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António Sérgio Pedagogo e Político Sérgio (página 2)

Carlos Alberto de Magalhães Gomes Mota
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6

Para Nóvoa e Hameline, António Sérgio vai ocupar um lugar muito especial na vida e na história do Instituto Jean-Jacques Rousseau, como se vê por um relatório do director do Instituto, guardado nos Arquivos que refere a presença de três portugueses em 1913-1914: o casal De Sousa pertence a este número. Correspondência vária de António Sérgio, dirigida nomeadamente a Álvaro Pinto e a Raúl Proença, permite-nos saber que o casal chegou a Genève no princípio do mês de Abril de 1914 tendo aí permanecido até ao Verão, regressando um ano mais tarde, instalando-se na Suíça durante todo o ano académico 1915-19166. Verificamos assim que Sérgio e a esposa foram para Genève para estudar e tornaram-se notados pelos professores do Instituto J. J. Rousseau porque temos disso várias provas, como notam Hameline e Nóvoa: "na acta da reunião do dia 20 de Novembro de 1915, recomenda-se vivamente a todos os alunos, novos e antigos, a inscrição no Livre d'Or e a redacção de um curriculum vitæ tão completo quanto possível".

Por outro lado, na acta da reunião do dia 22 de Janeiro de 1916, a autobiografia de António Sérgio já é apresentada como exemplo:"É favor seguir o excelente exemplo do nosso presidente redigindo, na medida do possível, uma autobiografia tão completa quanto possível".

Aliás, António Sérgio faz parte da minoria de alunos que tem acesso à revista do Instituto, L'lntermediaire des Educateurs, onde publica dois artigos no decurso da sua escolaridade. Como sublinham Nóvoa e Hameline "a 1ª contribuição aparece em Janeiro-Março de 1916, retomando o título de um estudo de Claparède publicado alguns meses antes, "Droite et Gauche". Claparède tinha proposto uma equação para calcular o "coeficiente de simetria": Sérgio critica a sua vaidade matemática e sugere uma outra fórmula. Ao publicar esta crítica, onde o "aluno" discute de igual para igual com o "mestre", o Instituto mostra-se fiel ao seu ideário pedagógico. E a autoridade "autónoma" de Sérgio não deixa de sair reforçada. "

Para Nóvoa e Hameline, parece estranho que Sérgio se tenha empenhado numa produção autobiográfica, incutindo mesmo tal interesse pelos seus colegas do Instituto; mas o que parece mais importante é a inscrição no Livre d'Or que não é uma formalidade administrativa. A ideia nasce e desenvolve-se no seio da Amicale, associação que corresponde ao desejo de Claparède de romper com o formalismo académico e de instaurar um tipo de relação entre professores e alunos coerente com a doutrina "liberal" do Instituto. O projecto só ganha corpo em 1915, quando António e Luísa Sérgio regressam à Escola das Ciências da Educação. Na discussão dos estatutos da Amicale, aprovados em 25 de Junho de 19157, Claparède insiste na necessidade de uma apresentação pessoal de cada membro da sociedade através de um breve curriculum vitæ, indo mesmo ao ponto de sugerir que "após o abandono do Instituto continuar-seá a registar os grandes factos da sua vida, à medida que forem sendo conhecidos".

Esta sugestão é particularmente utópica e não terá seguimento. Mas revela claramente a intenção de Claparède: criar no Instituto um registo-testemunho, no qual as histórias individuais de uma população tão heterogénea viriam ilustrar o desígnio de uma história que doravante se pretende comum. Todavia, a revista L'lntermédiaire des Educateurs continuará durante vários anos a publicar notícias sobre os antigos alunos8:

O Livre D'Or tem 117 notícias de alunos que não estão datadas nem organizadas cronologicamente o que leva a pensar que se limitam a assinalar as actividades profissionais e alguns episódios pessoais ou a confessar que não possuem nenhuma experiência pedagógica digna de registo9. Por isso não surpreende que o texto de Sérgio tenha causado uma impressão tão forte nos seus colegas, servindo de detonador e de exemplo.

"Apresentada como exemplo, a autobiografia de António Sérgio vai efectivamente desempenhar este papel. Uma aluna assinala, antes de redigir o seu curriculum: "A observação de M. de Sousa é tão verdadeira que me parece que cada um de nós deveria escrever mais do que datas e nomes, que não significam grande coisa". Outra aluna, depois de algumas banalidades, escreve: "Seguindo o bom exemplo de M. de Sousa, acrescento alguns detalhes sobre a minha vida".

Mas, para além destas referências explícitas, a autobiografia de Sérgio fornece um "modelo do género" de duas outras maneiras.

Por um lado, a estrutura adoptada por Sérgio aparece sistematicamente. É verdade que ela não é muito original (pais, infância, primeiras aprendizagens, relação com o meio social, descoberta do mundo, análise da educação escolar, leituras formadoras, orientação, etc.), mas revela-se particularmente adequada ao espírito que reina no Instituto. Sérgio doseia a implicação e o desprendimento com uma mestria que não podia deixar de agradar a um meio intelectual simultaneamente "afectivo" e "cientista". Sérgio manifestou sempre respeito e admiração pelos professores do Instituto. Lembrou também juntamente com Paul Langevin, os nomes de Claparède e de Adolphe Ferrière que considerou apóstolo da educação nova no prefácio à edição portuguesa do Transformons l'école10. No entanto, paralelamente a este respeito pessoal, António Sérgio não deixa de manter uma certa distância face ao Instituto Jean-Jacques Rousseau e ao seu funcionamento: ele não era, um dos homens da «camarilla claparedensis»11. No entanto, Sérgio participou em várias excursões à montanha organizadas por Claparède, bem como nas actividades recreativas da Amicale.

Deve dizer-se, quanto a esta "Autobiografia" que António Nóvoa tem apresentado vários trabalhos no âmbito da História da Educação que se revelam como marcos fundamentais12.

