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Guerreiro Ramos e a redenção sociológica: capitalismo e sociologia no Brasil (página 5)

Edison Bariani
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10

Dada a prioridade, há um evidente repúdio aos estudos sobre "minudências da vida social" (item 4), isto é, estudos basicamente empiricistas, à maneira da sociologia estadunidense e seus estudos de caso, que focalizariam pequenos grupos e comunidades – um exemplo seria a obra de Emílio Willems, Cunha: tradição e transição em uma cultura rural do Brasil (1947). Em contrapartida, deveriam ser prestigiados os estudos dedicados à compreensão da nação e que explicitassem os rumos possíveis para o desenvolvimento, seja em explicações de caráter geral e sintético (como as elaboradas por Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Caio Prado Jr.), seja iluminando aspectos parciais relevantes da realidade brasileira, tais como Geografia da fome (de Josué de Castro) e A vida privada e a organização política nacional (de Nestor Duarte) (RAMOS, 1957b, p. 106-7).[169] Ademais, essas pesquisas sobre "minudências" implicitamente contribuiriam para a persistência de "estilos de comportamento de caráter pré-letrado", fazendo apologia do isolamento e da ignorância, em vez de propiciar o conhecimento dos mecanismos de integração de populações marginalizadas na sociedade brasileira ("indígenas" e "afro-americanas"); seriam perniciosas não só por gastarem improdutivamente os raros recursos que poderiam ser destinados à pesquisa comprometida com a nação, mas por – direta ou indiretamente – focalizar a questão dessas populações como problemas, desvios, resíduos. Daí também o receio – da parte de Guerreiro Ramos – quanto à sociologia sobre o negro no Brasil, na qual se postularia "o problema do negro" – como se o negro fosse o próprio problema – e não o preconceito, cuja origem emanaria da "patologia social do "branco" brasileiro", este sim portador de um comportamento anormal (RAMOS, 1957b, p. 171-93; 1979).

A questão do ensino de sociologia como disciplina na instrução geral da população (ensino secundário) também foi assunto premente do debate, como reivindicação, refletia sobretudo uma preocupação muito presente na época: a sociologia era encarada como uma espécie de conscientização social e/ou de modernização de mentalidade – Fernando de Azevedo, Costa Pinto, Antonio Cândido, Emílio Willems, Oracy Nogueira e outros também se ocuparam da matéria.[170] Sob o ponto de vista de Guerreiro Ramos, o ensino da sociologia na escola seria não uma simples forma de vulgarização de informações, mas um modo de difundir uma consciência crítica dos problemas nacionais e promover certa emancipação em relação ao colonialismo cultural; seria um outro front de combate aos males da transplantação, referida agora ao cotidiano, ao senso comum, à percepção da realidade brasileira que possuíam os não-especialistas, o nascente "povo". A sociologia (mesmo como disciplina escolar) serviria a um propósito libertário e conscientizador, um saber que suprimiria a ingenuidade alienada (ANAIS DO II CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE SOCIOLOGIA, 1953).

Por seu turno, Florestan Fernandes – em 1958 – fez um balanço da atividade científica no Brasil em A etnologia e a sociologia no Brasil, o capítulo V desta obra – já publicado no mesmo ano como artigo na Revista Brasileira de Estudos Políticos [171]intitula-se "O padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros", nele, o autor critica alguns pontos da comunicação de Guerreiro Ramos no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, de 1953.[172] As observações referem-se basicamente aos itens 4 e 7 da proposta de Guerreiro, "entre recomendações que mereciam maior atenção e acolhida favorável" (FERNANDES, 1977, p. 67).[173]

O sentido da crítica dirige-se ao caráter do trabalho científico e seus vínculos, Florestan censura a "falácia" que seria:

[...] considerar impositivas as obrigações do sociólogo em relação ao sistema de interesses e de valores da nação a que deve lealdade, e, ao mesmo tempo, negligenciar as obrigações dele, relacionadas com o sistema de normas e de valores do saber científico. (FERNANDES, 1977, p. 68).

O cientista – para ele – só poderia pôr a ciência a serviço da comunidade se observasse rigorosamente os requisitos do saber científico, caso contrário, correria o risco de produzir uma "pseudociência". Logo, a recomendação de Guerreiro Ramos sobre evitar os estudos de "minudências" seria uma imposição ideológica face às necessidades do trabalho científico; num país como o Brasil, demasiado heterogêneo, a forma de garantir um conhecimento seguro da estrutura social nacional e regional seria elaborar estudos de particularidades, pois somente a partir destas – dentro do rigor científico – poder-se-ia generalizar os resultados; relegar tais estudos seria desprezar "todo o progresso alcançado pelos desenvolvimentos empírico-indutivos da investigação sociológica, nos últimos setenta e cinco anos" (FERNANDES, 1977, p. 69). Além disso, o uso de recursos em pesquisas de "detalhes" sociais não se faria em detrimento da aplicação em "bens de produção", ao contrário, tais estudos serviriam à melhor utilização de fatores de produção já que "o controle de tensões sociais depende, muitas vezes, do conhecimento positivo de unidades de investigações dessa magnitude" (FERNANDES, 1977, p. 70).

O padrão do trabalho científico não poderia ser decorrente do estágio de desenvolvimento da estrutura social e sim dos "critérios de explicação científica na sociologia", as exigências não se deveriam pautar pelos recursos disponíveis e pelo "nível cultural genérico das populações", em vez disso, mesmo consideradas as dificuldades da investigação científica num país como o Brasil, dever-se-ia levar em conta os padrões mais rigorosos, para tanto, caberia uma estratégia que contemplasse:

1) a seleção de problemas relevantes para a análise sociológica, quase sempre perturbada pelo impacto de influências extracientíficas; 2) a capacidade de promover a necessária adequação de noções e categorias abstratas, construídas pelos sociólogos através da observação e da interpretação de fenômenos similares em países que reproduzem, de forma mais completa, o mesmo tipo de ordem social. (FERNANDES, 1977, p. 70).

No que se refere à questão da implantação do ensino regular de sociologia na escola, Florestan Fernandes – em comunicação no I Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em São Paulo (em 1954) – mostrava-se um tanto cético em relação às possibilidades de êxito do ensino da disciplina dentro do sistema educacional brasileiro de então; seriam necessárias mudanças para viabilizar o empreendimento, porém, se assim o fosse dirigido, poderia "contribuir para preparar as gerações novas para manipular técnicas racionais de tratamento dos problemas econômicos, políticos, administrativos e sociais, as quais dentro de pouco tempo, presumivelmente, terão de ser exploradas em larga escala no país" (ANAIS DO I CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 1955, p. 105).[174]

Guerreiro Ramos, presente ao congresso quando dos debates, [175]de modo diverso, também mostrava certo ceticismo e objetou que, mesmo sendo ideal o ensino de sociologia, a sociedade brasileira não estaria aparelhada para tal, já que persistia na sociologia uma visão alienada da realidade do país, ocupando-se de problemas efetivos em outros países; além disso, a falta de profissionais especializados para a docência dificultaria um ensino satisfatório (ANAIS DO I CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 1955, p. 319-20). Florestan redargüiu que uma formulação adequada dos problemas da sociedade não poderia garantir uma autoconsciência racional da realidade brasileira, ao que Guerreiro Ramos respondeu que a sua própria posição e as dos demais presentes no congresso eram irredutíveis: enquanto os outros seriam acadêmicos, ele se considerava um pragmático, e isso faria toda a diferença na análise das questões (ANAIS DO I CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 1955, p. 342).

Não obstante os comentaristas aterem-se – quando abordam a polêmica – somente ao episódio das teses de Guerreiro Ramos e a crítica de Florestan Fernandes em "O padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros", seguiram-se outros rounds, embora as referências – explícitas por parte de Guerreiro e veladas de Florestan – por vezes, não sejam imediatamente identificáveis.[176] Ao reeditar A redução sociológica (em 1965) Guerreiro Ramos escreve um outro prefácio no qual – defendendo-se das críticas do autor em "O padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros" – argumenta que Florestan Fernandes:

1) confunde a ciência sociológica em hábito com a ciência sociológica em ato.[[177]] O autor não ultrapassou a área informacional da sociologia. Por isso, o trabalho em pauta reflete uma ideologia de professor de sociologia, antes que atitude científica de caráter sociológico diante da realidade;

2) a crítica em apreço ilustra como algo mais do que a informação e a erudição, é necessário para habilitar ao estudioso a fazer uso sociológico dos conhecimentos sociológicos ou, em outras palavras, para a prática da redução sociológica;

3) pressupõe a referida crítica falsa noção das relações entre teoria e prática no domínio do trabalho científico, e assim tende a hipostasiar a disciplina sociológica, tornando-a um conhecimento superprivilegiado (RAMOS, 1996, p. 16). [178]

Ainda comentando o referido artigo de Florestan, áspero, Guerreiro Ramos qualifica-o como "documento de ideologia de professor de sociologia no Brasil" e aponta os principais traços dessa ideologia: o "provincianismo" e o "bovarismo". Provincianismo, pois como "típico sociólogo convencional" procuraria garantir uma pureza do trabalho sociológico e livrá-lo de "deformações "filosóficas"",[179] tornando a sociologia uma "disciplina de escoteiros", já que os critérios da ciência não poderiam ser "livrescos ou institucionais", mas teriam "de ser procurados na estreita relação entre teoria e prática", tal pureza seria manifestação de um "solipsismo sociológico [que] só atende interesses extracientíficos da burocracia parasitária, gerada pela prematura institucionalização do ensino da sociologia"; já o "bovarismo" consistiria em "extremar a distância entre o mundo dos sociólogos e dos "leigos", ao ponto de considerá-los cindidos", levando à radical distinção entre "cientistas e leigos" e fazendo da sociologia um proselitismo, quando a vocação desta seria tornar-se um "saber vulgarizado" (RAMOS, 1996, p. 26-9). Para Guerreiro Ramos, a sociologia deveria destituir-se de qualquer caráter elitista e constituir-se em uma forma de consciência, sobretudo de autoconsciência social, requisito para a superação dos limites que impediriam o desenvolvimento.

