brasileiro como Estado cartorial, isto é, como condicionado pela solução de continuidade da "necessidade" – devido ao clientelismo político-eleitoral e à dependência do consenso tácito – de prover com empregos públicos a classe média, inchando a burocracia civil e militar e legando aos particulares o cumprimento de funções administrativas que seriam públicas. Tal análise viria a pontuar alguns dos primeiros usos do conceitual weberiano nas interpretações sobre a promiscuidade entre o público e o privado no Brasil,[73] bem como da caracterização da classe média como grupo (em sua maioria) "alienado" e "moralista", de tendência conservadora e de opções políticas pautadas pela vigência de valores tanto "idealistas" quanto hipócritas, vindo a servir aos desígnios de um setor reacionário da burguesia. O udenismo em geral e o fenômeno do lacerdismo em particular viriam a relevar tal preocupação.

Todavia, a preocupação central dos autores ibespianos era acerca das possibilidades e formas de alcançar o desenvolvimento, pensado como a transformação qualitativa essencial e geral que poderia redimir a miséria brasileira, num processo que, de modo expresso, compreenderia os mais variados aspectos (econômico, político, cultural, etc.), já que não deveria simplesmente "ser concebido como empreendimento industrial e comercial" (LIMA, Hermes, 1979, p. 82).[74]

Como suposto ao processo de desenvolvimento, pleiteavam a necessidade de uma ideologia, concebida no sentido de um amplo projeto que visasse os interesses objetivos das classes sociais em luta contra o atraso: "Ideologia, genericamente, é o conjunto de valores e de idéias que apresentam como razoável e desejável um determinado projeto ou estatuto convivencial para a comunidade, a partir dos interesses situacionais de uma determinada classe ou grupo social" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 239). Assim, uma ideologia consistiria, essencialmente, "na formulação de uma pauta de valores e de sua articulação num projeto social dotado de eficácia histórica", tal caráter só poderia ser comprovado a posteriori, todavia, a priori, poder-se-ia "determinar, formalmente, as condições de que se devem revestir os valores e seu projeto de realização para que uma ideologia logre eficácia histórica" (JAGUARIBE, 1979a, p. 148).

Conforme sua adequação em relação às condições sociais – e às exigências históricas – a ideologia seria "autêntica" ou não, autenticidade essa que – como é também sugerido por Jaguaribe – só revelar-se-ia post festum, com a verificação de sua eficácia depois de consumadas as experiências do período:

As opções políticas são sempre relativas e, por mais objetivos e válidos que sejam os métodos empregados para se chegar a elas, escapam à possibilidade de julgamento em termos de estrita verdade ou erro. Neste campo, não há verdades; há decisões. Estas serão racionais ou arbitrárias, autênticas ou inautênticas, representativas ou não. O que importa, por isso mesmo, é empreender o esforço de esclarecimento necessário para assegurar a validade das decisões. (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 171).

Sendo assim...

Não se pode aprisionar a História em fórmulas. Não há para os problemas históricos soluções definitivas, universais e permanentes. Mas há soluções autênticas e inautênticas, profundas e superficiais. As soluções que correspondem aos imperativos históricos do momento, e o satisfazem em profundidade, inauguram ciclos e se convertem em marcos para o subseqüente processo do devenir histórico. (JAGUARIBE, 1979a, p. 147).[75]

No entanto, concebiam o desenvolvimento como uma espécie de missão histórica, e mais, se o apresentavam como conceito amplo (histórico, econômico, político, cultural...), freqüentemente, no arrematar teórico crucial das questões, predominava em muito o aspecto econômico, esfumando os outros aspectos como colaterais ou simplesmente efeitos daquele.

As dificuldades do desenvolvimento, necessariamente, levavam à conceituação das deficiências, das fragilidades na formação histórica brasileira, daí a interpretação da condição do Brasil como país moldado pelo colonialismo, semicolonialismo e subdesenvolvimento:

O colonialismo, mais do que uma situação política, é uma situação econômico-social, caracterizada pela dependência de uma determinada comunidade – a comunidade colonial – para com outra comunidade – a metropolitana – ou para com outros países econômico-socialmente autônomos. Nesse sentido econômico-social, que não implica necessariamente a dependência política, as duas principais características do colonialismo são, em primeiro lugar, o fato de a comunidade colonial estar organizada como um instrumento a serviço de sua metrópole ou, de modo geral, dos países econômico-socialmente autônomos. Em segundo lugar, o fato de que a comunidade colonial só poder desenvolver-se com impulsos exógenos. É esta segunda característica que torna relativamente sem importância o estatuto político da sociedade colonial, cuja dependência para com o exterior nem decorre basicamente da coação política nem constitui para tal sociedade unicamente um ônus, mas antes representa sua própria forma de existência. As comunidades coloniais, de certo modo, são núcleos geográfica e socialmente descentralizados das sociedades que desempenham para com elas a função de metrópole. (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 175).

Não era inédita a interpretação do processo histórico brasileiro por meio do conceito de "colonialismo". A novidade da abordagem ibespiana é a concepção do fenômeno como algo generalizante, sistêmico, tanto enraizado quanto dinâmico, no rastro das elaborações de Balandier (1976) e Sartre (1968).[76]

Segundo a análise ibespiana, o Brasil teria sido colonial até meados do séc. XIX, a partir daí, adquiriria uma condição semicolonial: "O semicolonialismo, como indica o termo, caracteriza uma situação intermediária entre o colonialismo e a autonomia econômico-social" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 176). Tal condição perduraria até os primeiros decênios do séc. XX quando, a partir dos acontecimentos de 1930 e da 2ª Guerra Mundial, passaria ao subdesenvolvimento. Já esse é definido como "um fenômeno econômico-social de caráter global, cuja explicação se tem de encontrar na análise histórico-sistemática do processo econômico-social de cada país" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 173, grifos nossos), sendo subdesenvolvidas as economias "[...] que, por deficiência de seus fatores de produção, especialmente por falta de capital, não disponham, por conta própria, da possibilidade de dar aos seus fatores, em regime de pleno emprego, a máxima utilização permitida pela técnica existente, num momento dado" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 176-7).

Assim, mesmo havendo preocupação com uma definição ampla e profunda do subdesenvolvimento, bem como a respeito da particularidade da relação e situação de cada país para com o processo global,[77] predomina uma definição de caráter estritamente econômico, relegando a clarificação dos laços particulares da situação brasileira e incorrendo numa explicação genérica da relação, aplicável praticamente a qualquer caso.

No que diz respeito à posição brasileira na geopolítica, pleiteavam os ibespianos uma posição de eqüidistância e neutralidade com relação à polarização EUA-União Soviética, neutralidade essa firme mas sem isolamento, uma vez que o país não teria cacife político para bancar uma posição radicalmente independente, sendo tático e prudente aguardar o fortalecimento de uma terceira posição que se consolidava em outros países então chamados "não-alinhados".[78]

Analogamente, havia uma análise das classes sociais e suas relações, visando identificar os interesses, horizontes de ação e prováveis arranjos políticos que poderiam viabilizar um projeto de desenvolvimento. Ainda que presente como influência teórica, o marxismo é demasiadamente modificado na análise pela predominância do nacionalismo, pois alguns supunham que: "A rigidez da explicação marxista implicou no menosprezo de fatores como as nacionalidades, que se mostrou na realidade histórica, muito mais poderosa do que a suposta solidariedade de classe" (FERNANDEZ, 1979, p. 101).

A burguesia era vista como uma classe que sofria com escassez de capital, sendo esse – consideradas as conseqüências – o principal fator da alienação que a acometeria, além disso, haveria um "despreparo ideológico" (principalmente da burguesia industrial) e uma "falta de representatividade ideológica", daí...

[...] o fato de manter artificialmente na direção de classe o setor da mesma [burguesia mercantil e oligarquias] ligado a uma economia superada e reacionária, e como conseqüência, o fato de o Estado não estar prestando à classe os serviços que lhe poderia proporcionar e de os interesses burgueses não encontrarem a defesa e as facilidades de expansão com que poderiam contar, em termos que viriam de encontro aos interesses das demais classes. (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 241).

Cumpriria ao "setor industrial de nossa burguesia assumir mais decididamente, inclusive para fins político-sociais, a liderança econômica que já exerce" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 240).

Já o proletariado, em seu setor urbano, teria como interesses diretos a expansão e a diversificação do parque industrial brasileiro. De outro lado, no setor rural, assinalavam os ibespianos que o "trabalhador rural, ou mais especificamente, o campesinato, precisa, imperiosa e urgentemente, da racionalização de nosso sistema agrário, em termos de elevação da produtividade rural e da abolição dos processos e do regime semicoloniais de produção" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 241).[79] Ou seja, na visão dos autores, os interesses da "classe proletária" se orientariam, "de modo geral, segundo duas linhas: a do aumento da produtividade e da produção e da melhoria das condições de vida e das oportunidades de acesso aos níveis superiores da sociedade" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 241).