Sérgio, para Joel Serrão, traça o esboço de "uma pessoalíssima experiência de auto-educação", pois viveu a infância com grande liberdade. Assinala-se na sua "Autobiografia" que Sérgio refere o respeito com que o seu pai encarava as manifestações religiosas nativas e uma sua profunda desconfiança em relação à Escola; Nóvoa, cita Sérgio que terá chegado a propor como meta que "a Escola não faça mal à criança". Para Nóvoa, esta forma de estar – desconfiança da escola – é comum aos autores da Escola Nova.

1. 1. Sérgio, a cultura, a política e a democracia.

António Sérgio, depois desta estadia na Suíça voltou para Portugal muito provavelmente porque queria desenvolver actividades várias ligadas à transformação do País, nomeadamente no campo educativo. Desde os anos 1913-14, Sérgio colaborou na Revista Águia órgão da Renascença Portuguesa, aonde escreveram os mais elevados expoentes da cultura portuguesa deste século, como Fernando Pessoa. É nesta revista que tem uma Polémica célebre com Teixeira de Pascoaes, sendo esse aspecto da sua personalidade intelectual continuado no futuro, como veremos.

Eram anos conturbados na Europa; preparou-se e deu-se a Primeira Guerra Mundial – que se prolongaria até 1918 – tendo-se o governo da Primeira República de Portugal perfilado a favor da aliança anti-germânica e austro-húngara; Portugal enviou grandes contingentes de homens que combateram nas trincheiras da Flandres, sofrendo pesadíssimas baixas. Os soldados portugueses foram das primeiras vítimas de novas categorias de armas como o gás mostarda, os bombardeamentos aéreos, a aplicação maciça da artilharia e das novas armas de infantaria como a metralhadora. Depois de anos sem solução à vista, este conflito durante o qual apareceu, em 1917, a União Soviética, seria resolvido em grande parte pela entrada na Guerra de milhões de homens dos Estados Unidos, que intervieram a favor da Inglaterra e França (com Portugal entre os vencedores). Como consequência desta Guerra fratricida verificouse que "em 1914 a Europa dominava ainda a economia mundial. Em 1919 os créditos europeus fora da Europa deram lugar a dívidas consideráveis. A maior parte dos investimentos europeus na América do Norte e na do Sul tinham desaparecido para financiar a guerra. (...) Por fim, a Europa atravessou uma crise intelectual grave – que será mostrada por novos movimentos culturais"13.

Esta Guerra, na qual pereceram 3 milhões de europeus jovens, seria determinante para o fim do papel de liderança global que a Europa desempenhara, no Mundo, até aí.

António Sérgio foi afectado na sua forma de pensar pela Guerra. A partir de então – como veremos quando se proceder à análise da sua obra – verá de forma crítica as aplicações que a Ciência e a Técnica podem ter, entre outros casos, na Guerra. Com o final desta, Portugal, tal como os outros Países Europeus, estava debilitado. Assim, em 1918, Sérgio fundou e dirigiu a revista Pela Grei, pretendendo intervir socialmente no domínio económico. Com o passar do tempo desenvolveu-se na sua maneira de estar o pendor polémico, discutindo com várias personalidades das ciências e cultura.

Em 1923, passa a integrar a Revista Seara Nova, aonde se encontram pessoas como Aquilino Ribeiro, Raúl

Brandão e Azeredo Perdigão, que viria a ser o dirigente da Fundação Calouste Gulbenkian e ao qual Salazar chamava «vermelhusco», tendo de dizer-se que a sua acção foi importantíssima no domínio da cultura em Portugal.

1. 2. António Sérgio como Ministro.

Em 1923, António Sérgio é Ministro da Instrução Pública no Governo de Álvaro de Castro, que pediu à Seara Nova a colaboração dos "seareiros" na formação de um Governo. A este propósito sabe-se que Faria de Vasconcelos o considerava incapaz para o exercício do cargo.

"O Sr. Sérgio apareceu à última hora Ministro da Instrução; a pessoa designada foi o Jaime [Cortesão] e não ele; se o Sr. Sérgio tivesse sido proposto eu teria votado contra, pois não seria desprimor, creio eu, para este Sr. , não lhe reconhecer as capacidades necessárias de organização e realização; o Sr. Sérgio é um homem de gabinete"14.

Contrariando esta opinião de Faria de Vasconcelos, Sérgio fundou nesta altura o Instituto Português do Cancro (do qual resultou o actual Instituto Português de Oncologia). No domínio Educativo era seu objectivo fundar uma "Junta Propulsora dos Estudos" que por meio de bolsas de estudo no estrangeiro preparasse um escol científico e pedagógico; difunde os métodos educativos de Maria Montessori e Decroly; cria o cinema educativo;cria o ensino especial para deficientes; podemos concluir que Sérgio fez bastante em pouco tempo, pois só foi Ministro no período compreendido entre 18 de Dezembro de 1923 e 28 de Fevereiro de 1924; as suas propostas sobre a Junta Propulsora dos Estudos não chegaram a ser discutidas no Parlamento. Talvez por estas situações, a este homem que tantas vez fez a apologia da Democracia, não repugnava a ideia da ditadura desde que transitória15.

Parece-me útil, aliás, transcrever a carta que deixou ao seu sucessor, reveladora do seu empenhamento16.