Por sua vez, num trabalho publicado em 1968 (Sociedade de classes e subdesenvolvimento), Florestan Fernandes volta à carga contra Guerreiro Ramos e afirma que o equívoco central das considerações deste se localizaria na própria concepção de sociologia que, ao pleitear um vínculo estrito com dada sociedade e uma irredutível especificidade histórico-social, acreditaria "que a própria natureza dos problemas sociológicos, a serem investigados, exige recursos conceptuais metodológicos e teóricos específicos e exclusivos", posição que converteria "o sociólogo em ideólogo e leva-o a ignorar ou a subestimar os requisitos da explicação científica e, até, o que torna o conhecimento científico verdadeiramente útil", assim, "a própria Sociologia que é posta em questão, pois ela seria, no fundo, a fonte de falsos problemas e de explicações mistificadoras" (FERNANDES, 1972b, p. 16). Observa, ao final, que mesmo considerando-se a sociologia um produto orgânico de uma cultura – como de certo modo Hans Freyer o fez – seria possível extrapolar e construir métodos e técnicas de uso universal. Desse modo, Florestan salva uma herança que também lhe seria própria e cerra fogo em Guerreiro Ramos (FERNANDES, 1972b, p. 17, grifos do autor).

Naquele mesmo mencionado prefácio da 2ª edição de A redução sociológica, Guerreiro Ramos (1996, p. 29) chama a atenção para alterações no trabalho de Florestan:

[...] o escrito [de Florestan Fernandes, "O padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros"] ainda tem muito de esoterismo, mas ao terminá-lo o autor escreve páginas que nos inspiram a convicção de que o professor paulista está em processo de autocrítica. Diz ele [Florestan Fernandes]: "o sociólogo, como homem da sociedade de seu tempo, não pode omitir-se diante do dever de por os conhecimentos sociológicos a serviço das tendências de reconstrução social" (A sociologia..., p. 39). Quem conhece os escritos do professor paulista se dará conta de que essa frase é, nele, indicativa de uma revolução interior. O Sr. Florestan Fernandes já escreve sobre a sociologia militante. Temos a esperança de que se torne, em breve, um sociólogo militante. Só então se eliminará sua resistência à redução sociológica.

Guerreiro Ramos refere-se ao texto "A sociologia como afirmação" – publicado inicialmente na Revista Brasileira de Ciências Sociais (em 1962) e reeditado em A sociologia numa era de revolução social, também em 1962 – e com perspicácia percebe o acento mannheimiano que adquire a produção do sociólogo paulista, a ponto de vaticinar um desfecho militante à sociologia deste. Ironicamente, é Guerreiro Ramos quem primeiro vislumbra o sociólogo e militante que Florestan Fernandes viria a se tornar.

Na visão dos comentadores – que em geral resumem-se ao primeiro round da disputa – o debate entre os dois sociólogos teria diversos significados e motivações: ISEB versus USP, São Paulo versus Rio de Janeiro, "sociologia carioca" versus "sociologia paulista", mertonianos versus mannheimianos, etc.[180] Todos esses recortes guardam algo de verossímil e especulativo, todos podem acrescentar algo à compreensão daquele momento de efusão intelectual e das trajetórias dos autores, entretanto, considerando-se a amplitude da discussão entre eles e a originalidade dos contendores, é equívoco tanto resumi-los à condição de figurantes quanto alçá-los à posição de encarnação de tais debates.[181]

Sempre polêmico,[182] Guerreiro Ramos perseguia obsessivamente o enraizamento da sociologia na realidade brasileira, importava torná-la um saber genuinamente comprometido com o país e sua peculiaridade; a transplantação de conceitos e teorias seria assim um entrave, pois propagaria um "saber" desvinculado de seu objeto, desenredado das relações sociais específicas de determinada sociedade. Cumpria efetivar uma sociologia compromissada com o país em sua realidade nacional e, logo, com as necessidades de transformação desta, daí suas tarefas como instrumento de conscientização e intervenção no sentido do desenvolvimento (e da industrialização), bem como a integração de populações marginalizadas na vida nacional: "indígenas" e "afro-americanas".

A pesquisa sociológica – para Guerreiro Ramos – deveria se coadunar com tal realidade também no sentido de se adequar às possibilidades (de recursos técnicos, humanos e mesmo de certo "nível cultural genérico"); métodos, objetivos (e objetos) teriam de estar sintonizados com a interpretação e aplicação desse saber (de modo integral, totalizante) como autoconsciência e autodeterminação da nação – daí a prioridade aos estudos gerais e evitar os de caso. A sociologia deveria relegar seu caráter "profissional", "esotérico" e postar-se ao alcance da população (dos "leigos"), reunir numa práxis ampliada uma forma de explicação racional e efetivamente transformadora, conseqüente com os valores e aspirações nacionais. Assim, o ensino escolar de sociologia, a despeito desta ainda não ter se depurado da alienação em relação à realidade do país e ainda não possuir profissionais capazes, seria uma forma de tornar acessível esse saber ao senso comum, tornar-se efetivamente um "saber de salvação".

Já para Florestan Fernandes a nação (e obrigações para com essa) não era por si um valor primordial, ao menos não superior às obrigações para com a ciência; a sociologia – para servir efetivamente à transformação social – deveria ser primeiramente científica e depois (circunstancialmente) nacional. O padrão de trabalho científico deveria ser o mais rigoroso possível, só assim seria também útil à intervenção racional nos problemas sociais; como ciência (universal), baseada na indução, a sociologia procuraria uma generalização a partir de estudos particulares, aproveitaria as noções e categorias abstratas elaboradas em países nos quais a ordem social competitiva estivesse "mais completa", fornecendo subsídios para se pensar uma ordem na qual haveria ainda incipiente desenvolvimento dessa característica. Seria, portanto, um saber cuja cientificidade se faria em detrimento do senso comum, como algo especializado, e o ensino escolar da disciplina serviria somente à "manipulação de técnicas racionais", à atualização da mentalidade em preparação para o progresso social, não como consciência social dos efetivos problemas do país, pois uma formulação adequada – logo, científica – não garantiria autoconsciência social.

Defrontavam-se duas sociologias: uma que se pretendia um saber socialmente difusor de autoconsciência e autodeterminação, visando o desenvolvimento e a autonomia nacional (Guerreiro Ramos), e outra que se queria universalizada (em método e procedimentos), zelava pelos padrões de excelência do trabalho científico e que não tomava tais resultados como imediatamente indicados para conduzir ações políticas (Florestan Fernandes).[183] Opunham-se: o empenho na construção de um capitalismo autônomo e nacional (Guerreiro Ramos) e a ênfase na generalização e aprofundamento da ordem social competitiva como portadora das possibilidades e limites (próprios) das chances de modernidade (Florestan Fernandes).

O contencioso que reuniu/opôs Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos foi seguramente mais que uma querela intelectual, foi o enfrentamento de dois sujeitos e projetos intelectuais.[184]

De um lado, Florestan Fernandes e uma visão advinda do centro nacional de maior desenvolvimento do capitalismo e fulcro da modernização burguesa calcada na transformação voraz e vontade de fazer tabula rasa das circunstâncias – e das conseqüências – de uma pesada herança;[185] certo "bandeirismo" (paulista) que abominava o passado incômodo que lembrava suas raízes e débitos com o "Antigo Regime". Trazia por certo um desconforto com o status quo, mas cria – inicialmente – no estabelecimento da ordem social competitiva e na organicidade da sociedade, que traria no seu bojo a democracia e o desenvolvimento. Com o tempo – e o atraso dos fatos – acrescentou certa dose de intervenção social, seja como engenharia social, como incremento político dos rituais institucionais e como formação educacional dos indivíduos. Preocupada com o "lugar" que lhe seria destinado na infalível estrutura mundial, orientava-se pelas funções que lhe cabiam na engrenagem inviolável, o Ocidente próximo não seria somente donde emanavam as necessárias influências de nossa formação, seria também o horizonte possível de nossa existência. A ciência era caracterizada como o código supremo que, adquirido, guindar-nos-ia à maioridade. Imitar os mestres era elevar-se ao conhecimento, e a sociologia – em tenra idade – era o fruto mais viçoso, porém verde, dessa colheita.[186]

O terreno de atuação era sem dúvida a sociedade civil e seus interesses, todavia, o que era tão moderno, burguês e racional subitamente se reencontra com o passado hostil, a história já não se movia infalivelmente adiante; o arcaico, o escuso, autoritário e irracional voltavam à cena pelas mãos da mesma burguesia – e com anuência ou complacência de grande parte de sua "ilustração". Restava então (a partir dos anos 1970) a revolta, o clamor pelo anjo vingador da revolução, que varreria do país a miséria que atormentava o mundo dos "de baixo" e a mente dos "atraiçoados". A ciência – e a sociologia em particular – era agora arte dos mandarins, engodo dos refinados magos da ilusão espiritual, memória desagradável da crença no progresso e na democracia social com a qual os "de cima" haviam permitido sonhar, apenas sonhar.