Uma "comunidade de interesses" uniria o proletariado ao setor industrial da burguesia, sendo indispensável para ambos uma aliança para alavancar o desenvolvimento, pois, tal como esse setor burguês (dentro das circunstâncias de solidariedade nacional que o momento exigia), o proletariado não teria autonomia e representatividade suficiente para encampar autonomamente um projeto:

A falta de representatividade das ideologias operárias correntes no Brasil se revela, como ocorre com a ideologia burguesa corrente, pelo fato de o proletariado ser conduzido ao culto personalista de chefes carismáticos – em vez de à compreensão dos interesses da classe e à sua defesa organizada – e ainda pelo fato de mobilizar os trabalhadores contra a produtividade e no sentido de um assistencialismo paternalista. (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 242).

Não se trataria assim de implementar "programas utópicos", mas de esclarecer os trabalhadores a respeito de seus "verdadeiros interesses", isto é, o socialismo não seria uma bandeira adequada ao momento histórico; o desenvolvimento, obviamente entendido como desenvolvimento capitalista, sim seria imperativo.

A classe média[80]tenderia a reivindicar "facilidades de consumo" e persistiria no "parasitismo burocrático", engalfinhando-se na disputa de empregos públicos; consideraria os problemas sociais e econômicos em termos idealistas e moralistas, beneficiando com suas posições a burguesia mercantil e as oligarquias que se apoiariam "na opinião pública pequeno-burguesa e nas Forças Armadas, para prolongar, em seu benefício, o subdesenvolvimento e o semicolonialismo"; por outro lado, caberia "aos quadros técnicos e administrativos e aos intelectuais da classe média a tarefa de desmascarar essa mistificação" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 242-3). Promover a superação do subdesenvolvimento e da política de clientela seria tarefa – dentre essa classe média – para uma parcela ilustrada, de formação técnica ou intelectual e desvinculada do parasitismo de interesses.

Nesse quadro, a relação de auxílio econômico-social do Estado para com a classe média era vista como clientelismo e cartorialismo; para com o proletariado, como assistencialismo e paternalismo; já o auxílio à burguesia industrial seria uma questão econômico-política estratégica.

Ao analisar a configuração das classes, o projeto ibespiano identificava um hiato: "[...] estabeleceu-se um descompasso entre a nossa vida civil, cada vez mais impulsionada, sob a liderança da burguesia industrial, no sentido do desenvolvimento, e nossa vida política, que permaneceu sob o controle das velhas elites dirigentes" (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 221). Desse modo:

A revolução política de que necessitava e continua necessitando o país, e para a qual havia e há cada vez mais condições favorecedoras e até determinantes, era e é uma revolução orientada para o desenvolvimento econômico-social, tendo por objetivo imprimir ao Estado a funcionalidade e a eficácia de que carece e ajustar o processo político ao econômico-social. Tratava-se e continua a se tratar de liquidar o poder político dos remanescentes da oligarquia rural, de acabar com a política de clientela e de estabelecer uma política ideológica que ajuste a organização, o funcionamento e a orientação do Estado aos imperativos do desenvolvimento e às novas forças econômico-sociais do país. (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 237).

A reorganização funcional passaria pela atuação de um setor da sociedade civil profundamente atento às necessidades do Estado: a intelligentzia.

Se tal crise [a "crise brasileira"] vier a persistir sem solução, no que se refere à reforma do Estado e à modificação do processo político-social, a solução se imporá, de qualquer modo, no sentido de um reequilíbrio entre o Estado e a sociedade civil.

[...]

A principal dessas condições [para a reforma do Estado] é a intervenção, no processo político-social brasileiro, de uma vanguarda esclarecida e eficaz, apta a despertar, nas novas forças dirigentes de nosso processo econômico-social, a consciência de seus interesses e das possibilidades de serem eles atendidos em termos convenientes para toda a comunidade. (INSTITUTO BRASILEIRO DE ECONOMIA, SOCIOLOGIA E POLÍTICA, 1979, p. 237, grifos nossos).

Caberia à intelligentzia – como "vanguarda esclarecida" e ator social privilegiado em termos de consciência – propor alternativas, pensar a reforma do Estado, esclarecer e sintetizar interesses, em suma, elaborar um projeto que unisse – reorganizando – sociedade civil e Estado, a partir desse como instância proeminente da transformação. Tal papel de vanguarda, ao que parece, era reivindicado pelo próprio IBESP.

Segundo um analista, o IBESP evoluiu "de um mero grupo de estudos para um grupo intelectual com projeto político próprio" (SCHWARTZMAN, 1979, p. 4) e contribuiu originalmente para a sedimentação de várias idéias-força que marcariam indelevelmente o ambiente político e intelectual brasileiro:

[...] o IBESP foi responsável por uma série de ingredientes que teriam uma presença duradoura no ambiente político brasileiro: o desenvolvimento de uma ideologia nacionalista que se pretendia de esquerda, em contraposição aos nacionalismos conservadores do pré-guerra; a difusão das idéias de uma "terceira-posição" tanto em relação aos dois blocos liderados pelos Estados Unidos e União Soviética quanto em relação aos pensamentos marxista e liberal clássico; uma visão interessada a respeito do que ocorria nos novos países da África e Ásia; a introdução do pensamento existencialista entre a intelectualidade brasileira; e, acima de tudo, uma visão muito particular e ambiciosa do papel da ideologia e dos intelectuais na condução do futuro político do país. (SCHWARTZMAN, 1979, p. 5-6).[81]

E sua originalidade radical estaria na forma de atuação intelectual:

O que dá ao IBESP sua característica inovadora na história do pensamento político brasileiro é que, pela primeira vez, um grupo intelectual se propõe a assumir uma liderança política nacional por seus próprios meios. Neste sentido, o IBESP é radicalmente novo. Ele se diferencia dos pensadores políticos do passado que acreditavam que seriam suas idéias, se corretamente aplicadas – fossem elas liberais, católicas ou conservadoras –, que iriam transformar a sociedade. E se diferencia, também, dos pensadores de influência marxista, que se alinhavam, física e intelectualmente, com um setor da sociedade que, acreditavam, viria um dia a liderá-la, ou seja, a classe operária. Para os primeiros, as idéias políticas fariam tudo; para os segundos, elas podiam pouco. Para o IBESP, eram os intelectuais, mais do que suas idéias ou partidos, que poderiam, um dia, tomar o destino do país em suas mãos. (SCHWARTZMAN, 1979, p. 4).

Mesmo conhecido como a ante-sala do ISEB, o IBESP não é o passado necessário do ISEB, talvez mesmo o ISEB não seja a realização "natural" do intento ibespiano: apesar dos componentes, das influências e das análises que perduraram, o Grupo de Itatiaia e o IBESP têm uma história própria, abordagens diferenciadas e, sobretudo, uma inserção original no contexto brasileiro. Na "transição" para o ISEB permaneceram nomes como Helio Jaguaribe, Nelson Werneck Sodré, Roland Corbisier, Ignácio Rangel, Cândido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos, etc., e manteve-se a influência da análise econômica da CEPAL, da aplicação do existencialismo à realidade social, a posição de engajamento... Todavia, a forma como se organizava e as funções às quais aspirava mudaram.

O IBESP procurou congregar intelectuais e constituir-se como uma intelligentzia, acentuando a posição mannheimiana da intersticialidade, da flutuação social dessa camada socialmente "desvinculada" – embora não ausente das relações de classe (cf. MANNHEIM, 1972; 1974) –, funcionando menos como um ator político de posição determinada e mais como ator "ilustrado", de posições caleidoscópicas num amplo leque de análise, procurando elaborar sínteses e, concomitantemente, identificar faces da mesma questão e relacionar os interesses das classes aos projetos possíveis. Em suma, o IBESP não se notabilizou como "partido" político dos intelectuais e sim como pretensa "consciência social" teórica dos dilemas do país.

No período na Assessoria de Vargas, Grupo de Itatiaia e IBESP, Guerreiro Ramos começou a envolver-se com outros temas que lhe seriam caros daí em diante, tais como: a condição do negro e o preconceito, o pensamento social e a sociologia no Brasil, aspectos políticos e econômicos – e não tanto administrativos – da estrutura social, etc. Alargaram-se e aprofundaram-se seus temas e análises, emergiu uma preocupação com a estrutura social, sua dinâmica e seus vários aspectos, tendo realce as formas de organização política e tomada de decisões – provavelmente fruto da proximidade com o exercício do poder. Nesse sentido, sob os imperativos da efetividade e pragmatismo no exercício do poder, Guerreiro Ramos participou da confecção de uma interpretação diagnóstica da sociedade brasileira, problemas e eventuais possibilidades de superação. Esse projeto, exposto basicamente nos Cadernos de Nosso Tempo, prescreveu boa parte da agenda política-intelectual e fixou marcos para a interpretação teórica – mormente em chave nacionalista – daquele período em diante. A busca de uma visão totalizante e descompromissada – nos termos de uma desvinculação em relação aos interesses imediatos de classes sociais – levou os artífices do projeto, e Guerreiro Ramos em particular, à tentativa de se qualificarem no papel de uma intelligentzia, ainda muito próxima do Estado, mas agora também em busca de lastros na sociedade civil, da qual ela ainda duvidava da aptidão política e organizativa, mas menos da efetividade.