"Ex. mº Sr. Comandante Helder Ribeiro, ilustre Ministro da Instrução Pública: Começo por declarar que me é sobremaneira agradável fazer entrega da pasta da Instrução a um professor tão distinto como V. Ex. ª, e animado das intenções de que me deu conhecimento na pequena conversação que ontem tivemos. Parece-me conveniente depor em suas mãos um muito sucinto relatório do que fiz, do que tencionava fazer, e do estado actual dos negócios mais importantes. Como sabe V. Ex. ª, em matéria de instrução o que mais importa é a formação de professores e a existência de escolas modelares ou experimentais, com pessoal seleccionado, donde parta para outras o exemplo e o impulso reformador: por isso, foi meu principal objectivo preparar as coisas para poder enviar estudiosos portugueses às melhores escolas estrangeiras, e abrir no próximo ano lectivo quatro escolas experimentais: infantil, primária, secundária, de continuação. Decretou-se a fundação da Junta de Orientação dos Estudos; não cheguei a nomear os seus membros porque ainda não foram aprovadas nas Câmaras as minhas propostas relativas ao governo económico dela, e à percepção de receitas para o seu funcionamento. Logo declarei ser-me indiferente a maneira de obter essas receitas; importa ao pedagogista que elas existam, não a sua proveniência: e creio que o melhor serviço que poderiam prestar as oposições seria apontarem-nos as fontes que lhes parecem de recomendar. Criei o Instituto do Cancro (velha aspiração há muitos anos protelada) que está agora funcionando. Nomeei uma Comissão que me propusesse a melhor forma de se realizar entre nós a determinação e educação dos anormais de idade escolar, Comissão com cujo relatório concordei, e que decidi tornar permanente, para que se encarregasse de tal serviço. A Comissão Pedagógica, que também por mim foi nomeada, traz adiantados os seus trabalhos, apesar das poucas sessões que teve; determinou, já, o esquema da organização do ensino primário e secundário, os seus vínculos com o universitário e o especial, e escolheu também os professores que hão-de esquissar os novos programas, os quais deverão ser muito podados em relação aos actuais, e coordenados entre si, de maneira tal que constituam, enfim, a unidade da classe, o que entre nós nunca se deu. Não prossegui na correcção de vários defeitos administrativos, e não iniciei a simplificação e economia em certos serviços, porque cedo me convenci de que era da maior conveniência atacar esses problemas simultaneamente e em conjunto, esperando pelo relatório da Comissão de Economias. Ficou esta última composta do Secretário Geral do Ministério, o Dr. João de Barros, do Sr. Raúl Proença, e de um representante da Associação Comercial, o Sr. Moysés Amzalack. Pareceu-me bem que as chamadas forças vivas verificassem a seriedade com que o Estado quer pôr ordem, economia e moralidade nos seus serviços, sendo que assim ganharia o Estado a autoridade conveniente para lhes exigir sacrifícios, indispensáveis à regeneração do País. Está redigido, e sendo examinado cuidadosamente, um novo projecto de regulamentação dos serviços de instrução primária. Foi encarregado o cônsul em Londres de comprar à casa editora os direitos de tradução das Object Lessons, de Murché, cuja difusão entre os professores primários deveria dar um grande impulso à tão necessária modernização da técnica pedagógica entre nós. A criação do "Boletim Pedagógico" obedeceu à conveniência de fornecer aos professores informações de carácter prático, concretas, facilimamente utilizáveis, sobre novos processos de ensino de que lhes é difícil ter notícia, já pela actual carestia de todas as obras estrangeiras, já pelo obstáculo que a maioria encontra no ler o inglês e o alemão. O primeiro Boletim, publicado já, contém instruções para o emprego fácil dos modernos processos de ensinar a ler; era minha intenção que explicasse o segundo a organização e funcionamento das sociedades escolares florestais, e expusesse o terceiro algumas modernas directivas do ensino primário e secundário das ciências naturais. Encontrei em grande atraso o pagamento dos professores primários interinos, e não tive tempo de remover as dificuldades burocráticas que se opunham à solução rápida dessa triste situação. Tenho redigida uma proposta de lei sobre o assunto, que deponho nas mãos de V. Ex. ª. Criei um serviço especial de cinematógrafos circulantes, com fitas instrutivas, fazendo-se uso de um Pathé-Baby que me foi oferecido pelo Sr. Moquenco, para a Junta de Orientação dos Estudos. Trabalho na organização de uma sociedade particular de indivíduos beneméritos, para aquisição de aparelhos e fitas, e sua distribuição pelas escolas e universidades populares; interessa-se por este assunto o Sr. José de Mattos Braamcamp. (...) A Comissão do Intercâmbio Universitário com a França foi transformada em Comissão de Intercâmbio Intelectual, generalizando-se a sua alçada a todos os trabalhos intelectuais, e às relações com todos os povos. Estão iniciadas negociações para intercâmbio com a Alemanha, a Espanha e a Itália. Pelo que respeita à Alemanha, era minha ideia determinar a vinda de professores deste país, pela conta das reparações ou das cargas dos navios ex-alemães, inclusive para as aulas de carácter técnico de uma escola de continuação modelo, que pretendia criar no Porto. Está pendente um projecto de aumento de propinas que permitiria libertar a verba de 250 contos inscrita no orçamento para material escolar dos vários liceus, e metade da destinada às Universidades. Estas somas tencionava eu propor que se repartissem por serviços que carecem de recursos; entre as aplicações mais necessárias, figura uma anuidade para pagamento de juros e amortização de um empréstimo destinado a melhorar as instalações dos liceus do Porto, um reforço à dotação da Faculdade Técnica desta cidade, e subsídios a publicações científicas e a universidades populares. (...)Está pendente dos Deputados um projecto de lei que ali apresentou um dos nossos antecessores. Tendo sido chamado a interferir na redacção desse projecto, e a dar-lhe uma revisão sumária de carácter pedagógico e estilístico, quase que só prestei atenção à sua parte pedagógica, pois no que respeita à administrativa havia divergências fundamentais entre mim, por um lado, e pelo outro o Sr. Faria de Vasconcelos e o Ministro Sr. João Camoesas: a reunião de todos os órgãos no gabinete do Ministro, sob a presidência do respectivo chefe, julguei-a sempre insustentável. Parecendo-me boas as intenções daqueles senhores, e as genéricas directrizes da parte pedagógica do projecto, prestei-Ihes a minha colaboração, com a condição de se pôr em relevo o que eu classificava de susceptível de realização imediata, e reservando-me o discutir pormenores quando chegasse a oportunidade. Não pude impulsionar a discussão do projecto durante a minha estada no Ministério, porque o Sr. Dr. João Camoesas, membro e presidente de uma das Comissões parlamentares de instrução pública, declarou-me ser-lhe impossível o tratar de tais assuntos (porque estava então a fazer um livro) quando lhe propuz o continuarmos no sistema de colaboração que havíamos seguido enquanto S. Ex. ª era Ministro. Pelo que toca ao Dr. Faria de Vasconcelos, sofreu de desgostos e de doenças, que o impediram de trabalhar e de falar comigo, desde a minha entrada no Ministério. Por isso, repito, nada pude adiantar em tal assunto. Tal é, em resumo, o estado em que deixo as diferentes questões, que V. Ex. ª impulsionará ou modificará, conforme lhe ditar o seu bom critério. Reiterando os meus protestos de consideração, e agradecendo a V. Ex. ª a gentileza das amáveis palavras que me dirigiu, subscrevo-me

De V.Ex. a

M.º At.ºVenr.e Obgd.º

ANTÓNIO SÉRGIO P. S.