De outro lado (Guerreiro Ramos), uma visão apaixonada de seu espaço vital, de seu lugar no mundo, como fonte não só do que era, mas do que lhe seria permitido ser, vez que ali brotavam as aspirações – algo românticas, senão frente ao mundo ao menos perante os céticos. Haveria um passado, de opressão colonial, sobre o qual seria possível fundar uma nova sociedade, construir um futuro do qual poderia se orgulhar. A dinâmica mundial lhe parecia um tanto opressora, mas haveria um lugar reservado para ser essencialmente brasileiro. A sociologia seria a consciência – e a crença – desse ser e a promessa de poder mais, muito mais; uma sociologia, ou melhor, a sociologia: construída com instrumentos próprios, refuncionalizados às vezes, mas definitivamente própria, nacional, única, adaptada aos seres únicos em sua existência peculiar. Ela nos redimiria e realizaria a promessa da modernidade, pelas mãos do povo iluminado pela intelligentzia e sob os auspícios do Estado. Irrealizada a promessa, restou (a partido dos anos 1970) a melancolia e o amaldiçoar de toda modernidade (RAMOS, 1989).

De certo modo, ilustravam os autores um contraste – que não deve ser exacerbado – entre São Paulo e o Rio de Janeiro, seus distintos ambientes e formas (econômicas, culturais, políticas), institucionalização e constituição universitária, acadêmica e intelectual; dois "microcosmos" que cada qual a seu modo enfrentaram os obstáculos da construção da sociologia brasileira e forjaram diferentes soluções para implementar e operacionalizar tal conhecimento.

Essa controvérsia teve como personagens dois sociólogos, plebeus, criados por mães lutadoras (e sem a presença da figura paterna), de origem pobre, que perseguiram seus objetivos, venceram a desigualdade de oportunidades e chegaram à Universidade, magistério e admiração, dois precursores da sociologia de batismo acadêmico que seguiram rumos divergentes, "caminhos cruzados" (Oliveira, L., 1995): Guerreiro Ramos do intenso engajamento e intervenção políticos ao distanciamento (senão indiferença) consubstanciado numa sociologia institucional, Florestan Fernandes da sociologia acadêmica à defesa ideológica do revolucionarismo popular (BARIANI, 2003a).

Eruditos, intelectuais públicos, de brilho incomum. Oponentes e talvez mesmo complementares, senão paradigmáticos ao menos significativamente únicos. Dois "weberianos" e mannheimianos particulares,[187] ecléticos na aparência, de uma originalidade sem preconceitos; ambos exilados, engajados e eleitos deputados: dois inconformistas, radicais – cada qual a seu modo. A sociologia – para eles – era muito mais que uma disciplina, a ela dedicaram suas vidas, mas ambos os projetos "fracassaram": nem autonomia, nem revolução, nem paixão, nem sociologia nacional, o que os sucedeu foi a tecnologia de controle social como profissionalização do saber, nem como intervenção racional e rebeldia política, nem como forma por excelência de autoconsciência social, e sim como ocupação universitária e modo de inserção institucional.

A sociologia brasileira (para Guerreiro Ramos) ou a sociologia no Brasil (Florestan Fernandes), em busca de um passado e em fuga para o futuro,[188] viveu com Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos o seu momento "heróico", quando as oportunidades surgiam – poucas e promissoras – e a competição, embora dura, não congregava grandes contingentes de postulantes; plebeus, saíram "de baixo" e ascenderam socialmente devido ao prestígio social que gozavam os intelectuais – numa conjuntura de consolidação da classe trabalhadora, embates dessa com a burguesia e ascensão de setores intermediários.

Florestan,[189] orgulhoso de sua origem plebéia – lumpemproletária, segundo ele (FERNANDES, 1977) –, ascendeu à classe média e procurou sempre manter um vínculo com os "de baixo", com as classes subalternas, ainda que tal vínculo, mediado pela conflituosa relação ciência-militância, por vezes, apresentasse um aspecto puramente ético. Branco, respeitado e gozando de grande prestígio resistiu à cooptação pela classe dominante, entretanto, incomodava-lhe a culpa da ascensão social e, de certo, radicalizava algumas posições à esquerda para manter certa independência de espírito e paz de consciência; seu revolucionarismo, além da solidariedade com os oprimidos, é também de revolta e reação ao destino que teve, amado e admirado por aqueles que deveria combater, pela classe dominante. Já Guerreiro Ramos, mulato, rejeitado pela Universidade brasileira, politicamente incompreendido (e sentindo-se perseguido), buscou aceitação; sua opção pelo nacionalismo é – também – um modo de buscar a integração (na comunidade imaginada) e autonomia (como assenhoreamento do destino) que não desfrutava socialmente, encarna assim os ideais da classe média e sua busca por segurança e independência, crê nesses ideais como somente um convertido poderia crer, pois já conhecia e ainda se sentia ameaçado pelas agruras da vida dos "de baixo".

III - A arte da guerra

"A maior humilhação que pode sofrer um intelectual

consiste em se surpreender abaixo das virtualidades de seu tempo e de sua circunstância. Sou revolucionário por orgulho. Por uma questão de ética, de ética intelectual. A vocação da inteligência é a verdade. Se a vida intelectual tem de ser um experimento da verdade, no Brasil de hoje é compelida a tornar-se revolucionária.

A verdade do Brasil de hoje é a revolução."

Guerreiro Ramos (1961, p. 15).

Por acreditar estar vivendo momento crucial da história do país, Guerreiro Ramos – ao final dos anos 1950 – lançou-se obstinado ao enfrentamento com o que cria serem os pungentes problemas do Brasil. Nem por isso abandonou a reflexão teórico-metodológica sobre a sociologia, ao contrário, aprofundou suas inquietações e pôs à prova a capacidade da sociologia como saber urgente, instrumento de entendimento e capacitação para agir – interessava-lhe coroá-la como práxis.

O problema nacional do Brasil – livro do autor publicado em 1960 –[190] é um marco dessa atitude, seu título é uma clara alusão ao livro de Alberto Torres (O problema nacional brasileiro, de 1914). "O presente livro, como o de Alberto Torres, é uma tentativa de utilizar a ciência social como instrumento de organização da sociedade brasileira" (RAMOS, 1960, p. 13-4, grifos nossos). Nessa obra, Guerreiro Ramos reconsidera o papel do povo na história do país, conferindo-lhe autonomia e capacidade de ação, contrariamente a Alberto Torres (1982, p. 105), que em seu livro afirmava: "esta obra não é uma obra de educação: é uma obra de direção política. Nenhum povo tem a educação necessária para dirigir seus interesses gerais".

Nesse processo, Guerreiro Ramos põe em curso uma revisão dos argumentos de certa herança teórica que lhe era cara, reafirma o papel da sociologia como organizadora social e principia por pensar tal organização agora em outro sentido: de baixo para cima, relegando o elitismo daquela herança.

Ícone daquela tradição, Alberto Torres configura-se como interlocutor privilegiado dessa revisão crítica. Guerreiro Ramos entendia que a solução do problema organizacional do Brasil não poderia mais ser concebida como iniciativa individual de um pensador ou de uma elite, mas fruto da experiência e participação ativa dos grupos sociais. Se em 1957, com Introdução crítica à sociologia brasileira (RAMOS, 1957b, p. 32), já reprovava Torres por advogar a "vocação agrícola" do país, por não entender o condicionamento econômico da gênese da nação e pretender formá-la a partir do alto (com a tutela do povo pelas elites nacionalistas), em 1960, com O problema nacional brasileiro (RAMOS, 1960) propõe uma nova forma de organização da nação e, finalmente, em 1961, com A crise do poder no Brasil (RAMOS, 1961), afirmará que aquele incide "no erro fundamental de pensar que a organização do País pudesse ser outorgada de cima para baixo" (RAMOS, 1961, p. 86).

Mais próximo da política, Guerreiro Ramos também se inquietava com a necessidade de rever suas posições sem abandonar seus princípios, de fazer aliados sem conceder ao oportunismo, de promover o convencimento e aglutinar forças a partir da constatação da existência da sociedade civil, na qual brotavam as classes e se fortalecia um novo sujeito: o povo. Não competiria mais – do mesmo modo – organizar a nação à revelia do povo, era preciso dar-lhe voz e educá-lo para exercer a soberania.

1. Povo, desenvolvimento e industrialização

O caminho de Guerreiro Ramos para uma ação mais efetiva foi também uma ida ao povo, o "nascimento do povo" parecia-lhe uma novidade radical, que constituiria a principal transformação em curso na realidade brasileira e daria novos rumos à história do país. "O povo é a categoria cardinal da história contemporânea do Brasil" (RAMOS, 1960, p. 229, grifos nossos).