4. ISEB: fábrica de controvérsias

Em 1955, é fundado o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), Guerreiro Ramos – um dos fundadores e Diretor do Departamento de Sociologia – integra-o até 1958, quando rompe com Helio Jaguaribe e deixa o instituto. Durante sua estadia, o sociólogo promoveu cursos regulares e proferiu várias conferências, produzindo também significativa parte de sua obra, principalmente: Condições sociais do poder nacional (1957), Ideologias e segurança nacional (1957), Introdução crítica à sociologia brasileira (1957) e A redução sociológica (1958).[82]

O ISEB nasceu e morreu em circunstâncias curiosas, em momentos confusos, por meio de decretos assinados por figuras inexpressivas da política brasileira exercendo provisoriamente o poder: foi criado em 1955, por um decreto do Governo interino de Café Filho, e extinto em 13 abril de 1964, por decreto de Ranieri Mazzili (Presidente provisório).[83]

No início, o instituto congregava em seus conselhos Curador e Consultivo uma enorme gama de personalidades, das mais variadas tonalidades ideológicas: Anísio Teixeira, Roberto Campos, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Miguel Reale, Horácio Lafer, Pedro Calmon, Augusto Frederico Schmidt, Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Heitor Villalobos, Fernando de Azevedo, San Tiago Dantas, etc. Tinha como diretor Roland Corbisier e como responsáveis pelos departamentos Álvaro Vieira Pinto (Filosofia), Cândido Mendes (História), Ewaldo Correia Lima (Economia), Helio Jaguaribe (Ciência Política) e Alberto Guerreiro Ramos (Sociologia); esses, juntamente com Nelson Werneck Sodré – remanescentes do IBESP – influenciariam os rumos do instituto.

Ao longo da existência do ISEB, mudanças de personalidades e de posicionamento político, tom das análises e tonalidades ideológicas, levaram os comentaristas a distinguir possíveis "fases" em sua trajetória. Daniel Pécaut (1990, p. 112-3) identifica três etapas: 1) do início (1955) até crise gerada em torno do livro de Helio Jaguaribe e, logo a seguir, o afastamento de Guerreiro Ramos, 1958; 2) desse acontecimento até as desavenças na disputa eleitoral presidencial entre Jânio Quadros e Mal. Lott, (1960); e 3) da configuração esquerdista até 1964 (o fechamento). Já Caio Navarro de Toledo (1982, p. 186-9), define também três etapas (sem detalhar datas), limita-as do seguinte modo: 1) início de posições ideológicas ecléticas e conflitantes; 2) período da ideologia nacional-desenvolvimentista, 3) defesa das Reformas de Base. Octávio Ianni (1985, grifos do autor) identifica sumariamente duas fases: uma primeira na qual teria maior ascendência o modelo de desenvolvimento capitalista "neobismarckiano, nacional-desenvolvimentista ou do nacionalismo-desenvolvimentista" (1955-1958) e uma segunda fase – mais "heterogênea" ou mesmo "contraditória" – na qual predominou o modelo de "capitalismo nacional" (1958-1964). Helio Jaguaribe (1979d, p. 96-7; 2005) percebe três fases: 1) do início até a crise de 1958, na qual o instituto tinha vocação "teorizante" e "problematizante"; 2) de 1959 até 1960 (sob a direção de Roland Corbisier), de caráter predominantemente "militante"; e 3) de 1959 até 1964, eminentemente militante, de radicalização na direção de um "socialismo populista". Jorge Miglioli (2005, p. 63), provavelmente considerando as mudanças de personagens, problemas e atitudes políticas e intelectuais, define duas fases: 1) do início até 1958 e 2) daí até 1964.

Nesses breves nove anos, vários conflitos – choques de personalidades, de análises, posicionamentos políticos (inclusive eleitorais), etc. – agitaram o ISEB: o estreitamento do grupo de participantes, as disputas internas, o controverso apoio à candidatura presidencial do Mal. Lott, a polêmica em torno do livro de Helio Jaguaribe (Nacionalismo na atualidade brasileira, 1958), as críticas de Guerreiro Ramos a Jaguaribe e a Álvaro Vieira Pinto,[84] a pressão da UNE no sentido de um alinhamento ideológico, o boicote orçamentário,[85] as diferenças entre o nacionalismo dos antigos isebianos e o esquerdismo dos novos, entre outros.

Não obstante, os conflitos não se limitam à convivência interna, os analistas e comentaristas que se debruçaram sobre o ISEB travaram (e travam) severas batalhas; de fábrica de ideologias, órgão oficial (ou oficioso) de Governo (JK) a bastião da esquerda nacionalista e revolucionária, muito foi dito a respeito dele.[86]

Em livro pioneiro e já notório sobre o assunto, Caio Navarro de TOLEDO (1982) desconstrói ideologicamente o discurso do que chamou "fábrica de ideologias". Em sua visão, a produção isebiana, além da falta de rigor teórico, confundiria ciência e ideologia, e esposaria uma posição não-democrática, na qual o elitismo e tecnocracia da intelligentzia, pretendendo tutelar as classes dominadas, hipotecariam apoio a uma suposta burguesia nacional,[87] levando a um equivocado projeto de desenvolvimento, que não seria equivalente – como criam os isebianos – à autonomia e liberação nacionais; seria ainda a ideologia isebiana de inspiração intelectualista e de classe média. Mais tarde, o mesmo autor caracterizará o instituto como "aparelho ideológico de Estado", embora não na acepção althusseriana (TOLEDO, 1986) e, analisando-lhe a influência marxista, localizará um "marxismo indigenista" nas formulações dos autores (TOLEDO, 1998). Em texto recente ("ISEB: ideologia e política na conjuntura do Golpe de 1964"), ao ocupar-se mais do "último ISEB" (1959-1964) e opô-lo ao IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), o autor salienta que, apesar dos equívocos políticos e ideológicos, o ISEB "deve ser lembrado como uma instituição cujos intelectuais se comprometeram com a defesa de causas progressistas e de caráter democrático" (TOLEDO, 2005, p. 162-3).

Ao radicalizar certo posicionamento presente em Toledo, Maria Sylvia de Carvalho Franco (CHAUÍ e FRANCO, 1985, p. 153-4), em tom bem menos prudente (e um tanto genérico), avalia que os isebianos teriam sustentado a "consciência burguesa em sua autojustificação", a saber:

[...] a razão instrumental em suas variantes de técnica, de ciência social, política científica; a visão da história como movimento natural percorrendo o caminho que necessariamente leva à epifania e uma classe salvadora; a instalação de um todo harmonioso unificado pelo bem comum e eqüitativamente atravessado pelo progresso e pela justiça (FRANCO, 1985, p. 154).

O que produziria "miragens" cristalizadas no jargão científico ou filosófico e que travestiria...

[...] o senso comum em conhecimento, usando simples definições indemonstradas, postulando o iluminismo de uma classe e concebendo sua antropomorfização, com o autoritarismo disfarçado em revolução social, com as projeções soterológicas apelando para o obscuro sentimento das massas e para o misterioso sentido do destino. (FRANCO, 1985, p. 154).

Desconfiado do caráter oficial e instrumental atribuído ao ISEB, Renato Ortiz (1994, p. 46) traz ao debate um componente problematizador das análises anteriores: o contexto social. Ao referir-se a Caio Navarro de Toledo, argumenta que, na análise desse, permaneceria "um descompasso entre a realidade e a crítica, uma vez que os conceitos são articulados ao nível político e a crítica é sobretudo de caráter filosófico". Afirma, então, que a atualidade do pensamento do ISEB estaria justamente no fato de não se constituir numa "fábrica de ideologia" do governo Kubitschek, pois se o Estado desenvolvimentista "procurou uma legitimação ideológica junto a um determinado grupo de intelectuais, não é menos verdade que os avatares desta ideologia caminharam em um sentido oposto ao do Estado brasileiro". Já ao se referir a Maria Sylvia de Carvalho Franco, discorda da alegação de que os escritos isebianos sejam um "coquetel filosófico", "uma distorção do idealismo", "um arranjo indigenista do marxismo" e muito menos uma "leitura sem rigor", uma vez que, desse modo, "seria difícil, dentro dessa perspectiva, entender o porquê da hegemonia de um pensamento que se difunde praticamente em toda a esquerda brasileira", logo, se o período Kubitschek seria um "tempo de ilusões" [expressão de M. S. de C. Franco], também seria necessário descobrir a que realidade essas ilusões corresponderiam (ORTIZ, 1994, p. 49).