– Ao redigir apressadamente este relatório, esqueci-me de mencionar um assunto que já verbalmente tratara com S. Ex. ª: o das Escolas Primárias Superiores (1). Era minha ideia (com que S. Ex. ª concordou) que os trabalhos de gabinete e de inspecção para a reforma do Ensino Primário Superior estivessem ultimados antes de Julho, de maneira que durante as férias se preparasse tudo para a abertura das escolas reformadas no princípio do próximo ano lectivo.

S. Ex. ª, como disse, concordou comigo, e nesse sentido se está trabalhando actualmente. – A. S. (N. ° 34 – 9/IV/24)

(1) Criadas por decreto de 5 de Maio de 1919 (ministro Leonardo Coimbra) em substituição das antigas escolas normais de Lisboa, Porto e Coimbra e das escolas de habilitação ao magistério primário das restantes sedes de distrito, as Escolas Primárias Superiores foram providas de pessoal docente dotado de preparação discutível. Por decreto de 7 de Janeiro de 1924, o ministro António Sérgio ordenava a suspensão do seu funcionamento para a respectiva reorganização, que seria efectuada por decreto de 4 de Junho do mesmo ano pelo ministro Helder Ribeiro. Seriam extintas por decreto de 15 de Junho de 1926 pelo ministro Mendes dos Remédios, interrompendo-se, praticamente até 1942, a formação de professores, substituídos por regentes escolares.

Cabe neste passo um pequeno comentário de Sinopse sobre o trabalho teórico de Sérgio bem como sobre as suas intenções de acção. Assim, em relação às ideias pedagógicas de António Sérgio podemos considerar a importância que deu à Educação Infantil, expostos por Luísa Sérgio em O Método Montessori; procurou (noutro plano) ligar a Instrução Popular às actividades produtoras da região em que a escola se inseria, ideia defendida no seu texto Educação Profissional. Tentou explicar a História de Portugal segundo determinantes económico-sociais, como estabelecido nas Considerações histórico-pedagógicas. Enquanto Ministro da Instrução Pública, sublinhou a importância de bolsas de estudo no estrangeiro, assunto mencionado em O Problema da Cultura e o isolamento dos Povos Peninsulares.

Combateu o ensino puramente baseado na memória, como se vê nas Noções de Zoologia; queria treinar futuros cidadãos democratas pelo emprego de métodos da democracia política, tese base da Educação Cívica. Tentou desenvolver a organização do Ensino Público, defendendo a necessidade de desenvolver o "ensino de continuação", proposta surgida no seu texto O Ensino como factor de Ressurgimento Nacional. Quando António Sérgio prefacia a edição portuguesa do Transformemos a Escola, de Adolphe Ferrière, diz: "Dois grandes objectivos incumbem à escola do futuro: um deles, a anulação progressiva dos antagonismos sociais, e instauração da sociedade justa, pela Escola Única do Trabalho; outro, a realização da Liberdade na vida da gente adulta, pela educação das crianças no regime da Liberdade"; pretendia assegurar "a união do ensino com a actividade produtora".

Para além de uma actividade meramente situada no campo educativo, Sérgio, enquanto Ministro, fundou o

Instituto Português do Cancro e lutou para o desenvolvimento, em Portugal, de um forte movimento Cooperativista, que viria a perdurar, pelo tempo fora, nomeadamente ao nível das Cooperativas de Habitação.

1. 3. A oposição política ao salazarismo.

António Sérgio passou à oposição, com a implementação do regime saído do 28 de Maio de 1926. Exilou-se em França (durante 7 anos). Com uma carta de Paul Langevin17 que o apresentava ao representante da França na Sociedade das Nações, terá conseguido que um empréstimo na altura pretendido pelo governo português não fosse concedido. (Foram feitas exigências deliberadamente exageradas ao governo português).

Sérgio foi para Santiago de Compostela aonde leccionou (em 1933) regressando a Portugal com uma amnistia.

Sofrendo nova prisão por oito meses e sendo depois expulso, vai para Madrid. Com nova amnistia volta a Portugal dedicando-se ao ensino. Entretanto dá-se a Guerra Civil de Espanha. A Grande Depressão (começada em 1929 nos Estados Unidos) viria a repercutir-se sucessivamente pelos mais diversos países do mundo, como uma onda de choque arrasadora da economia. Nesta altura, Portugal era um País com baixos índices de desenvolvimento e de rendimento per capita, uma grande taxa de analfabetismo, e "a doutrina do Regime de Salazar era influenciada,em boa parte, por correntes de pensamento político (...) como o Fascismo de Mussolini"18.