Embora houvesse corroborado o diagnóstico de Alberto Torres, de Silvio Romero, Tobias Barreto, Euclides da Cunha, Gilberto Amado e outros, a respeito da inexistência ou a incipiência do povo no Brasil, vislumbrava agora a ascensão das massas como elemento ativo, sujeito político autônomo. O povo surge então "como protagonista eminente do processo político", pois "na história contemporânea do Brasil, exerce a função de dirigente por excelência do processo histórico-social. De elemento subsidiário, passou à categoria de agente principal dos acontecimentos" (RAMOS, 1960, p. 42).

Definido como "o conjunto de núcleos populacionais articulados entre si pela divisão social do trabalho, participantes de uma mesma tradição e afetados de uma mesma consciência coletiva de ideais e de fins", o povo, a partir de 1930, configurar-se-ia organicamente no Brasil por meio da densidade e complexificação da estrutura social, estando desde então vocacionado a revolucionar o panorama político brasileiro (RAMOS, 1960, p. 228).

Um tardio aparecimento do povo como categoria central da dinâmica sociopolítica dever-se-ia a que, na "fase capitalista" do desenvolvimento econômico-social, os povos só se constituiriam com a estruturação de um mercado interno ("seu substrato material"), tornando-se assim "conjunto de pessoas integradas num mercado próprio" – o que exatamente teria faltado ao Brasil no passado para que pudesse ter verdadeiramente um povo (RAMOS, 1960, p. 228).

O economicismo da assertiva de Guerreiro Ramos reitera um problema recorrente – assim como em escritos de seus pares ibespianos/isebianos – e acentuado nesse momento da obra do autor: a articulação entre os aspectos econômico (de um lado) e social, político e cultural (de outro) é precariamente definida.[191] A preocupação com certa determinação econômica e sua reflexão no todo da vida social é freqüentemente construída de modo parcial ou falho; há um evidente exagero em relação à influência econômica na vida social e faltam as mediações necessárias quando considera seus efeitos; entretanto, quando do avanço da elaboração teórica, a análise acaba por conquistar certo desprendimento que, às vezes discrepante, outras contraditório mesmo, privilegia outros aspectos e dá evidente riqueza ao tratamento das questões, ainda que negue alguns supostos anteriores. Via de regra – na definição dos conceitos – o autor "carrega nas tintas" do aspecto econômico, todavia, ao utilizar-se dos conceitos em articulação e movimento, ressalta outros aspectos (como exemplo, veremos, podemos citar os conceitos de desenvolvimento, industrialização, povo). Tal ocorrência não deve ser atribuída simplesmente ao ecletismo mal-concatenado ou às deficiências lógicas do autor; equívoco razoavelmente comum, é sinal dos tempos em que – em parte devido à influência da economia e do marxismo vulgar – o aspecto econômico era tido como alicerce das proposições científicas da sociologia.

O aparecimento do povo – segundo o autor – traria consigo importantes conseqüências, pois lhe atribuía os seguintes "princípios" básicos:

1) O povo é o principal empresário do processo econômico brasileiro. Pelo seu trabalho, criam-se as riquezas, combinam-se os fatores e se os transformam em bens e serviços. Exerce o principal papel na realização das atividades produtoras, cabendo-lhes, portanto, o controle ideológico da programação global da economia;

2) O povo é uma realidade social englobante que ultrapassa o âmbito exclusivo de toda classe. É constituído majoritariamente de trabalhadores, mas se compõe também de elementos oriundos de outras classes e categorias;

3) O povo é o dirigente político do processo histórico-social. Exerce esta função, extraordinariamente, de modo direto; normalmente, de modo indireto, por intermédio de sua vanguarda;

4) O povo é o verdadeiro gênio da cultura nacional. Só existem cultura e ciência nacionais, do ponto-de-vista do povo. (RAMOS, 1960, p. 244, grifos nossos).

Mesmo como agente político primordial, o povo – ordinariamente – lançaria mão de sua vanguarda, sua "consciência militante", formada em sua maioria por trabalhadores e contando também com empresários, quadros técnicos profissionais e elementos da pequena burguesia, militares, estudantes e intelectuais; esta vanguarda – partindo da experiência concreta do povo – elaboraria uma "visão conjunta" das necessidades sociais e seria o elemento dirigente na defesa dos interesses do povo. Superficialmente (podemos supor), a vanguarda seria um grupo de atuação política, de identificação de anseios, promoção de valores e de condução das aspirações do povo.

Em discordância com algumas leituras – particularmente Carvalho (2003c), que supõe o povo formado por um corte horizontal na estrutura de classes –, parece haver no conceito guerreiriano um viés de subalternidade na constituição do povo, a presença de elementos de classe média, intelectuais e até empresários dar-se-ia num setor particular e nitidamente contrastante no interior de um grupamento superior (vanguarda) e, mesmo assim, como presença individual e não como categoria, camada ou classe; o empresariado enquanto classe social (assim como outros grupos) não seria parte integrante do povo, mas – no limite – haveria elementos desse grupo que se afinariam politicamente (ou cujos "projetos" convergiriam) com os anseios populares. Embora Guerreiro Ramos assinale que o povo ultrapassa o "âmbito exclusivo de toda classe", afirma também que é composto por trabalhadores e "elementos oriundos de outras classes e categorias" (grifos nossos), indivíduos (e não propriamente parcelas ou frações de grupos sociais) que teriam originalmente suas raízes em outras classes, mas que se reconheceriam na luta do povo.[192]

A entrada em cena do povo lançaria as bases da nação que, para Guerreiro Ramos, como...

[...] unidade histórica dotada de sentido ou como campo inteligível, nada mais é do que a forma particular de uma configuração espaço-temporal que surge onde quer que um agrupamento humano se alce da existência bruta à existência significativa, da condição puramente natural à condição histórica, de um modo de ser inferior a outro superior. (RAMOS, 1960, p. 29, grifos nossos).

O efetivar dessa elevação – da supressão da situação colonial, de dependência e destituição da circunstância de "proletariado externo do mundo ocidental" (termo tomado a Arnold Toynbee) – não seria uma ocasião "natural" e sim uma busca, uma opção, uma "escolha de caráter axiológico" (RAMOS, 1960, p. 30), que possibilitaria um destino histórico independente ("não reflexo"), assim "1822 é a data da independência de um território e não de uma nação" (RAMOS, 1957b, p. 86).[193]

Como parte dessa busca pela maioridade, seria imperativo incrementar a produção e o mercado interno, reverter o sentido do circuito econômico (de externo para interno) e desencadear o processo de autonomização do capitalismo brasileiro, isto é, ocasionar "uma promoção mediante a qual as regiões e nações passam de uma estrutura a outra superior" (RAMOS, 1996, p. 140), ou seja, provocar o desenvolvimento, entendido como:

[...] elevação da produtividade dos fatores (notadamente mão-de-obra) disponíveis num sistema econômico, seja por meio da divisão social do trabalho (especialização de funções), seja mediante a substituição da energia muscular pela energia mecânica. (RAMOS, 1996, p. 113).

Não seria o desenvolvimento, entretanto, processo estritamente econômico, sua plenitude estaria condicionada ao fato das decisões econômicas e os benefícios advindos das mudanças serem coletivamente socializados, só haveria desenvolvimento – afirma – "quando em determinada sociedade a população participa de transformações mediante as quais adquire melhores condições de existência", pois seria o "homem a medida do desenvolvimento" (RAMOS, 1996, p. 109). Os instrumentos para essa missão (planejamento, racionalidade e programação econômica, aproveitamento de recursos abundantes, etc.), notadamente tomados à influência cepalina, só atingiriam o efeito perseguido se mobilizados com "capacidade política" por meio de um projeto nacional: "não há programação nacional sem ideologia nacional" (RAMOS, 1996, p. 192). O próprio desenvolvimento econômico seria, ao final, um "problema político" (RAMOS, 1996, p. 181).

O "problema político", no entanto, dá lugar a certo automatismo quando Guerreiro Ramos afirma que "no desenvolvimento há uma causação circular; o excedente de produção e o modo de utilizá-lo determinam o progresso técnico, mas são também por ele determinados" (RAMOS, 1996, p. 142). No rastro de Keynes, o autor inverte as formulações de Myrdal e Nurske – que havia utilizado tal raciocínio para entender o círculo vicioso da pobreza – e menciona um "círculo virtuoso" do desenvolvimento".

O papel do Estado na promoção do desenvolvimento seria primordial, dele poderia emanar a racionalidade e coordenação para planejar e executar uma ótima disposição e uso dos fatores de produção. Guerreiro tinha para si, porém, que somente nos governos socialistas o Estado poderia se arvorar em administrador geral da sociedade, atuando ampla e profundamente no sentido de evitar as inconsistências e arbitrariedades privadas no trato dos negócios públicos. Todavia, naquele contexto de capitalismo dependente e divisão de classes, estaria limitado o escopo de iniciativa política por parte do Estado, restando assim um papel "shumpeteriano" aos "capitais privados": empreender – já que, por sua natureza, comportar-se-iam conforme outra lógica que não a do desenvolvimento "racionalmente organizado". Para ele, se "o tempo do Estado, como organizador da comunidade, não é o mesmo do capital privado" (RAMOS, 1996, p. 69), cumpriria ao poder público intervir para programar e organizar a produção nacional; contudo, sendo algo essencial para provocar o desenvolvimento, não o era de modo cabal, fazendo-se necessário, mas não-suficiente para garanti-lo; haveria ainda que mobilizar o povo como "empresário", propiciando "à comunidade nacional o controle de direito da programação do desenvolvimento" (RAMOS, 1996, p. 220).