Bolívar Lamounier (1978, p. 154) também questiona a envergadura das análises que não se deteriam no contexto e, mais ainda, promoveriam certa inversão ideológica ao partir de um "simplismo": tudo o que se referisse à categoria "nação" seria ideologia, o que dissesse respeito às classes seria a verdade – a crítica da ideologia. Elaborar-se-ia assim "um dicionário, ou uma errata", simplesmente substituindo os termos "povo", "nação", "desenvolvimento nacional", por "burguesia, ou mistificação burguesa, ou pequeno-burguesa". O autor também esboça sua própria – e original – crítica: "o ISEB jamais elaborou uma teoria satisfatória da organização e da representação política.[88] A contrapartida do nacional-desenvolvimentismo no terreno propriamente político parece ter sido um populismo ou plebiscitarismo implícito" (LAMOUNIER, 1978, p. 156). Ainda, invertendo determinadas posições, localiza virtudes isebianas e posições ideologizantes dos críticos, que veriam um "obscurecimento ideológico dos problemas de organização política autônoma da classe operária" no que seria – nos trabalhos do ISEB – "um diagnóstico substantivo" que identificaria a superorganização dos setores conservadores, "antinacionais" (a burguesia agrário-mercantil, a classe média parasitária etc.), os quais controlariam o Congresso Nacional e outros pontos estratégicos na estrutura de poder. Os isebianos, assim, teriam inserido uma problemática da organização dos débeis setores "progressistas" e afirmado o imperativo de uma ampla aliança entre esses setores e o Poder Executivo. O uso do conceito de "obscurecimento" pelos críticos do ISEB estaria associado "a certa incapacidade de compreender que o mundo real da política impõe alianças e barganhas, explícitas ou tácitas, as quais sempre se refletem na linguagem teórica", e tal equívoco teria levado esses críticos a diagnosticar como ilegítima a atuação do ISEB, quando este propunha encontrar e definir um terreno de aliança política (LAMOUNIER, 1978, p. 157-8).

Em contrapartida às críticas de Bolívar Lamounier quanto às deficiências na construção de uma análise das instituições e da representação, e às de Caio Navarro de Toledo quanto à análise das classes, Vanilda Paiva (1986, p. 155) estabelece conexões entre as elaborações filosóficas do ISEB, a análise das classes sociais e uma estratégia política "lúcida" em relação ao arcabouço institucional.[89] Para ela, os isebianos teriam proposto a tarefa de "iluminar o caminho" da burguesia industrial nacional, apontando-lhe seus verdadeiros interesses e formulando as estratégias necessárias à conquista da hegemonia política, e não somente à transição da "consciência ingênua" à "consciência crítica" por parte dessa burguesia industrial:

A estratégia de tal conquista passava pelos caminhos da democracia parlamentar, supondo uma conquista política através do voto: seu fundamento era uma frente nacional pelo desenvolvimento formada por diversas classes que se reconciliavam exatamente através da aquisição da "consciência crítica" que as permitiria entender a realidade, captar suas exigências, seus limites "faseológicos", aceitar e promover a mudança comandada pela razão e pela prática do diálogo permitido e estimulados pelas práticas políticas características da liberal-democracia. (PAIVA, 1986, p. 155).

Aflui – e daí o acréscimo de um novo elemento às análises – a importância da educação como instrumento transformador; se "publicações, cursos seminários, poderiam ser os instrumentos para atingir as classes dominantes e a classe média", outros instrumentos seriam igualmente perseguidos para atingir as massas, já que a "educação destas era de grande importância dentro da estratégia isebiana, porque seu voto era essencial para a realização de suas propostas política e econômico-social", daí a ênfase na conscientização e organização ideológica dessas massas (PAIVA, 1986, p. 137-8).[90]

De modo peculiar, Jorge Miglioli (2005, p. 69) toca num tema pouco cuidado: "Nenhum professor do ISEB se interessou em defender a idéia de um Estado democrático nesse processo ["de transformação econômica, social e política da sociedade brasileira"]. A democracia foi um tema quase ausente no período, não só entre os isebianos.[91]

Por seu turno, Octávio Ianni (1985) identifica no modelo de desenvolvimento capitalista isebiano – da fase inicial, a saber, de "ideologia do desenvolvimentismo" –, calcado principalmente no pensamento de Helio Jaguaribe, as seguintes características: 1) uma compreensão dualista da sociedade brasileira; 2) a proposta de um "Estado funcional" para o desenvolvimento; 3) a direção de tal Estado, conforme uma ideologia do desenvolvimento, pelas "elites esclarecidas e deliberantes" (mormente empresários industriais e intelectuais); 4) omissão do papel das classes sociais, salvo o que corresponderia à burguesia empresarial ou industrial; e 5) a necessidade de um Estado autoritário para a realização do projeto. Ou seja, uma forma de modernização conservadora para o avanço do ciclo da revolução burguesa no Brasil.

À procura da resposta às análises que pecavam pelas deficiências contextuais, Luiz Carlos de Oliveira Marinho (1986, p. 165) estuda o ISEB no seu "contexto histórico", isto é, analisando os governos de Vargas (1951-1954), de Kubitschek, Jânio e Jango; conclui que "o ISEB, apesar de sustentado pelo Estado, não permaneceu encastelado em si mesmo", nunca teria sido uma "usina" ideológica instalada no centro do poder e manipuladora, teria sim uma "postura ideológica" que seria "permeável às manifestações não só do Estado, mas de qualquer grupo politicamente ativo no interior da sociedade brasileira", permeabilidade que possibilitaria "rever e mudar o perfil dos próprios alinhamentos políticos em função dos novos rumos tomados pelo Brasil".[92]

De outro lado, eximindo os isebianos da condição de conselheiros de Juscelino Kubitschek, mais pela elevada estatura do governante que pela influência daqueles intelectuais, Maria Victória de Mesquita Benevides (1976, p. 241), em estudo sobre o Governo JK, reduz o ISEB a "outro recurso habilmente usado pelo Executivo para a propaganda do desenvolvimento e, principalmente, para o fortalecimento do Estado". Todavia, para Alzira Alves de Abreu (2005, p. 103-4), o isebiano, considerado um "intelectual de transição", não seria mais o "bacharel", o "idealista" de valores humanistas e literários, nem ainda o detentor de um "saber técnico", justamente por isso os isebaianos não teriam sido intelectuais influentes num Governo (JK) orientado para o desenvolvimentismo e não necessariamente para o nacionalismo.

Já Daniel Pécaut (1990, p. 110) tenta elucidar a relação ISEB-Estado sem, entretanto, negligenciar que, tendo momentos diferentes, conseqüentemente dever-se-ia diferenciar os posicionamentos políticos nas várias "fases" do instituto e suas nuanças. "O primeiro ISEB prolongou a tradição de 1930. O intelectual fala a partir da posição do poder, enquanto intérprete da modernização. Nesse papel, aproxima-se de outras elites modernizadoras, militares, tecnocratas, etc." (PÉCAUT, 1990, p. 38). Todavia, ao final, alinhar-se-ia à esquerda. Reconstruindo o contexto, Pécaut apela à memória dos críticos para lembrar que a ideologia nacional que os isebianos propunham estaria em consonância com o nacionalismo largamente difundido na opinião pública, que tais posições estariam presas às cisões que dividiriam tanto as elites como as classes médias brasileiras e, por fim, que os isebianos teriam se engajado à esquerda à medida que se acentuariam as tensões políticas, e estariam indiscutivelmente ao lado das forças progressistas, sendo assim percebidos tanto por seus aliados quanto por seus adversários. "Durante o governo Goulart, os isebianos alinharam-se ao lado das outras organizações que, desde o PCB até a Ação Popular, lutavam pelas reformas de base. Esquecer esses dados, como fazem com freqüência os críticos de 1980, leva a desvalorizar o alcance dos temas da ruptura e da racionalidade" (PÉCAUT, 1990, p. 124).

Sobre o mesmo panorama histórico, Alfredo Bosi (1980, p. IV) vislumbra um outro ISEB, caracterizado como "arremedo de resistência" à integração Brasil-Imperialismo e difusor de uma "ideologia conciliante e ineficaz", que tenderia "a imitar, a curto prazo, os males que a fizeram nascer, males do gigantismo industrial e burocrático". Em contrário, Helio Jaguaribe (1979d, p. 109) assevera o fato do ISEB ter sido uma "intelligentzia contestatária do Brasil primário-exportador e representativo de uma coligação de setores progressistas, orientados para o desenvolvimento econômico-social e a afirmação autonomizante do nacionalismo".