Em Espanha, problemas de vária ordem também se verificaram, em parte devido à já citada Depressão de 1929. Em 1936 uma coligação vasta (englobando socialistas, anarquistas e comunistas) denominada Frente Popular conquistou o poder. A revolta das forças conservadoras – de carácter essencialmente militar – contou com o auxílio activo dos países fascistas – Itália e Alemanha – que enviaram para Espanha homens e material de guerra. Os países aonde se vivia num regime democrático – como a França – optaram por uma neutralidade que na prática favoreceu os franquistas. À excepção da União Soviética – que apoiou a República Espanhola, só pessoas – a título individual – fizeram o mesmo,constituindo as Brigadas Internacionais; aí combateram personagens famosas em todo o Mundo como Hemingway ou Eric Blair – conhecido como George Orwell. Mas não era possível à população espanhola nem aos "Brigadistas" enfrentarem um exército regular e com apoios praticamente sem fim, dos pontos de vista logísticos e materiais. As democracias europeias acobardam-se e deixam morrer a República Espanhola – que nascera de eleições. A República sucumbe em Espanha em 193919. Isto significa que com a vitória das forças franquistas em Espanha, o próprio salazarismo sai reforçado. Em 1939 começa a Segunda Guerra Mundial, a que Sérgio assiste, constatando-se no seu fim, em 1945, horrores como o Holocausto; a França fora derrotada pelo exército nazi; a Inglaterra, mais uma vez, necessitara da ajuda Norte-Americana e pode dizer-se que esta Guerra, que assinala a entrada da Humanidade na Era da Guerra Atómica, "consagrou diplomaticamente a inexistência da Europa" 20.

Neste conflito serão inaugurados novos conceitos, como o de «Blitzkrieg»21; "nenhuma outra guerra causou tantas vítimas, mortos ou dados como desaparecidos. O seu número é estimado entre 50 e 60 milhões, sendo uma forte proporção constituída por civis".

O regime salazarista, tal como o franquista, será, depois da Segunda Guerra Mundial – com a chamada "Guerra Fria" – admitido em várias instâncias oficiais internacionais –, o que o fortalece enormemente e torna muito difícil a luta de pessoas como Sérgio, tantas vezes inglória e até utópica. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, "em 1945 a União Soviética tinha medo. Sem dúvida que o Exército Vermelho era o primeiro do mundo pelo número e pela qualidade e, em matéria de armamentos tradicionais, o exército americano pouco contava. Mas os Estados Unidos acabavam de aplicar em Hiroxima e Nagasaki, no Japão, uma arma terrível, a bomba atómica, de que eram então os únicos detentores".

O nosso autor, na década de 50 (em 1953) presidiu à "Comissão Promotora do Voto" e, na opinião de Henrique de Barros e Fernando Ferreira da Costa "foi Sérgio quem, após com ele se ter relacionado com finalidades conspiratórias, lançou o nome de Humberto Delgado, recém mas veementemente convertido à Democracia, para candidato oposicionista apto a vencer as eleições presidenciais de 1958. (...) foi também ele, Sérgio, um dos que mais intensamente se empenhou na luta pela aceitação desta candidatura por todas as forças oposicionistas (...) sabe-se que A. Sérgio e Humberto Delgado contactaram muito no ano de 1958"22.

É possível que pretendesse com isto gerar 'fracturas' no interior do salazarismo, dado que Delgado era (no início) um "homem do regime"23, sendo mais tarde General "dissidente"? Parece ter sido assim. (Curiosamente – ou talvez não – o regime político de "Salazar/Caetano" – segundo a designação de Rómulo de Carvalho, sobreviveu apenas 5 anos à morte de A. Sérgio. ) No plano internacional é neste ano de 1953 que morre Stalin e "no Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em Fevereiro de 1956, Krutchev condenou o estalinismo"24.

António Sérgio permanece fiel a si mesmo e nestes anos, continua a colocar em dúvida todos os regimes políticos não baseados no sistema democrático, mas, não sendo nunca um aliado do Partido Comunista Português, mostra-se alheio às mudanças de que acabei de falar: quer dizer – este homem tão informado – não estava particularmente interessado em mudanças pontuais nos regimes políticos de outros países; pode dizer-se que o seu pensamento e a sua acção, por escolha própria, visam a realidade portuguesa.

Falamos de um homem de pensamento e acção. Como todos os grandes homens, tinha dúvidas.

"(...) não foi-como tem expressado Victor Sá -, não quis ser um historiador (...); Sérgio foi um satírico do academismo, do dogmatismo e do especialismo infecundo"25;26. Terá sido até "(...) uma voz da má consciência do colonialismo português"27.

Não estou de acordo com este ponto de vista, pois Sérgio afirma: "Somos um país colonial e creio que devemos continuar a sê-lo; fomos um país de navegantes, de inovadores, de cosmopolitas, e creio que devemos continuar a sê-lo; simplesmente, se não estou em erro, para podermos sê-lo de maneira plena releva primeiro organizar a sério os nossos alicerces metropolitanos (...). Digamos que Portugal é uma casa-mãe de sucursais espalhadas pelo mundo inteiro. Posto isto, qual é a ideia que eu quis propor? A de que a casa-mãe deverá ser sólida, e um centro de trabalho e de criação pujante, para que resulte proveitoso e assegurado o organismo formado pelas sucursais"28. Não se nota aqui qualquer traço de «má – consciência».

Neste aspecto, como vemos, estava Sérgio distante da maior parte dos opositores de Salazar. Não sei o que pensou dos movimentos independentistas das colónias portuguesas, mas parece altamente provável que discordasse da sua acção, pelo que acabo de expor e também porque tais movimentos – P. A. I. G. C. na Guiné-Bissau e Cabo Verde, M. P. L. A. em Angola e FRELIMO29 em Moçambique -eram politicamente marxistas, não atendendo à realidade sócio-cultural africana, o que viria a provocar graves problemas depois da independência dessas colónias portuguesas30. Sérgio, o homem que escrevera sobre o seu país O reino Cadaveroso ou o problema da cultura em Portugal, o homem que tanto lutou, terá desacreditado? No jornal República de 26 de Novembro de 1958, lê-se: "Nota oficiosa: Foi-nos enviada a seguinte Nota oficiosa: Foram detidos para averiguações os Srs. Jaime Cortesão, António Sérgio de Sousa, Drs. Mário de Azevedo Gomes e Francisco Vieira de Almeida. As prisões tiveram lugar em virtude de as suas assinaturas figurarem em manifestos subversivos que têm sido distribuídos clandestinamente. Em alguns desses manifestos figura também a assinatura do Sr. General Humberto Delgado. Por este motivo e também por muitos outros actos do conhecimento geral foi-lhe mandado instaurar processo no Subsecretariado de Estado da Aeronáutica".