Afluía da parte do autor uma desconfiança com relação à capacidade e disposição do empresariado na promoção do desenvolvimento, o Estado ainda era um ator privilegiado, embora penetrável à representação.[194]

Diferentemente de grande parte dos intelectuais do período, Guerreiro Ramos não encarava o desenvolvimento como fenômeno "em geral" (abstrato), percebia nesse processo interesses distintos e mesmo – em última instância – contraditórios.

O desenvolvimento, se quiserem o desenvolvimentismo, foi uma tese dos nacionalistas ou ainda o é daqueles mais retardatários. Todavia a lição última dos fatos da vida brasileira pode ser assim resumida: o desenvolvimento abstrato é entreguismo. Do ponto-de-vista da emancipação nacional, e da continuidade do desenvolvimento, não importa simplesmente que a renda contabilizada do País cresça a uma taxa alta, mas é necessário que as camadas populares participem desse crescimento, a fim de que o mercado possa acompanhar a expansão da capacidade produtiva. (RAMOS, 1961, p. 120).

Como processo social, o desenvolvimento deveria propiciar um relativo bem-estar ao povo, melhorando suas condições de vida e, por meio da participação (inclusive na renda), abrindo possibilidades de influência nas decisões; deveria dar suporte às necessidades materiais e aos anseios políticos do povo. Desenvolver o país significaria também "democratizá-lo", ainda que o Estado persistisse como uma espécie de "tutor" do processo.[195]

Ao diagnosticar a situação do país na conjuntura mundial e estabelecer comparações com outros países, Guerreiro Ramos deduz que "todo desenvolvimento se realiza necessariamente pela industrialização" (RAMOS, 1960, p. 113, grifos do autor) e endossa tal caminho. Alavanca do desenvolvimento, a industrialização seria processo modernizador por excelência: incrementaria a produção, propiciaria ganho tecnológico, autonomia de consumo e potencialização de fatores. Não obstante as realizações em termos de avanço das forças produtivas, atualizaria também as relações de produção, gerando conseqüências na consciência coletiva:

A industrialização deve ser entendida como categoria sociológica. Em tal acepção é um processo civilizatório, que se propaga por todos os setores da atividade econômica e não apenas pelo setor restrito do que normalmente se chama de indústrias. (RAMOS, 1960, p. 126, grifos nossos).

Referida industrialização teria reflexos na existência social dos indivíduos e na vida política do país, atuaria como fator de modernização da mentalidade coletiva: propiciando novas condições sociais e formas de sociabilidade, forjando os limites e a consciência dos grupos sociais e, em última instância, possibilitando uma compreensão ampliada da vivência social; engendraria assim um verdadeiro "processo civilizatório", uma vez que imbuída do status de "categoria sociológica" – de forma de relação entre sociedade e natureza em razão da substituição das forças humanas pelas mecânicas, "libertação dos determinismos cósmicos pelo domínio" social (RAMOS, 1957b, p. 111) - adquiriria caráter ontológico.

Em relação à questão agrária, o autor é lacônico ao afirmar que só o desenvolvimento e a industrialização poderiam – ao espraiar seus efeitos – transformar a vida do homem do campo; medidas como organização de comunidades, educação sanitária, assistência social e outras desse gênero seriam inócuas, já que partiriam de princípios equivocados, como o que pressuporia que a sociedade rural fosse um "sistema fechado". A melhoria da qualidade de vida no campo dever-se-ia primeiramente à transformação tecnológica e, por conseqüência, ao incremento da produtividade do trabalho rural, assim, caberia rever a "questão da fixação do homem no campo"; esse migraria para as cidades não apenas por voluntarismo, mas porque não conseguiria integração econômica na estrutura regional. Tal êxodo, aliás, não seria um mal em si, e sim um dos efeitos inevitáveis do desenvolvimento econômico: a transferência de mão-de-obra do setor primário para o secundário e terciário – os países desenvolvidos seriam prova disso (RAMOS, 1957b, p. 110).

Guerreiro Ramos nutria certa aversão ao Brasil rural e suas contingências, que identificava com o atraso e o reacionarismo, ao passo que o urbano seria – em regra – o moderno e progressista. Não deixou, entretanto, a partir de 1962, de defender uma reforma agrária no Brasil; em seu panfleto de campanha para deputado federal propunha a realização dessa reforma por meio da "emancipação dos camponeses" e resolvendo "os dois problemas gêmeos da agricultura brasileira", a saber, "a superprodução de café e de outros produtos de exportação" e a "escassez e carestia dos produtos de amplo consumo popular, especialmente gêneros alimentícios" (apud AZEVEDO, 2006, p. 229). Em sua atuação parlamentar (em 1963), discursou algumas vezes em favor da reforma agrária, alegando necessidades estruturais de resolução da questão para alavancar o desenvolvimento, mormente em sua etapa de industrialização.

Quando da defesa – pelo autor – de uma reforma agrária (sem especificá-la), fê-la sempre em termos gerais e circunstâncias fugazes (panfleto de campanha e discurso parlamentar), em seus livros não há grandes referências à questão agrária e tampouco defesa da reforma agrária nos termos de uma divisão de terras e fixação do homem no campo como objetivos "em si". Ao que parece, enquanto parte da questão agrária, a reforma seria para ele uma forma de eliminar alguns obstáculos ao desenvolvimento econômico e seu carro-chefe, a industrialização; possivelmente, tomava a realização da reforma agrária como modo de diversificar e aumentar a produção rural de bens (alimentícios em particular) por parte dos trabalhadores rurais, o que lhes possibilitaria meios de sobrevivência digna e certa autonomia (ao fundo política) para se libertarem do jugo da dependência em relação aos latifundiários, desse modo, forneceriam no mercado interno matéria prima à indústria e meios de subsistência ao proletariado, baixando os custos de produção e proporcionando melhores condições de vida também aos trabalhadores urbanos. Haveria, sobretudo, uma preocupação em desobstruir o processo de desenvolvimento e industrialização, fortalecer o mercado interno e elevar o nível de consciência das massas rurais para impedir a instrumentalização política pelo setor atrasado e reacionário do país. A preocupação com o êxodo rural e conseqüentemente o excesso de oferta de mão-de-obra e a queda do nível (nominal) de salários, comum em alguns autores do período, não parece ter grande relevância para Guerreiro Ramos, ao contrário, esse "processo de abertura do complexo rural, que permite a migração de fatores (mão-de-obra e capitais) do campo para as cidades, ainda hoje é uma importante referência dinâmica da economia brasileira" (RAMOS, 1957b, p. 44).

Um problema então em pauta, o das desigualdades e desequilíbrios regionais no Brasil, é definido pelo autor como eminentemente político e recebe uma atenção particular. Assinala que as regiões Norte e Nordeste não seriam prejudicadas pelo desenvolvimento econômico do "Sul" do país – ao contrário, seriam mesmo beneficiadas – e o próprio ritmo e forma "normal" de evolução do processo dar-se-iam por meio da integração entre um centro dinâmico (representado pelo "Sul") e a periferia (outros estados). Nessas condições, com o tempo, o pólo de dinamismo tenderia a deslocar-se para dentro do país (e não para o exterior) – movimento impulsionado pelas atividades reivindicatórias e pressões políticas exercidas pelas massas.[196]

A conclusão, para uma análise que se queria preocupada com o aspecto político, soa por demais confiante na funcionalidade e na diminuta margem de irracionalidade do processo econômico capitalista sem um planejamento superior e/ou na ação política racionalizadora (geralmente difusa) das exigências das massas. Curiosamente, o Estado, até então presente nas formulações do autor como encarnação da racionalidade e planejamento, nesse caso, limitar-se-ia a proporcionar condições de atuação dos interesses legítimos.

Lançando mão das teorias da CEPAL a respeito do desenvolvimento possível, de G. Myrdal para explicar a causação circular que até ali beneficiaria o "Sul" do país, de R. Nurske para elucidar o "efeito demonstração" (concebido inicialmente por J. S. Duesenberry)[197] que assolaria os países subdesenvolvidos e prejudicaria a formação de capitais, e de Shumpeter, P. Baran e P. Sweezy para entender o desenvolvimento como questão não somente econômica (mas sobretudo política), Guerreiro Ramos, sem perder de vista o "caráter subsidiário" da produção estrangeira – que afirmou em A redução sociológica – utiliza os argumentos dos autores reconsiderando sua funcionalidade nacional: "Uma coisa é a teoria geral do desenvolvimento. Outra é a teoria do desenvolvimento nacional de cada país" (RAMOS, 1960, p. 193). O Brasil seria um caso único e a percepção dessa originalidade deveria nortear a práxis dos sociólogos. Daí afirmar mais tarde a necessidade de "salvar o fenômeno nacional" (RAMOS, 1983a, p. 543).