Ao reivindicar a herança isebiana, Luiz Carlos Bresser-Pereira (2004) não deixa de apontar que o ISEB superestimou a capacidade do setor moderno da economia em absorver mão-de-obra do setor marginalizado, não deu a devida importância à elevação do nível de vida e capacidade empresarial dos setores marginalizados ou excluídos do desenvolvimento, subestimou as táticas do imperialismo para impor políticas econômicas aproveitando-se da fragilidade dos países endividados externamente e da falta de consciência nacional de suas elites, e, finalmente, não se deu conta de que não bastaria acumular capital e agregar progresso técnico, seria preciso que o país se mantivesse solvente financeiramente, crescendo com seus próprios recursos, pois o endividamento externo implicaria a alienação das elites e imobilização do Estado, agravando a dependência e inviabilizando o projeto nacional.[93]

Por sua vez, Carlos Guilherme Mota (1980) ressalta o "nacionalismo ingênuo" e a produção ideológica (logo anticientífica) cujo teor teria servido às justificações juscelinistas; tais considerações, todavia, serão alvo de veemente contestação de Nelson Werneck Sodré (1978b, p. 133), que a dirige também – porém de modo respeitoso – à análise de Caio Navarro de Toledo. Para Sodré, Mota – "o travesti impune" – representaria o "serviçal da reação", mas apresentar-se-ia como adversário dela, conduta reconhecida pela farsa de apresentar-se sempre como inimigo e, todavia combater "não a reação e seus valores" e sim "a oposição à reação e os que a compõem e nela militam, com todas as dificuldades – dificuldades que correspondem, simetricamente, às facilidades com que o travesti desempenha as suas tarefas". Também seria Mota, nas palavras de Sodré, representante do "rebotalho" universitário que se formou no pós-1964, que primaria pelo "carreirismo" e pela mútua proteção à sombra do poder, de que seria exemplar a "máfia docente" que teria se formado em São Paulo.

Por fim, Paulo Freyre identificou no ISEB um marco, uma nova forma de ver o Brasil, que teria invertido a tendência do intelectual brasileiro à fuga e ao alheamento da realidade brasileira.

O ISEB, que refletia o clima de desalienação política característico da fase de transição era a negação desta negação, exercida em nome da necessidade de pensar o Brasil como realidade própria, como problema principal, como projeto [...] Era identificar-se com o Brasil como Brasil. A força do pensamento do ISEB tem origem nesta identificação com a realidade nacional. (apud PAIVA, 1986, p. 83).

Sem dúvida o ISEB permanece um capítulo desafiador do pensamento social no Brasil, com o tempo – ao que parece – as paixões estão arrefecendo e as análises estão lucidamente aproximando-se de um entendimento mais amplo da questão, o que talvez proporcione uma revisão histórica que problematize os estigmas isebianos: arcar com um enorme ônus do passado, pagar uma imensa parcela das dívidas – não somente suas – do nacionalismo, desenvolvimentismo, aliança de classes, ilusão quanto a uma burguesia pretensamente comprometida com o nacionalismo, etc. As críticas ao ISEB, salvo algumas mais agudas, poderiam – em sua maioria e sem grandes contorcionismos nos argumentos – ser dirigidas a grande parte das forças consideradas progressistas (e estendida mesmo à esquerda mais contestadora) no período. A crítica, em geral, elegeu o instituto como "bode expiatório", porém, as trevas de 1964 caíram sobre todos e em muito sobre o ISEB, que se tornou vítima e culpado.[94]

Segundo Schwartzman (1979, p. 6): "O ISEB foi, essencialmente, uma tentativa de levar à frente os ideais do IBESP. Daí sua marca e daí, em última análise, o seu fracasso". Certamente o ISEB foi uma das formas (possíveis) de desenvolvimento – radicalizado – do projeto IBESP, talvez uma das mais pragmáticas; daí derivar seu fracasso, é uma outra história.

O ISEB[95]institucionalizou-se, alargou o espectro das análises, agregou novos temas e aventurou-se tanto no debate intelectual quanto na intervenção política e social, procurando uma maior inserção – seja atuando como interlocutor do Estado e de alguns governos (mormente o de Juscelino Kubitschek), seja ministrando cursos e comunicações (algumas realizadas em outros recantos do país) e influenciando intelectuais, estudantes, sindicalistas e outros componentes da sociedade civil, bem como militares. Como instituição de saber, atuou também como ator político, engajando-se diretamente nas questões e atracando-se na luta ideológica. Em sua proximidade com o Estado e convicção de seu privilégio de interpretação da realidade nacional, persistiam seus liames com a geração intelectual anterior e com o IBESP, entretanto, já não intenta organizar o Estado e construir a nação a partir deste ou diagnosticar de modo socialmente desvinculado as aspirações nacionais de alcance do moderno.

Ao indicar a existência de uma estrutura de classes e a emergência de decorrentes reivindicações, o ISEB avoca para si a posição de organizador dessa emergente sociedade civil, da qual se arvora em representante. Representação esta que (1) não passa pela delegação (ocasional) de poderes, mas pela interpretação dos interesses profundos ("objetivos") dos diversos grupos sociais e o equacionamento do interesse "geral"; 2) funciona de modo a mediar a relação dessa sociedade civil (seus interesses e reivindicações) com o Estado; 3) elege o Estado – baseado na representação legítima de interesses – para efetivar o interesse "geral". Daí – em alusão aos críticos que ressaltam a omissão na reflexão sobre a representação política e seus mecanismos – fica claro que, embora houvesse reconhecimento por parte do ISEB da importância da representação, o primordial dessa representação não era o aspecto institucional: a "verdadeira" representação se dava pela identificação (em ambos sentidos) dos anseios sociais e sua representação "ideológica".[96]

Também a "negligência" quanto à questão da democracia, se por um lado deriva da concepção do desenvolvimento capitalista como processo orgânico – amplo, coerente e socialmente articulado nos vários aspectos – que traria consigo os avanços sociais em termos de participação, renovação de mentalidades, cidadania etc., por outro, se tomada a democracia simplesmente em termos de permeabilidade à participação política e garantias mínimas de representação no Estado, tal "negligência" pode ser creditada também ao modo de entender a representação política, já que o acesso ao Estado estaria garantido pela "correta" identificação do interesse geral. Esse interesse geral era o desenvolvimento, entendido como processo capitalista autônomo e nacional.

Ao identificar o interesse geral – que não é necessariamente comum às distintas classes sociais – o ISEB persistia no papel de intelligentzia (agora não no sentido mannheimiano) e procurava formular os termos da efetivação racional dos anseios sociais, a ideologia.[97] Tal intelligentzia já não se orientava por perscrutar os interesses das classes (e racionalizá-los), trazê-los à tona no xadrez político, mas identificar-lhes a legitimidade na composição de um projeto nacional. Já não se trata da empreitada ibespiana de estabelecer "um reequilíbrio entre o Estado e a sociedade civil" e sim de exercitar o comando da sociedade civil – e suas reivindicações frente ao Estado – na transformação da sociedade brasileira. As pretensões da intelligentzia (não mais de Estado ou mannheimiana e desvinculada) já se confundem com as da vanguarda civil e intelectual, representação "partidária".

Entretanto, diagnosticados interesses antagônicos dentro da sociedade civil, tal formulação ideológica não poderia contemplar os diversos grupos (classes) e seus interesses, vez que alguns grupos não se mostravam solidários ao empreendimento e outros interesses eram necessariamente incompatíveis. Daí alguns dos dilemas do ISEB que podem dar pistas para o entendimento de sua trajetória: como conciliar o papel de intelligentzia com a opção deliberada por determinados grupos e interesses (com o papel de vanguarda)? Como organizar e mobilizar a sociedade civil sem se chocar com a atuação do Estado como ator político central num contexto de mediação ideológica e não institucional? Como pensar a nação (e o nacional) como comunidade num contexto de afluência de interesses antagônicos? Como postular o desenvolvimento do capitalismo em termos nacionais e autônomos – e num contexto imperialista! – se os sujeitos sociais não se apresentavam obstinadamente para reivindicar a hegemonia do processo? Como implementar um projeto hegemônico a partir de uma direção postiça, vez que as tarefas seriam eminentemente burguesas? E, no limite, poderia uma intelligentzia – ainda que em sua pretensão de vanguarda – ser portadora de um projeto hegemônico?

Essa intelectualidade, em sua ânsia de universalidade, representava – no

limite – interesses que advinham de determinada verticidade social.