Como terá reagido este homem, depois das eleições de 1958, com a evolução política do país, com o assassínio, ocorrido mais tarde, de Humberto Delgado e da sua secretária, de nacionalidade brasileira, Arajarir de Campos, em Espanha, assassínio esse cometido com a inevitável cumplicidade das autoridades franquistas, pela polícia política portuguesa, a PIDE ?

Sérgio, que acreditava na humanidade31, remeteu-se a um recolhimento do público nos últimos anos de vida32. Note-se que o optimismo antropológico sergiano tinha um carácter de crença.

Constatara já – sem dúvida – que "no meio dessas maravilhas da técnica científica que são o bombardeamento aéreo,

os gazes asfixiantes, os obuses monstros (...) os métodos científicos não são por isso, os mais humanos" 33.

Constituído em ideólogo de um vago oposicionismo ao regime caído em 25 de Abril de 1974, o que lhe aconteceria se vivesse hoje? Talvez não fosse compreendido, ou fosse esquecido. Aliás, a sua habitação, executada segundo a visão do importante arquitecto português Raúl Lino, chegou a um "estado de ruína generalizado, com a deterioração dos elementos da estrutura, de paredes e de componentes do edifício, foi o que se verificou quando se procedeu ao levantamento da casa, em 1982, com vista à elaboração do projecto de recuperação (...) na diferente situação política e social que se segue ao 25 de Abril, centram-se nesta casa dois factores dinâmicos mas contraditórios: a ocupação e utilização por ex-residentes das colónias portuguesas, o movimento de opinião pública em torno da figura e da obra de António Sérgio de par e passo com o forte desenvolvimento do cooperativismo. Ao primeiro factor, decorrente das circunstâncias e da escassez endémica do parque habitacional, corresponde a degradação acelerada da casa, com incêndios, inundações, desmandos e mau uso, com caixilharias, portadas de vãos e rodapés sacrificados ao fogo da cozinha e às lareiras improvisadas no inverno pelas numerosas famílias que a co habitam"34.

A casa foi reaberta, depois de reconstruida, por Mário Soares, já como Presidente da República, em Novembro de 1988. Diga-se que Raúl Lino é considerado dos mais importantes arquitectos portugueses do século XX. Tentou criar a "casa portuguesa". Teve conhecidos clientes "o pianista Rey Colaço e Batalha Reis que lhe confiaram moradias perto de Cascais (...) Ao mesmo tempo (1904), José Relvas dava-lhe a fazer o solar de Alpiarça. Amigo desta geração de intelectuais, de Oliveira Ramos e de Lopes Vieira (e também de António Sérgio), Raúl Lino compunha as suas ideias de acordo com um sentimento nacional que o levava às fontes de uma tradição plástica «genuinamente portuguesa»"35.

Raúl Lino (1879-1974) deixaria apreciável obra, da qual José Augusto França destaca a casa António Sérgio.

1. 4. O Cooperativismo Integral.

É Sérgio quem utiliza esta expressão – cooperativismo integral; sucede que depois do que disse sobre a casa de Sérgio parece incrível que o Cooperativismo, nomeadamente o da habitação tenha sido, de entre todos os seus projectos, o que mais força ganhou, embora Sérgio representasse, como homem de ideias, muito mais do que isso. Talvez por esse motivo, nos seus últimos dez anos, porventura descrente da própria "ascensão da humanidade"36 , nada disse ou fizesse de relevo. Talvez Sérgio duvidasse da possibilidade de modificar o País.

Como nota J. K. Galbraith, "A palavra revolução pronuncia-se com demasiada facilidade; as revoluções estão sempre ameaçadas. Se soubéssemos como é difícil fazer uma, usaríamos menos a palavra e os conservadores preocupar-se-iam menos com esse perigo. Estão hoje muito, muito mais seguros do que imaginam"37.

No seu funeral (noticiado por vários jornais de âmbito nacional, apesar da Censura), em 25/1/6938 , "(...) já no cemitério, à hora de enterrar, ainda a polícia carregou sobre a multidão que o acompanhava naquela tarde fria e chuvosa"39.

Refira-se que estiveram aí presentes inúmeras pessoas representantes dos mais diversos quadrantes da vida económica, social e política de Portugal40. Tem sido triste o destino de muitos homens que procuraram esse outro mistério, a que por convenção chamamos verdade41. Cada homem acaba por ter uma verdade, a sua verdade. Giordano Bruno foi queimado pela verdade, mas é necessário ser inflexível, para se chegar a esse ponto; ora, Sérgio não pretendeu morrer pela verdade, não por cobardia, mas antes, por lucidez. É verdade (como vimos) que depois de 1959 se recolheu do público, mas segundo alguns que com ele continuaram a privar, manteve as suas capacidades mentais e críticas42. Durante a sua vida teve períodos depressivos, sendo inclusivamente tratado; mas nada disso o diminui, e é certo que manteve, durante a vida, grande coerência, inclusivamente no que respeita à sua crença na possibilidade de ascensão da Humanidade. A vida e a obra de Sérgio estão ligadas de forma profunda. Não pretendeu construir um «Sistema» filosófico; daí o facto de escrever «Ensaios». No entanto, manteve uma grande constância lógica no pensamento e acção, o que foi designado por "Idealismo Crítico", mesmo por adversários ideológicos como Vasco de Magalhães-Vilhena. Vimos as razões que assistiam a Sérgio para se considerar Idealista; é importante notar que o seu Idealismo é honesto, sentido, não é «a-crítico». Seria isto de que constava o Cooperativismo Integral ? Penso que sim: uma luta pela interligação entre melhoria do estado material e económico do povo português, que Sérgio entendia não se poder fazer sem a melhoria do estado global da Educação; no entanto voltamos ao ponto focado por Herminio Barreiro Rodríguez – o da transformação política; mas é também verdade que Sérgio lutou por essa transformação toda a vida.