Pouco citado, mas muito presente nas formulações do autor, é Ignácio Rangel, com o qual conviveu na Assessoria de Vargas, no IBESP, no ISEB e compartilhava muitas idéias.[198] Em prefácio ao livro seminal de Rangel – Dualidade básica da economia brasileira, editado pelo ISEB em 1957 – Guerreiro Ramos alerta para a centralidade da categoria de dualidade (elaborada por Rangel).[199] "De há muito a sociologia brasileira procurava explicar a falta de correspondência entre os dois planos de vida do País: o superficial e o profundo, o externo e o interno, o explícito e o implícito" (RAMOS, 1957a, p. 10). Pleiteia, então, extrapolar tal categoria para o entendimento do conjunto da vida social nacional:

A dualidade não é apenas uma lei de nossa economia, mas da sociedade brasileira em geral [...] a categoria de dualidade tornou obsoleta a teoria sociológica da transplantação, vigente no Brasil até bem pouco tempo. (RAMOS, 1957a, p. 12).

Com isso, Guerreiro apontava para a conclusão de que não haveria mais que se pensar a sociedade brasileira e seus fenômenos como efeitos da transposição – a partir do exterior – de idéias e instituições, dado que já existiria consolidado na realidade brasileira certo arranjo de condições que disseminava suas próprias determinações, uma espécie de "interiorização" da situação de transplantação, que se traduziria agora em heteronomia.

O conceito de dualidade – relacionado à coexistência de dois tipos de sociabilidade numa mesma formação social, em termos de um setor moderno em contraposição a outro tradicional – fundamentou muitas das interpretações sobre a sociedade brasileira nas décadas de 1950 e 1960. Afastadas as sutilezas e matizes, o conceito propunha a análise da situação brasileira como marcada pelo conflito/contradição entre moderno e tradicional, no sentido de que o primeiro representaria o novo, o moderno, a evolução do capitalismo, e o segundo, o arcaico, atrasado, as sobrevivências não-capitalistas (fossem feudais, escravistas, formas primárias de produção de subsistência, etc.). Em geral, crentes no desenvolvimento capitalista e presos a interpretações relativamente evolucionistas e baseadas nas leituras das formas "clássicas" dessa evolução nos países de capitalismo central (mormente França e Inglaterra), os autores brasileiros – em sua maioria – tendiam a perceber a superação de tal impasse dualista como o avanço (mais ou menos inexorável) do processo de absorção (ou solapamento) do setor arcaico pelo novo – o que, obviamente, mostrou-se mais tarde como algo ingênuo.[200]

Na visão de Guerreiro Ramos da evolução socioeconômico do país, não obstante a crença no lastro "civilizatório", as transformações pretendidas não seriam, ainda assim, processos imanentes, haveria de se superar os obstáculos e agir politicamente para instaurar as melhorias que poderiam acarretar; mais que isso, virtualmente possíveis, os efeitos benéficos não seriam inexoravelmente garantidos, sendo necessário o domínio das mudanças para que se lhes imprimisse a direção devida, o que seria claramente um problema político. Desenvolvimento e industrialização não seriam garantias inerentes de ingresso na modernidade, vide as preocupações – expostas anteriormente – do autor quanto às necessidades de real geração de melhoria de renda (e de vida) e de participação à população em geral.

Em suma, desenvolver e industrializar o país – para o autor – não equivaleria a equacionar todos os seus problemas, traria sim (possíveis) ganhos econômico-sociais e na atualização na consciência nacional, mas não há na sua concepção relação causal ou de determinação necessária – que comumente se arbitrava – entre desenvolvimento e aperfeiçoamento das instituições, ampliação das condições efetivas de participação política e, no limite, promoção/consolidação da democracia. Não que admitisse uma via de desenvolvimento não-democrática, ao contrário, pensava o pleno desenvolvimento como um processo eminentemente democrático, o que não significa, por outro lado, que possuísse uma visão ingênua do processo político e considerasse a democracia como processo orgânico, conseqüência natural do desenvolvimento. Industrialização e desenvolvimento poderiam promover substantiva modificação na condição econômica e sociopolítica do país se coadunados com um outro processo (acentuadamente político) – mais rico, amplo e complexo – que efetuaria profundas transformações na sociedade brasileira: a revolução.[201]

2. A revolução brasileira

Guerreiro Ramos descartava o conceito de "mudança social", segundo ele influência da sociologia formalista e estática norte-americana que (como outros produtos) importamos, pois teria um cunho conservador e nutriria a pretensão de dar valor heurístico ao dinamismo (característica essencial do acontecer social) em contraposição à estagnação, considerada assim como estado normal da sociedade. À grande transformação que aspirava para a sociedade brasileira, chamou revolução:[202] "revolução brasileira" que, em suma, seria "nacional"[203]; não nacional no sentido que lhe foi atribuído por alguns comunistas e socialistas (como etapa do desenvolvimento do capitalismo e para a revolução socialista), ou como ascensão de uma burguesia local ao poder, ou processo de expansão democrática, ou mesmo afirmação do interesse interno apenas, mas nacional como só a revolução brasileira poderia sê-lo. A revolução nacional não seria "brasileira" porque aqui se desenrolaria, seria nacional justamente por ser brasileira, por ser fundada na originalidade do país, enraizada nesta realidade.[204]

Analisando a questão em A crise do poder no Brasil [205]assevera:

Criadas se encontram no Brasil as condições objetivas da revolução nacional. Falta criarem-se as subjetivas. É provável que no presente qüinqüênio do Presidente Jânio Quadros surja momento de intensa fermentação revolucionária. É necessário que, na oportunidade, estejam organizados os quadros capazes de merecer esse momento. Então deverá ser cortado o nó górdio do processo brasileiro, ato que, de uma vez por todas, divorciará a nação da antinação. O modelo da revolução brasileira será necessariamente inédito. Foge assim de domesticações à distância. Não será soviético. Não será chinês. Não será cubano. Em toda sua História, o Brasil tem sido original na América e no mundo. Eis porque o quadro da revolução nacional brasileira será necessariamente independente em relação a qualquer espécie de Internacional. (RAMOS, 1961, p. 17, grifos nossos).

Nessa revolução, inédita defrontar-se-iam nação e antinação,[206] que representariam – respectivamente – as forças sociais engajadas na luta entre libertar-se do caráter reflexo da vivência história brasileira, apoderar-se dos seus instrumentos decisórios e destino político e, de outro lado, pretender manter o estado de coisas no sentido de perpetuar o alheamento do país em relação às suas possibilidades de autonomia; ou, como Guerreiro Ramos (1960, p. 85, grifos nossos) dinamicamente definiu: "O aspecto fundamental da problemática do nosso país consiste em aguda tensão entre forças centrípetas e forças centrífugas nele atuantes".

Todavia, quais seriam a forma e o sentido dessa revolução?

A revolução nacional, esclareça-se logo, não está necessariamente associada aos eventos dramáticos que constituem o cortejo habitual das insurreições e quarteladas. Tecnicamente, e nesse sentido é que usamos a expressão, consiste na mudança qualitativa que se opera numa coletividade humana, quando passa de uma fase histórica para outra superior. Em nossos dias, todos os países que realizaram sua revolução nacional esforçam-se em fazer de sua política externa um campo tático de promoção do seu desenvolvimento. Sua maioridade histórica exibe-se na aptidão que revelam para libertar-se de posições caudatárias. A firmeza de tal conduta supõe uma perfeita articulação das instâncias de poder com as massas populares. (RAMOS, 1960, p. 37, grifos nossos).

Quanto ao caráter da revolução, o diagnóstico do autor é cabal: o Brasil ainda estava localizado em determinada fase histórica – embora numa posição de transição e coexistência de tempos (contemporaneidade do não-coetâneo) – na qual a revolução revestir-se-ia de um caráter capitalista, vez que, devido à falta de condições objetivas (e também subjetivas, veremos), o país ainda não estaria apto a almejar o socialismo.[207]

Quais seriam então os sujeitos da revolução e como se apresentariam?

Os autores isebianos, por vezes, foram criticados por não proceder sistemática e profundamente uma análise das classes sociais no Brasil, não obstante outros poucos autores o terem feito seriamente, há sem dúvida nas concepções dos isebianos – e já havia no IBESP – análises relativamente detalhadas a respeito da configuração das classes sociais no Brasil e suas posições no espectro de luta.[208]

Se já havia dado anteriormente indicativos quanto a essa questão (RAMOS, 1957b), Guerreiro Ramos explicitamente o faz em O problema nacional do Brasil. Haveria – afirma – uma peculiaridade brasileira na questão da gênese das classes sociais, a saber, a aliança entre os grandes proprietários rurais e os comerciantes; se na Europa existiria uma contradição entre eles, no Brasil – no qual vigoraria o latifúndio, que internamente lembraria de modo remoto uma forma de enfeudação e externamente uma empresa comercial moderna (numa óbvia aplicação da lei da dualidade como definida por Ignácio Rangel) – muitas vezes teriam encarnado o mesmo personagem. Essa composição social teria emancipado a colônia, dado ao país uma organização nacional e continuaria uma sólida expressão consciente de interesses.[209]

Com o desenrolar desse processo, parte significativa da burguesia industrial no Brasil teria se formado em estreita relação com os próprios latifundiários e comerciantes, configurando uma relação de "ambigüidade dialética" antes que de contradição (RAMOS, 1957b). Assim, com o avanço (tardio) da revolução industrial, quando as burguesias dos países centrais já se teriam lançado à conquista do setor industrial nos países periféricos, teria havido uma diminuição das oportunidades e um arrefecimento dos ânimos dessa burguesia industrial nativa (brasileira), que passaria então a ser assediada para a colaboração técnica e financeira com aquelas burguesias, nublando sua consciência social (e nacional) e intimidando-a como classe empreendedora.