A ausência de um "povo" caracteriza o passado brasileiro, no momento em que os intelectuais do ISEB escrevem, afirma-se a existência de uma sociedade civil que não possui ainda a devida expressão política. Ao se colocarem como representantes legítimos do "povo", o que eles de fato estão procurando realizar é dar às classes médias um papel político que elas não possuíam até então. Neste sentido a proposta política só pode se reformista, nunca revolucionária. (ORTIZ, 1994, p. 64).

Ademais, poderiam as "classes médias" serem portadoras de um projeto social, ainda que reformista? Tal projeto, malgrado a heterogeneidade social desse grupo, poderia derivar de uma visão de mundo específica? Talvez a análise da trajetória – representativa – de Guerreiro Ramos possa fornecer elementos para a resposta.

Em sua passagem pela Assessoria de Vargas, Grupo de Itatiaia, IBESP e ISEB (na década de 1950), Guerreiro Ramos deu-se conta de que (e como) subjacentes às interpretações da sociedade brasileira agiam aguerridas forças e interesses expressos não somente teoricamente, mas, sobretudo, politicamente.

A política (e sua racionalidade própria) mostrava-se sempre presente nas questões, permeava todo o corpo social, transbordava para além dos marcos de contenção de uma luta entre razão e anti-razão; o Estado (e a administração) – então campeão da racionalidade – já lhe parecia mais uma arena que propriamente um combatente, uma arena a ser ocupada por agentes políticos temerários em domar o gigante e sujeitá-lo aos seus interesses. Situar-se e combater era um imperativo da práxis, afinal, a mudança, a modernização, o desenvolvimento, já não eram exclusivamente tarefas da elite política e da intelligentzia, pois afloravam grupos minimamente coesos na sociedade civil. Para Guerreiro, se os sujeitos desse processo ainda estariam se qualificando, quanto às armas, a principal delas ele já empunhara: a sociologia.

II - Às armas: a crítica conflagrada

"A sociologia é ciência por fazer."

Guerreiro Ramos

No início dos anos 1950, a produção sociológica de Guerreiro Ramos adquiriu alguma maturidade, produziu nessa década uma série de livros, dentre os principais: O processo da sociologia no Brasil (1953), Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo (1954), Introdução crítica à sociologia brasileira (1957), A redução sociológica (1958) e O problema nacional do Brasil (publicado em 1960, mas cujos textos foram todos produzidos na década de 1950).

Nesse período, também se envolveu em algumas polêmicas com Costa Pinto, Roger Bastide e Florestan Fernandes. Com Costa Pinto, sobre a questão do negro e o preconceito, havia certo ressentimento como combustível; com Roger Bastide, foi algo "amigável", talvez o único pelo qual Guerreiro mantivesse certo respeito intelectual, tanto que – ademais o cuidado de Bastide na argumentação – não se dispôs a atacá-lo; já com Florestan Fernandes a contenda tomou proporções importantes, não tanto devido à notoriedade ou inflexão, e sim pelos termos e a agenda que puseram em questão terem marcado época e influenciado os rumos da sociologia no Brasil.

Todos esses empreendimentos no sentido de produzir material crítico e de debate convergiam com a atitude de Guerreiro Ramos de promover uma ampla revisão da produção sociológica brasileira. A sociologia, naquele momento de acerba transformação do país, era tida como principal instrumento de consciência social, e Guerreiro – interpretando o momento – empunha-a não só naquele sentido, mas como instrumento de autoconsciência social e, logo, de autoconsciência e construção nacional.

A sociologia é então tomada – pelo autor – como arma primordial na luta pelo desenvolvimento do país, atuando em duplo front: instrumentalmente, na interpretação e formulação das questões nacionais e, reflexivamente, promovendo a depuração crítica necessária à sua instrumentalização. Destarte, para se qualificar como arma eficaz a sociologia deveria se destituir de seu caráter alienado e de seus instrumentos importados, sob pena de conceber equivocadamente a realidade que deveria transformar. Todavia, poderia ela resgatar-se, regenerar-se e reconstruir o país em novas bases?

Defrontou-se então o autor com a produção sociológica do seu tempo, promovendo aguda crítica e, simultaneamente, empreendendo um resgate das elaborações teóricas anteriores que, de seu ponto de vista, enfrentaram corajosamente o desafio de construir um conceitual apropriado à abordagem da sociedade brasileira. Nesse resgate, deparou-se com as origens da sociologia no Brasil, autores os quais reivindicou como predecessores e, também, um tema incômodo: o negro.

O negro trazia consigo uma importante questão social e histórica: o preconceito. Tal questão, irresoluta, ameaçava qualquer projeto de comunidade nacional, pois como construir a nação sem integrar plenamente (como cidadãos) uma grande parte da população? Não bastasse isso, a questão do preconceito, ao postular "o negro" enquanto "objeto", trazia intimamente para Guerreiro Ramos (como negro e sociólogo) um componente extremamente desagradável: como sujeito do conhecimento via-se, concomitantemente, reduzido a um "objeto" de estudo.

Não obstante os estatutos das ciências humanas e as pretensas imbricações teórico-metodológicas entre sujeito e objeto, punha-se para Guerreiro Ramos um dilema exasperante: a própria sociologia que o guindou a certa condição de classe, emprestando-lhe prestígio intelectual, agora, ameaçava postá-lo na passiva condição de "objeto" de reflexão – inclusive alheia.

1. O "problema" do negro e a sociologia do preconceito

Ao abordar a questão do negro no Brasil, Guerreiro Ramos não pôs de lado a crítica da metodologia, da importação equivocada de conceitos e da transplantação de idéias, conduziu suas investigações sem desvencilhar o tema das formas de tratamento dadas pela ciência social da época e sem seccionar o "objeto" das abordagens feitas pelos sociólogos, já que, no seu entender, eram faces do mesmo problema, em certa medida, formas que convergiam e/ou dinâmicas que se reforçavam.

Em "O problema do negro na sociologia brasileira",[98] afirma o autor que o negro teria sido estudado no Brasil "[...] a partir de categorias e valores induzidos predominantemente da realidade européia. E assim, do ponto de vista da atitude ou da ótica, os autores nacionais não se distinguem dos estrangeiros, no campo em apreço" (RAMOS, 1979, p. 39).

Haveria uma inadequação no uso de conceitos como "raça", "aculturação" e "mudança social", pois, suporiam um "quietismo" da sociedade brasileira, uma visão estática – logo conservadora – que desconsideraria as conseqüentes atualizações. O olhar dos antropólogos/sociólogos brasileiros estaria eivado de um estranhamento que reporia o objeto como algo exótico, à maneira dos estrangeiros verem o país e o tema.

Eis que o histórico das visões sobre o negro no Brasil teria – segundo Guerreiro Ramos – três correntes fundamentais:

1) a corrente autonomista do pensamento sociológico no Brasil, cujos estudos sobre o negro teriam sido inaugurados por Silvio Romero e continuados por Euclides da Cunha, Alberto Torres e Oliveira Vianna, e que, "mesmo errando ao focalizar o tema ("raça"), soube vencer a tentação de tratar o negro no Brasil como um elemento exótico e petrificado" (RAMOS, 1979, p. 51);

2) a corrente monográfica, fundada por Nina Rodrigues e continuada por Arthur Ramos, Gilberto Freyre e os imitadores deste, ao contrário da primeira corrente, abordariam a questão de um ponto de vista estático, interessando-se pelo negro como "assunto", pelo seu passado e a sobrevivência desse passado no presente;[99]

3) uma terceira corrente, a mais antiga, que se configuraria predominantemente sob a forma de comportamentos que de escritos,[100] caracterizando-se "pelo propósito antes de transformar a condição humana do negro na sociedade brasileira do que descrever ou interpretar os aspectos pitorescos e particularíssimos da situação da gente de cor" (RAMOS, 1979, p. 42).

[...] marcos desta evolução foram os trabalhos do africano Chico Rei que, em Minas Gerais, no princípio do século XVIII, organizou um movimento para alforriar negros escravos; as confrarias, os fundos de emancipação, as caixas de empréstimo, irmandades e juntas, instituições que recolhiam contribuições de homens de cor destinadas à compra de cartas de alforria; as insurreições de negros muçulmanos no Estado da Bahia; os chamados quilombos [...] o movimento abolicionista em que sobressaíram Luiz da Gama e José do Patrocínio, intelectuais negros, e outras iniciativas e associações como o Clube do Cupim em Recife, as Frentes Negras de São Paulo e da Bahia. (RAMOS, 1979, p. 65, grifos do autor).