"Aos 32 anos de idade, no epicentro da Educação Nova, António Sérgio decide falar da sua "infância desescolarizada" e dos autores que mais o influenciaram, do seu desprendimento pela política e da sua crença no valor dos factores educativos (na família, na comunidade de trabalho, na escola). A sua escrita é legitimada por uma já significativa experiência social e profissional, bem como pela publicação de alguns trabalhos. O estilo de António Sérgio está bem presente nesta autobiografia. A vários títulos... A sua estatura impõe-se. Este homem não é um homem vulgar".

Daniel Hameline e António Nóvoa citam igualmente Rui Grácio43 que afirma muito justamente que "considerada no seu conjunto e no seu objectivo derradeiro, é de pedagogo a obra de António Sérgio. "E ainda: "Outros autores corroboram esta ideia: Vasco de Magalhães-Vilhena refere que "à maneira dos gregos, a filosofia de Sérgio é essencialmente uma pedagogia social, ou, mais propriamente uma paideia"; J. Oliveira Branco sublinha que "a pedagogia sergiana vai assim muito além do campo específico do ensino".

O próprio Sérgio define-se sistematicamente como pedagogista, no sentido abrangente do termo. Na entrevista a O Diabo, em 1940, afirmara: "não me considero um literato ou um escritor, mas um pedagogista ou um pregador que escreve". E em 1958, quando Igrejas Caeiro lhe pergunta se gosta de ser considerado como professor, escritor, economista ou sociólogo, a sua resposta não se faz esperar: "Talvez filósofo, sociólogo e reformador social... e pedagogista. ". É por isso que Joel Serrão, ao escrever o seu António Sérgio, o Educador aborda não tanto o aspecto pedagógico da obra sergiana, mas sobretudo a sua missão de educador, no sentido etimológico da palavra (condutor, "maítre à penser)"44.

1. 5. Uma vida de luta.

A feição heróica da vida de Sérgio é referida por Duque Vieira, de forma tocante: " Na última doença da mulher do pensador, Reis Machado, que morria pouco depois, falou-me com enfado na pessoa de Sérgio, com as mãos da mulher nas suas, curvado sobre ela, não prestando atenção a mais nada. Eu pensava de outra forma, bem diferente do que me dizia o meu amigo. Eram as recordações de uma vida que devia ser feliz e foi muitas vezes tormentosa. O afastamento decisivo da marinha, o exílio do Brasil, outros exílios, a constante luta, a prisão e a caminhada dela para lá, levando o que ele precisava, a incerteza de sempre. Não teve o dom da maternidade e pertencia-lhe uma vida tranquila e feliz. Seu marido tudo isto vê, e era isso mesmo que lhe passava pelo espírito torturado, enquanto se debruçava carinhosamente sobre sua mulher moribunda. "– Refira-se que Sérgio terá dito a Duque Vieira que não tivera filhos para melhor se dedicar aos seus ideais45. Sabemos hoje que Luísa Estefânia foi uma grande paixão da vida de Sérgio, paixão de juventude. Em "Cartas inéditas de António Sérgio"46, Matilde Pessoa de Figueiredo Sousa Franco, sobrinha-neta de António Sérgio, diz ter encontrado, em 1973, "por um feliz acaso" algumas cartas com poemas e manifestações apaixonadas de António Sérgio pela sua esposa, Luísa Estefânia Gerschey da Silva.

Se ele, como diz Duque Vieira, sacrificou grande parte da sua felicidade pessoal à realização dos seus ideais, isso é mais um aspecto que prova que a Honra, era um grande valor, para muitos homens, naqueles tempos. Com efeito, não foram raros os exemplos deste género – de luta apaixonada e constante por um ideal – algo que se terá perdido com o tempo.

Situação Social e Educativa em Portugal, os fins do Século XX a 1969

2. 1. Introdução

"No Portugal Contemporâneo, jamais escassearam os doutrinadores capazes das definições das metas a alcançar, no tocante à educação exigida e exigível por uma sociedade programaticamente liberta, ou, melhor, a caminho da sua transformação, tal como esta era postulada na tríade burguesa da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nenhum dos grandes vultos da cultura portuguesa deixou, aí, de contribuir ou com reflexões de escopo educativo tantas vezes bem pertinentes (Garrett, Herculano, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, António Sérgio, entre outros), ou com iniciativas de teor especificamente escolar (Castilho, João de Deus, por exemplo), ou ainda, pautando as suas obras literárias por propósitos de pedagogia social, como é o caso de grande parte da obra romanesca de Eça de Queiroz e de quase todos aqueles que lhe seguiram no encalço"47.

Podemos então perguntar-nos qual a razão de sempre ter havido uma tão grande distância entre o que se devia fazer a nível educativo e o que de facto era realizado. Segundo Joel Serrão o que aconteceu foi que a sociedade portuguesa vivia e reagia segundo modelos ancestrais, que só muito ao de leve foram tocadas pelas aspirações ideológicas dos mais significativos mentores culturais. "Era como se se pensasse uma coisa e só se pudesse fazer outra, porque se mostrava inviável afeiçoar as realidades sócio-económicas, mentais e culturais aos desígnios programatico-ideológicos, impostos de fora para dentro, de alto para baixo, sem recurso às necessárias mediações. Era como se a ideologia, culturalmente importada, fosse rejeitada pelas feições antropológicas e etnográficas predominantes em largos estratos da sociedade global. Assim, que um António Sérgio, por excelência pedagogista da emancipação individual mediante a assunção do Bem, implícito na prática de uma dada racionalidade, se tenha encontrado em conflito com as realidades educativas quer da 1ª República (1910-1926), quer do Estado Novo (19331974)"48.

2. 2. De 1870 à implantação da República (1910)

Todo o século XIX em Portugal é palco de avanços e recuos no campo do ensino em todos os seus níveis. Assim, sucedem-se as reformas que raramente passam dos textos legislativos, a literatura pedagógica e as declarações de intenções.

"O desenvolvimento do capitalismo português, na sua unidade fundamental e na diversidade das suas orientações, não determinou entre nós um alto desenvolvimento das forças produtivas. O sistema escolar português não ultrapassou, por isso mesmo, os limites dos estreitos interesses económicos e culturais da burguesia. Nunca se alcançou a democratização real da Educação e da Instrução"49.