Paradoxalmente, Guerreiro Ramos nutria certas esperanças quanto ao desempenho econômico da burguesia – mormente a industrial –[210] e, no entanto, duvidava da disposição e capacidade política dessa classe para dirigir o processo histórico:

Um grande papel, no quadro que delineamos, é reservado aos setores do meio empresarial. Embora incluam a agricultura e o comércio, é à indústria que, na fase atual do processo brasileiro, cabe liderar as reivindicações do nosso nascente capitalismo. A revolução brasileira em marcha em nossos dias é eminentemente uma revolução burguesa, de que está resultando nova classe de empresários, distinta daquela que, até cerca de 1930, era dominante no Brasil, a classe dos fazendeiros. Esta classe nova não apresenta, contudo, em sua conduta global, um mínimo de coerência, quanto aos objetivos que persegue. (RAMOS, 1960, p. 215, grifos nossos).

Entretanto...

Tudo parece mostrar que, no Brasil, não se está formando uma burguesia capaz de ter iniciativa de uma revolução nacional. Ao contrário do que se registrou no Ocidente Europeu e nos Estados Unidos, nossa burguesia não está apta para levar a efeito esse cometimento. É antes o povo que conduzirá a revolução nacional brasileira. (RAMOS, 1960, p. 237, grifos nossos).

Com um importante papel político reservado para si, essa burguesia (industrial), todavia, não o exerceria; seu caráter vacilante – quanto às suas "tarefas históricas" – também geraria um impasse na resolução do processo político brasileiro, que o autor chamou de "situação dramática".

[...] há, hoje, no Brasil, uma nova classe dominante, que ainda não se tornou classe dirigente por carecer da consciência das necessidades orgânicas da sociedade brasileira em sua fase atual. Quer isso dizer que a força política e o poder econômico estão nas mãos de pessoas jurídicas e físicas que, em larga escala, não têm consciência sistemática do projeto pressuposto por sua condição. (RAMOS, 1960, p. 26, grifos nossos).

Essa tensa coexistência na base do poder seria algo paralisante, que emperraria o desenvolvimento, postergaria as tarefas, minaria a ação renovadora que porventura uma nova burguesia pudesse ter e mesmo nublaria a consciência de sua situação: "A lógica do atual processo brasileiro confere à nova classe dominante um poder que ela subexerce e subutiliza, por isso que ainda não é dirigente" (RAMOS, 1960, p. 27). Aparentemente, Guerreiro Ramos cria na capacidade dessa fração de classe em impulsionar uma revolução burguesa, mas não nacional; os esforços e horizonte ideológico poderiam conduzi-la à afirmação econômica, cujos objetivos e interesses sua consciência permitiria vislumbrar, todavia, uma radical transformação das condições sociais de existência estaria distante de seu alcance.

Em agravo ao quadro, ao defrontar-se com um proletariado urbano já "institucionalizado", "portador de estatuto legal" e da mais poderosa consciência de interesses entre todas as classes, a burguesia ver-se-ia em competição pelos mesmos papéis históricos que os trabalhadores, intimidando-se por receio de perder terreno nas vantagens materiais que desfrutava.[211] Já o proletariado rural, apesar dos avanços sociais e em termos de consciência coletiva, ainda seria – por vezes – instrumentalizado pelos interesses políticos dos setores capitalistas mais atrasados, funcionando como contrapeso às lutas trabalhistas urbanas. Distanciando-se de grande parte das análises da época, o autor menciona um proletariado rural e não um campesinato,[212] o que deixa entrever que não compartilhava das concepções que identificavam uma formação feudal (passada ou existente de modo residual) no Brasil. O latifúndio, ainda dominante na estrutura agrária, guardaria semelhanças, no seu aspecto "interno", mas não seria definitivamente uma instituição feudal (RAMOS, 1960, p. 237-8).

Quanto à classe média, "espécie de vanguarda de todos os movimentos revolucionários durante a fase colonial" (1500-1822), também de modo peculiar no Brasil, não se teria formado no incremento de funções técnicas e qualificadas do sistema produtivo, em geral, seria de extração pequeno-burguesa e abrigar-se-ia (em situações parasitárias) em postos no Estado, o qual criava ocupações devido à falta de empregos na produção e, para – no limite – acomodar/cooptar elementos que poderiam vir a desencadear possíveis dissensões. De papel progressista na República até 1930, estaria então (naquele fim dos anos 1950) – pressionada pela crescente politização da burguesia industrial e do proletariado – adotando posições à direita (RAMOS, 1957b, p. 46); todavia, além de um setor dessa ter mantido continuamente estreitas relações com o povo, um outro setor (moderno) da classe média, que estaria se formando em razão das qualificações técnicas engendradas pela industrialização, tenderia a aliar-se ao povo e efetuar "papel relevante na vanguarda das lutas sociais" (RAMOS, 1960, p. 239, grifos nossos).[213]

A revolução brasileira, ao que tudo indica, seria para o autor prerrogativa do povo, sujeito social de inquestionável aptidão para a tarefa, formado basicamente pelos trabalhadores (proletariado urbano/rural) e contando também com "elementos" (indivíduos) progressistas provenientes de outras classes, compondo uma frente com os setores (avançados) de classe que teriam interesse na transformação e se afinariam com tal projeto (burguesia industrial e setor esclarecido da classe média). Tal vocação do povo para a transformação da realidade brasileira não tem suas bases explicitadas pelo autor, imediatamente, ao que parece, sua condição de subalternidade, de descompromisso com os interesses arcaicos e mesquinhos que se perpetuavam na sociedade brasileira e sua posição socialmente contestadora dos privilégios, além de seus interesses econômicos prementes, conferia-lhe essa condição – afora o fato de ser, como maioria excluída das decisões, o principal impulsionador da expansão da sociedade política e, logo, da democracia.

A democracia não é objeto de atenção especial por parte de Guerreiro Ramos (e grande parte dos autores do período), não há em sua obra uma definição conceitual ou análise sistemática da democracia e sua condição na sociedade brasileira. Depreende-se que seria subsidiária (e também impulsionadora) do desenvolvimento (autônomo e nacional), bem como teria como ingredientes: a ausência de preconceito de cor, relativa igualdade social em termos ausência de grandes disparidades econômicas (níveis de renda) e de status social (tratamento eqüitativo), expansão da sociedade política, garantias de participação e representação, manutenção de rotinas de decisão e circulação no poder, e exercício da soberania nacional – para ele seria implausível conceber como democrática uma sociedade que estivesse refém de injunções externas. Definida em termos substantivos, a democracia consistiria numa ordem social que propiciasse soberania, cidadania, relativa igualdade (inclusive de tratamento), condições dignas de sobrevivência material e "livre" exercício político.

3. Nacionalismo: ideologia revolucionária e ciência

O nacionalismo é apresentando pelo autor como a forma autêntica – naquela fase histórica – de vivenciar a realidade brasileira. Como, entretanto, o autor define conceitual e metodologicamente a realidade brasileira? Obviamente, se a tomasse – como era de seu feitio – como algo dinâmico, relacional, histórico e em constante mutação, não poderia ser definida de modo simplesmente descritivo; por outro lado, defini-la formalmente seria cair na própria armadilha para a qual alertava: dissipar a especificidade complexa que justificaria a necessidade do conceito.

O esforço de Guerreiro Ramos (1960, p. 85) principia por considerar "a realidade brasileira como fenômeno total, na acepção de Mauss, isto é, com um todo cujos caracteres se apresentam, não só no conjunto, como em cada uma de suas partes, variando apenas de escala, de uma para outra".[214]

Ao investigar os fatos da vida social – afirma ele – dever-se-ia ter em vista que "a coleta de fatos não tem sentido se não for orientada pelo ponto de vista da totalidade, por um a priori" (RAMOS, 1960, p. 82, grifos nossos), pois os caracteres impressos nas variadas partes só adquiririam sentido quando relacionados ao todo; sem a noção anterior do todo, as diferentes partes seriam esvaziadas do sentido completo que conteriam em gérmen, nas palavras do autor, "em escala". Assim, afirma que "a teoria global de uma sociedade é o requisito prévio para a compreensão de suas partes" (RAMOS, 1960, p. 83).