Os teóricos mais próximos dessa posição seriam dois intelectuais brasileiros (brancos): Joaquim Nabuco e Álvaro Bomilcar.[101]

Na delimitação das correntes, é evidente a valorização positiva – por parte do autor – das interpretações que supõe considerar a especificidade da sociedade brasileira e o uso de um instrumental teórico adequado e, maior ainda, das que atribuem ao negro um papel ativo no processo de libertação, elevando-o à condição de sujeito social e político.[102]

No transcorrer da análise – também – aflora uma característica de Guerreiro Ramos: sua crítica ácida e mordaz, que não poupava os adversários de ironias e de um humor cortante. Destilou seu veneno contra Luiz Costa Pinto, Florestan Fernandes, Álvaro Vieira Pinto, Arthur Ramos etc.; tratando da questão do negro, fez uma de suas vítimas: Nina Rodrigues.

Nina Rodrigues é, no plano da ciência social, uma nulidade [...] Não há exemplo no seu tempo, de tanta basbaquice e ingenuidade. Sua apologia do branco nem maliciosa é [...] É sincera, o que o torna ainda mais insignificante se se pretende considerá-lo sociólogo ou antropólogo. Há notícia de que ele foi um homem bom, um professor digno e criterioso, mas os seus amigos, pretendendo fazê-lo passar à história como cientista, fizeram-lhe verdadeira maldade, pois a sua obra, neste particular, é um monumento de asneiras [...] a melhor homenagem que se pode prestar às qualidades do cidadão comum Nina Rodrigues é fazer silêncio a respeito de sua obra. (RAMOS, 1979, p. 54).

Durante sua trajetória, Guerreiro Ramos promoveu uma particularíssima fusão de erudição, preocupação metodológica, engajamento e humor cáustico, valorizando o estilo e o efeito sem sacrificar a profundidade – e sacrificando os adversários, talvez mesmo a ética, para manter a blague.

Embora nutrisse uma crítica admiração pela corrente autonomista, identificava-se com a terceira corrente, cujo amadurecimento se corporificava – segundo ele – no trabalho do TEN (Teatro Experimental do Negro).[103] No TEN, Guerreiro Ramos ajudou a fundar (em 1949) o Museu do Negro e o Instituto Nacional do Negro,[104] bem como promover (juntamente com Abdias Nascimento e Edison Carneiro) o Congresso do Negro Brasileiro e a Conferência Nacional do Negro. Instalou também, no Instituto Nacional do Negro, o Seminário de Grupoterapia, no qual realizou experiências de psicodrama e sociodrama com vistas a dirimir os efeitos do preconceito de cor.

Liderado por Abdias Nascimento, o TEN representava (segundo Guerreiro)...

[...] uma reação de intelectuais negros e mulatos que, em resumo, tem três objetivos fundamentais: 1) formular categorias, métodos e processos científicos destinados ao tratamento do problema racial, no Brasil; 2) reeducar os "brancos" brasileiros, libertando-os de critérios exógenos de comportamento; 3) e "descomplexificar" os negros e mulatos, adestrando-os em estilos superiores de comportamento no país. (RAMOS, 1979, p. 67).

O TEN buscava a integração social do negro numa posição não-subalterna, Abdias Nascimento – por ocasião do I Congresso Negro – assinala que o movimento pretendia indagar quais os meios de que poderia lançar mão para organizar associações e instituições que pudessem "oferecer oportunidades para a gente de cor se elevar na sociedade", já que existiria no Brasil "uma elite de cor capaz de infundir confiança às classes dominantes", cujo movimento não seria um mero "diversionismo", não visaria "objetivos pitorescos" e nem se caracterizaria "por aquela irresponsabilidade que infelizmente tem prejudicado a maioria das iniciativas dos negros no Brasil" (Ramos apud RAMOS, 1979, p. 67).[105] Já Guerreiro Ramos afirma em documento escrito em 1949 (Relações de raça no Brasil): "É necessário instalarem-se na sociedade brasileira mecanismos integrativos de capilaridade social capazes de dar função e posição aos elementos da massa de cor que se adestrarem nos estilos das classes dominantes" (apud RAMOS, 1979, p. 68).

Em 1948, em conferência promovida pelo TEN no auditório do Ministério da Educação, em homenagem a Georg S. Schuyler (jornalista que fazia reportagens no Brasil para o Pittsbourgh Courier, órgão da imprensa negra estadunidense), Guerreiro Ramos anunciou algumas "teses" sobre a situação do negro, a saber:[106] 1) o problema do negro não é uniforme no Brasil, varia conforme a região, meio (rural ou urbano) e classe social, haveria assim uma "psicologia diferencial do negro brasileiro"; 2) A expressão "preconceito racial" não deveria ser usada no caso brasileiro, pois haveria preconceito racial em relação a quase todos os estrangeiros, o correto seria referir-se a "preconceito ou discriminação de cor"[107]; 3) não haveria no Brasil linha de casta, o homem de cor (negro) assimilaria os padrões de cultura da classe dominante e, quando o faria, seria tratado de maneira "frontal" (em relações sociais horizontais), embora houvesse certa tendência do homem branco a evitar relações frontais com negros em "situações ornamentais ou de acepção estética (diplomacia, salões elegantes, casamentos, Escolas Militares etc.)"; 4) o homem de cor das classes inferiores manifestaria forte ressentimento contra o homem de cor de elevada categoria social, o que deveria ser depurado por "métodos de sociologia psicodinâmica"; 5) o homem de cor brasileiro não seria um "híbrido cultural, um ambivalente, hesitante entre duas heranças", e sim prestaria lealdade à cultura da classe dominante, sendo assim, ele próprio consideraria "pitorescos" os traços das culturas africanas; 6) já o mestiço brasileiro ver-se-ia da perspectiva do branco, tendendo a disfarçar as marcas raciais; 7) o que se entenderia por cultura negra no Brasil, para "desespero dos sociólogos e antropólogos", existiria ao nível do exótico, sendo instrumentalizada por "mulatos ladinos numa espécie de indústria turística do pitoresco"; 8) o mestiço brasileiro seria um "ansioso" (conforme a definição de Max Scheler), para ele "ser mais, valer mais" – em comparação com outros – seria mais importante que sua condição objetiva; 9) o padrão estético da população brasileira seria o branco, os negros e os mulatos prefeririam casar-se com pessoas mais claras (RAMOS, 2003c, p. 26).[108]

Na esteira dessas conclusões, ele organiza no Instituto Nacional do Negro – inspirado nas idéias do médico e sociólogo austríaco Jacob L. Moreno, criador da sociometria – o Seminário de Grupoterapia (RAMOS, 2003a, 2003f), visando por meio do psicodrama (RAMOS, 2003d) e do sociodrama (RAMOS, 2003e) promover a "catarse" dos componentes patológicos do comportamento de brancos e negros, purgar os indivíduos de "conservas culturais" que propiciariam o preconceito e exorcizar a "heteronomia" das condutas, aparelhando-os à socialização de modo horizontal e à aceitação das diferenças sociais.

Tais componentes "patológicos" estariam socialmente difusos e, logo, presentes também no comportamento dos indivíduos cientificamente treinados (sociólogos e antropólogos) para estudar a questão da discriminação e do preconceito. Sugere Guerreiro Ramos que os estudiosos deveriam se afastar dos falsos problemas e tematizar as "verdadeiras" questões, vez que algo seria o "negro-tema" e, outro, distinto, o "negro-vida":

O negro-tema é uma coisa examinada, olhada, vista, ora, como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama a atenção.

O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistador, protéico, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje. (RAMOS, 1957b, p. 171).

Ao inverter o ângulo de abordagem da questão, Guerreiro Ramos assevera que o "problema" do negro no Brasil – da forma como estava posto – seria, na verdade, uma manifestação da "patologia social do "branco" brasileiro",[109] isto é, uma persistente desvalorização social e estética do negro, elaborada por uma minoria de ""brancos" letrados", que proviria do tempo em que os negros estavam numa condição social expressamente inferior; a permanência dessa mentalidade num outro contexto, desse anacronismo – que relegaria as mudanças na sociedade e desfiguraria o tipo "normal" – denotaria tal patologia. O preconceito de cor seria assim, praticamente, um fenômeno residual, cuja influência seria ainda sentida mesmo depois de ultrapassadas determinadas relações anteriormente presentes na estrutura social e, mais ainda, na maioria dos estudos, o preconceito seria não somente objeto, mas também elemento das análises: o estudioso despreparado negligenciaria o real motivo do preconceito e, não bastasse, reiteraria o próprio preconceito.

Superar definitivamente essa situação, mormente para o analista que se defrontasse com o problema, passaria pelo procedimento fenomenológico de praticar "um ato de suspensão da brancura", a fim de mostrar a precariedade dessa concepção de "branco" e por em relevo a "alienação estética do negro" numa sociedade miscigenada e europeizada como a brasileira (RAMOS, 1957b, p. 194). Em termos de sociabilidade, passaria também pela afirmação da negritude; parodiando Nietzsche, assevera:

A negritude não é um fermento de ódio. Não é um cisma. É uma subjetividade. Uma vivência. Um elemento passional que se acha inserido nas categorias clássicas da sociedade brasileira e que as enriquece de substância humana. Humana, demasiadamente humana é a cultura brasileira, por isto que, sem desintegrar-se, absorve as idiossincrasias espirituais, as mais variadas. E até compõe com elas a sua vocação ecumênica, a sua índole compreensiva e tolerante. A cultura brasileira é, assim, essencialmente católica, no sentido de que nada do que é humano lhe é estranho. (RAMOS, 2003b, p. 117).[110]

Cumpriria ao indivíduo (e também ao estudioso) negro assumir essa subjetividade, afirmar o niger sum, isto é, a consciência de que:

Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu eu está inserido, atribuo a sua cor a suscetibilidade de ser valorizada esteticamente e considero a minha condição étnica com um dos suportes do meu orgulho pessoal – eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto de partida para a elaboração de uma hermenêutica da situação do negro no Brasil. (RAMOS, 1979, p. 62).[111]

Guerreiro Ramos e o TEN também postulavam uma "democracia racial" para o país, entretanto, não simplesmente como fato existente, dado da realidade brasileira, mas sobretudo como reivindicação, como projeto de integração nacional. "O Brasil deve assumir no mundo a liderança da política de democracia racial. Porque é o único país do orbe que oferece uma solução satisfatória do problema racial" (RAMOS, 2003b, p. 117). E mais: "o Brasil é uma comunidade nacional onde têm vigência os mais avançados padrões de democracia racial, apesar da sobrevivência, entre nós, de alguns restos de discriminação" (RAMOS, 1957b, p. 201).[112]

Guerreiro Ramos, utilizando-se dessa perspectiva, busca repor a questão do preconceito em novas bases:

[...] o problema do negro no Brasil é essencialmente psicológico e secundariamente econômico. Explico-me. Desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do país, como povo brasileiro, carece de significação falar de um problema do negro puramente econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas e do pauperismo. O negro é povo, no Brasil. Não é um componente estranho de nossa demografia. Ao contrário, é a sua mais importante matriz demográfica. E este fato tem de ser erigido à categoria de valor, como o exige a nossa dignidade e o nosso orgulho de povo independente. O negro no Brasil não é anedota, é um parâmetro da realidade nacional. A condição do negro no Brasil só é sociologicamente problemática em decorrência da alienação estética do próprio negro e da hipercorreção estética do branco brasileiro, ávido de identificação com o europeu [...]

À luz da sociologia científica, a sociologia do negro no Brasil é, ela mesma, um problema, um engano a desfazer – o que só poderá ser conseguido através de um trabalho de crítica e de autocrítica. (RAMOS, 1979, 63, grifos nossos).

Valor e ciência, pertencimento e objetividade, em vez de se excluírem, ou se perturbarem, complementam-se: a aceitação e o orgulho da condição seriam facilitadores da análise, expedientes que propiciariam uma visão mais lúcida da questão em todos os seus matizes e uma perspectiva adequada, senão privilegiada, a um entendimento inequívoco. Segundo Joel Rufino dos SANTOS (1995, p. 28, grifos do autor):

Para Guerreiro Ramos, pois, negro não é uma raça, nem exatamente uma condição fenotípica, mas um topo lógico, instituído simultaneamente pela cor, pela cultura popular nacional, pela consciência da negritude como valor e pela estética social negra. Um indivíduo preto de qualquer classe, como também um mulato intelectual ou um branco nacionalista (por exemplo) podem ocupar esse lugar e dele, finalmente, visualizar o verdadeiro Brasil [...]

Enquanto a sociologia modernizante busca, num trabalho de Sísifo, descrever o lugar do negro na sociedade brasileira, o sociólogo populista Guerreiro Ramos descobriu que o negro ele próprio é um lugar de onde descrever o Brasil. Penso ser essa idéia – o negro como lugar – a mais original contribuição de Guerreiro Ramos à compreensão do dilema nacional.

Por outro lado, Guerreiro Ramos afirma também que "os problemas "antropológicos", do índio e do negro, são aspectos particulares do problema nacional, de caráter eminentemente econômico e político", o que aparentemente é uma contradição, mas justificável pela interpretação de que: "Nossos problemas culturais, no sentido antropológico, são particulares e dependentes da fase de desenvolvimento econômico do Brasil. A mudança faseológica de nossa estrutura automaticamente solucionará tais problemas" (RAMOS, 1979, p. 41, grifos nossos). Ou seja, os problemas "psicológicos" são, em última instância, expressão de dada fase cultural (e seus aspectos econômicos, sociais e políticos) em que o país se encontraria. A influência dos países centrais levaria à submissão cultural e estética que propiciaria a promoção de valores estéticos estranhos à realidade nacional, importados, daí superfetação do "branco" e a depreciação e alienação do negro. Ora, também o preconceito – por meio da "hipercorreção estética do branco brasileiro, ávido de identificação com o europeu" – teria como componente o alheamento da realidade brasileira, ou seja, seria outra faceta da importação de idéias e imitação de condutas.

Excluído do rol dos pesquisadores envolvidos, Guerreiro Ramos, ainda que lhes reconheça o cuidado técnico, critica os trabalhos sobre o negro compreendidos nos estudos sobre relações raciais feitos na década de 1950 por encomenda da UNESCO, insurgindo-se particularmente contra o de Costa Pinto.[113]

Costa Pinto e Guerreiro Ramos, na mesma década de 1950, promoveram uma polêmica – em livros e em artigos na imprensa carioca – sobre a referida "questão do negro".[114] Um balanço dessa querela foi feito por Marcos Chor Maio (1996, p. 10), segundo o qual, "a agenda política de Guerreiro seria composta pelos seguintes tópicos: a afirmação da singularidade dos negros com a eliminação dos recalques advindos do passado, ascensão social e econômica e constituição de uma intelligentzia". Já Costa Pinto, criticando Guerreiro Ramos e o TEN, diagnosticava – segundo Maio (1996, p. 15) – que "a modernização capitalista gerava um processo de diferenciação interna entre os negros, com o surgimento de uma pequena classe média, constituída de intelectuais, formando assim uma elite negra", que – nas palavras de Costa Pinto – buscava "se identificar com os padrões de comportamento das classes dominantes", sendo uma "legítima expressão da pequena burguesia intelectualizada e pigmentada" (apud MAIO, 1996, p. 15).[115]

Se para Guerreiro (e o TEN) havia uma "patologia social do "branco" brasileiro" e uma "ideologia da brancura", para Costa Pinto...

[...] do mesmo modo que se pode aqui mais uma vez repetir que não há um problema do negro – pois o problema é o branco que tem sobre o negro falsas idéias e age de acordo com essas idéias falsas – também se poderia dizer, inversamente que a idéia da negritude não é negra – é branca, é o reflexo invertido, na cabeça de negros, da idéia que os brancos fazem sobre ele, é o resultado da tomada de consciência (também em termos falsos, diga-se de passagem) da resistência que o branco faz à ascensão social do negro. É, em suma, um racismo às avessas. (Costa Pinto apud MAIO, 1996, p. 16).

À análise existencial-psicológica (de fundo social-culturalista) e à intelligentzia negra – elitizada, intelectualizada e sedenta de aceitação social por parte da elite brasileira – Costa Pinto opõe a mudança social e o potencial transformador do negro proletário, portador de uma consciência e atitude diferenciadas, que deveria transformar-se de "negro em si" em "negro para si".[116]

Por seu turno, Guerreiro Ramos valoriza a condição do negro como sujeito (autônomo e responsável por seu destino social) e uma visão dinâmica da questão, todavia, o processo de integração fica subsumido aos anseios de reconhecimento de uma elite negra e as contradições sociais desse processo ofuscadas.

As referências dão conta de que não havia mais somente "o" negro, os brutais elementos de desigualdade e diferenciação social presentes no processo de modernização capitalista no Brasil já faziam, entre os próprios negros – e entre os sociólogos e suas visões – distinções.

Significativamente, Guerreiro Ramos – segundo relato de Abdias Nascimento, A. (2003a) – teria passado, entre 1942 e 1945, "pela maior crise intelectual e espiritual de sua vida": marginalizado, sem reconhecimento acadêmico, relegado pela universidade, "exilado" no Rio de Janeiro, escorando-se no serviço público para sobreviver... Não obstante, ingressa no TEN e passa a ocupar-se com a militância no movimento negro, ao qual se dedicará intensamente até meados dos anos 1950, não fortuitamente, quando ingressa na Assessoria de Vargas, na Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas, no Grupo de Itatiaia, IBESP e ISEB. Assim, no final dos anos 1950, a questão do negro não será mais objeto de sistemática atenção por parte do autor.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10


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