Precipita-se então na contramão da posição hegemônica na sociologia brasileira do período (e daí em diante), que afirma a necessidade de estudos empíricos (particulares) como subsídios para uma análise mais generalizadora da sociedade brasileira, compondo o todo por meio de um mosaico de partes relativamente avulsas. A posição guerreiriana – nítida em suas propostas apresentadas ao II Congresso Latino-Americano de Sociologia (1953) – pleiteia uma dialética entre as partes (e entre estas e o todo), cujo princípio se funda em tomar as próprias partes como emanações do todo; tais unidades não teriam – primariamente – conteúdo/forma autônomos, isolados em si, sua própria existência parcial já acusaria a influência da totalidade, que teria posição preponderante. Desse modo, a dialética não avançaria simplesmente do particular ao geral, da análise à síntese, do empírico à construção abstrata mais complexa; demandaria uma noção "anterior" do geral que orientaria a própria apreensão dos aspectos particulares, culminando numa generalização mais elaborada, numa totalidade "superior".

Com essa "totalidade a priori", seria possível não somente ir às partes com certo respaldo teórico, a partir dela poder-se-ia delimitar uma perspectiva como ponto de partida, já que a assunção de um lugar social delimitado histórica e socialmente seria essencial para se atingir a compreensão profunda do todo, e nem todos os lugares sociais – tomados como pontos de vista – seriam adequados para alcançar uma visão abrangente.

Nessa ordem de idéias, isto é, partindo de um sum (sou brasileiro), procuraremos empreender um esforço tendente a contribuir para a compreensão global de nossa sociedade. Essa tarefa tem prioridade sobre qualquer outra, no domínio das ciências sociais em nosso país. Não deveríamos partir para estudos de pormenor antes de termos consciência crítica da realidade social do país. Aqui também é a visão do todo que condiciona a compreensão das partes. (RAMOS, 1960, p. 85, grifos nossos).[215]

Resta saber se uma "consciência crítica da realidade social do país" poderia ser alcançada a partir de uma noção "apriorística" da totalidade.

De outro lado, os principais empecilhos teóricos para a compreensão geral da realidade nacional seriam o "empirismo", que insistiria em privilegiar a parte em detrimento do todo, e o "dogmatismo", que afirmaria aspectos estáticos contra a fluidez do fenômeno e promoveria ainda "a interpretação da realidade social em termos da preponderância sistemática de um determinado fator, seja a raça, seja o clima, ou outra condição geográfica, seja a economia, seja a cultura, seja a alma ou o caráter nacional, ou de outro qualquer fato" (RAMOS, 1960, p. 83).[216]

Apresentado o método, persiste o problema, como dar conteúdo à forma da "realidade nacional"?

Guerreiro Ramos utiliza um expediente curioso: identificando um "cisma" na vida brasileira, a existência de duas sociedades – "uma velha, com todos os seus compromissos com o passado, outra recente, implicando novo estilo de vida ainda por criar ou apenas ensaiado em círculos de vanguarda" (RAMOS, 1960, p. 87) – e procede a definição da velha sociedade em função da nova, numa atitude de negação. Justifica-se: "Nessas condições, a descrição sumária a que vou proceder, embora se caracterize pelo que nega, postula o seu contrário. Esse contrário é o nosso projeto, em função do qual avaliamos a presente circunstância brasileira" (RAMOS, 1960, p. 88).[217] O descritivo, o analítico, o sintético e o normativo se articulam como recursos epistemologicamente complementares.

Expõe então um estudo "tipológico" no qual figuram as seguintes "categorias compreensivas" que representariam a espinha dorsal da velha sociedade:

1) dualidade: a coexistência inevitável numa mesma fase cultural de diferentes tempos históricos e – conseqüentemente – de diferentes formas de existência numa mesma realidade;

2) heteronomia: incapacidade de induzir critérios da realidade nacional, submetendo-se a um processo mimético de adesão a valores e condutas de centros culturais e tecnológicos de maior prestígio;

3) alienação: antônimo de autodeterminação, fenômeno pelo qual a sociedade é "induzida a ver-se conforme uma ótica que não lhe é própria, modelando-se conforme uma imagem de que não é o sujeito";

4) amorfismo: falta de formas que organizem a vivência social, que lhe dêem "antecedentes e conseqüentes", evoluindo assim a sociedade não "pela mediação de forma a forma, mas por improvisos, em que tudo começa sem antecedentes";

5) inautenticidade: existência social falsificada ou perdida em mera aparência, que não reflete a apropriação pelo sujeito do próprio ser social (RAMOS, 1960, p. 88-97).

A apreensão da realidade brasileira estaria condicionada pelo nacionalismo, de conteúdo "revolucionário", cuja ideologia mobilizaria para a revolução brasileira. Todavia, como se caracterizaria o próprio nacionalismo?

O nacionalismo é a ideologia dos povos que, na presente época, lutam por libertar-se da condição colonial Eles adquiriram a consciência de sua restrita capacidade autodeterminativa e pretendem exercê-la em plenitude. Mas a capacidade autodeterminativa, ou a soberania, não é atributo inato, dom da natureza, nem se obtém à maneira de dádiva de um poder munificente. A efetiva soberania é atributo histórico adquirido pelas coletividades, mediante luta, audácia e iniciativa. (RAMOS, 1960, p. 225).

E mais: "O nacionalismo é mais do que amor à terra e a lealdade aos símbolos que a representam. É tudo isso e o projeto de elevar uma comunidade à apropriação total de si mesma, isto é, de torná-la o que a filosofia da existência chama um "ser para si"" (RAMOS, 1960, p. 32).[218]

Como projeto político, o nacionalismo seria a idéia-força que poderia conduzir os povos periféricos – alijados de sua soberania – a alcançar a maioridade política, econômica, social e cultural; só afirmando sua nacionalidade elevar-se-iam à condição de arbitrarem os próprios destinos e postarem-se internacionalmente como sujeitos políticos. E, embora naquele momento vigessem – assinala o autor – as tarefas nacionais para o país (que emergia do colonialismo), o nacionalismo não se converteria em realidade última, mas estágio para o alcance das referidas aspirações.

O nacionalismo – como ideologia – só adquiriria força devido à participação popular, jamais poderia – afirma Guerreiro Ramos – ter outro enraizamento: "O nacionalismo é essencialmente uma ideologia popular e só poderá ser formulada induzindo-se da prática do povo os seus verdadeiros princípios", sob pena de incidir nas várias modalidades equívocas de nacionalismo (RAMOS, 1960, p. 230):

1) nacionalismo ingênuo: consistiria "numa reação elementar de autoexaltação do grupo", algo próximo do etnocentrismo;

2) nacionalismo utópico: caracterizar-se-ia "pela cegueira à lógica material das situações constituídas";

3) nacionalismo de cúpula: que teria como propagadoras figuras (bem ou mal intencionadas) expressivas da classe dominante em busca do favor popular;

4) nacionalismo de cátedra: consistiria "numa posição assumida apenas no plano verbal". É o nacionalismo de professores e intelectuais que não estão dispostos a assumir os riscos implícitos na orientação que dizem adotar;

5) nacionalismo de circunstância: seria o oportunismo, a procura por tirar vantagens da ocasião (RAMOS, 1960, p. 248-52).

"Ideologia revolucionária", o nacionalismo teria para com a construção da nação uma dinâmica e complexa articulação: depois de determinada fase de consolidação de condições básicas (certa infra-estrutura material e densidade social) para se cogitar efetivamente a existência de uma forma autônoma de capitalismo, estabelecer-se-iam condições para a existência plena da nação (primordialmente, o nascimento do povo) e floresceria o nacionalismo como modo de mobilização e organização político-social, visando desencadear as forças necessárias para se atingir o ponto de mutação que transformaria qualitativa e cabalmente o país, consolidando o capitalismo nacional e a nação.

[...] a nação não se dá independentemente da existência de um mercado interno, de um sistema de transportes e comunicações suscetível de interligar todos os recantos do território [...] a nação brasileira só poderia verificar-se, em toda sua plenitude, com o surgimento de um capitalismo brasileiro. (RAMOS, 1957b, p. 32).

Por ser uma ideologia, uma idéia motriz, uma aspiração viva – popular e mobilizadora – o nacionalismo não se esgotaria ou formataria em um amontoado de axiomas com salvaguarda científica; as ideologias não poderiam – segundo Guerreiro Ramos – ser formuladas cientificamente:

[...] a ciência se define por um esforço de transcender a ideologia, embora se admita seu insuperável condicionamento histórico-social. Portanto, elaborar ou defender uma ideologia é confessar um propósito mistificador [...] a defesa de uma ideologia não é bem tarefa do homem de ciência como tal. É tarefa do homem de partido. A tarefa do homem de ciência é formular a teoria. (RAMOS, 1963, p. 210).

A ideologia emergiria como aspiração social e não como algo tramado, teria como função a mobilização política, e sua efetividade frente aos desafios históricos só poderia ser avaliada após os acontecimentos – post festum, como gostava o autor de se expressar. Não seria, portanto, tarefa do sociólogo (enquanto cientista) formular ideologias, até porque, segundo Guerreiro Ramos (alfinetando o ISEB após sua saída), "ideólogo que se preza não é professor de ideologia nacionalista" (RAMOS, 1963, p. 210).

Nunca houve, na história da inteligência, quem quer que seja minimamente categorizado para o trato das coisas do saber, que concebesse a idéia de formular uma ideologia. Só as ideologias mortas podem ser narradas. As ideologias vivas, como o nacionalismo em nossa terra, são inenarráveis como sistema. (RAMOS, 1963, p. 209).

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10


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