Em 1870 foi criado o Ministério da Instrução Pública. Até aí, o Ministério do Reino tratava da Administração, Beneficência, Polícia, Política Geral e Saúde. Fontes

Pereira de Melo fora um bom governante e autonomizara o Ministério das Obras Públicas – o que mais o sensibilizava.

Na década de 70, dois poetas, António Feliciano de Castilho e João de Deus, foram importantes como pedagogos. João de Deus publica, em 1876, a Cartilha Maternal, graças à qual muitos milhares de portugueses aprenderiam a ler. Os partidários de Fröbel criticaram a Cartilha, que chegou a ser objecto da atenção crítica do governo, mas essa obra era, sobretudo para o seu tempo, excelente.

Desde a década de 70 do séc. XIX, começa a publicar-se o Anuário Estatístico de Portugal. "Em 1878, a população total é estimada em 4550699, dizendo-se que os analfabetos totais correspondiam a 82,4%. O Século XIX terminou em Portugal com 24 Liceus frequentados por 2848 alunos, dos quais 59 eram raparigas"50.

No final do Séc. XIX e início deste século, Portugal era um país rural. A população não chegava aos 5,5

milhões de habitantes, dos quais cerca de 4,5 milhões viviam no campo. A população urbana estava principalmente concentrada nas 2 maiores cidades (Lisboa e Porto). País rural, Portugal era também analfabeto – 3/4 dos seus habitantes não sabiam ler nem escrever ; a influência dos caciques e das "forças vivas" locais sobre a grande massa da população era enorme; os padres e os professores da instrução primária eram, em muitas regiões, os únicos agentes culturais, o que lhes concedia um estatuto social muito importante.

Se durante o Século XIX os clérigos seculares tinham perdido muita da sua influência, o clero regular tinha conseguido reorganizar-se. Em 1901, uma lei modifica essa situação, autorizando o regresso dos religiosos desde que a sua acção não ultrapasse o quadro "educativo ou caritativo"51. No início deste século, mais de 50 congregações religiosas estavam instaladas em Portugal. Tudo isto explica a importância do clero regular, principalmente dos Jesuítas, nos anos que antecedem a República.

As classes sociais que se identificavam com o projecto republicano eram as classes médias urbanas. Segundo Joel Serrão, a República era a esperança de um povo humilde de cidades humildes. O texto legislativo que marca os 10 últimos anos da Monarquia, é a reforma de 24/12/1901 de Hintze Ribeiro. Este documento é importante por dois motivos:

  • 1. Porque a sua concepção se integra perfeitamente no espírito pedagógico do Século XX;

  • 2. Porque é precedido de um relatório em que cada medida da reforma é confrontada e justificada, com um estudo comparativo da situação noutros países. Hintze Ribeiro escreve no relatório preliminar: "a abertura de uma escola não faz nem nunca fará fechar uma prisão; assim como o bem-estar material não está intimamente ligado, nem é fatalmente proporcional ao grau de instrução do povo"52. Pelo contrário, para os republicanos a instrução é sempre a causa mais directa e a mais imediata da prosperidade de um país.

O corpo da reforma de 1901 é composto por seis pontos:

1 - a obrigação de frequentar a escola;

2 - a gratuidade do ensino;

3 - a centralização do sistema escolar;

4 - a institucionalização do ensino normal;

5 - a criação de um corpo permanente de inspectores;

6 -a liberdade de ensino. Esta reforma estabelece novos salários para os professores primários, mas também medidas repressivas (proibição de reuniões de professores sem fins pedagógicos e possibilidade de suspensão de professores que ensinem doutrinas contrárias à religião do Estado).

Apesar de tudo, a taxa de analfabetismo permanecia muito elevada e a inexistência de um corpo de professores homogéneo e com formação adequada era evidente. Dois movimentos, com origens distintas, vão reagir contra essa situação. Um deles, que agrupava a elite pedagógica, procurava reeditar o projecto de um Congresso Pedagógico, a fim de descrever o estado da instrução em Portugal e de encontrar os meios de aumentar o seu desenvolvimento; o outro, dirigido por professores primários, tem como objectivo imediato a melhoria do seu estatuto sócio-económico. Os dirigentes republicanos, tendo compreendido a importância do papel que os professores primários podiam desempenhar no país, apoiaram-nos, prometendo-lhes uma melhoria de condições com o regime republicano. Sob a influência dos republicanos, desenvolve-se outro movimento associativo favorável à instrução primária e popular, que terá uma grande importância na História da Educação em Portugal até ao Estado Novo – 1926. Assim, os professores do ensino primário vão aderir ao movimento republicano muito mais por pensarem que a República os compensará materialmente, do que por opção política ou ideológica.

Em 1908 o ministro João Franco tenta-se por nova ditadura. Faz assinar ao rei D. Carlos I um decreto para prender e deportar oposicionistas. O rei é assassinado em 1 de Fevereiro de 190853, agonizando a Monarquia, com novo rei, D. Manuel II, até 5 de Outubro de 1910.

A República foi um período extremamente complexo da vida portuguesa, terminando em 1926. Os republicanos pretendiam reformar a mentalidade portuguesa e muitos foram os que procuraram reformar a educação. A República é proclamada em 5/10/1910. Ideologicamente, inscrevia-se numa linha de continuidade relativamente ao liberalismo. Impregnada de uma tradição anti-clerical, a Primeira República tinha a sua base social nas classes médias urbanas; no entanto, foi um período de grande instabilidade política, fundamentalmente devida à impossibilidade de assegurar um desenvolvimento sócio-económico efectivo, o que impediu o cumprimento das promessas sociais e educacionais. A problemática educacional esteve no centro do pensamento e da prática dos dirigentes republicanos. Pensavam que a causa principal da decadência de Portugal foi a política obscurantista da Monarquia e a tomada da educação de crianças e jovens pelos Jesuítas. As primeiras medidas republicanas visavam abolir o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias e normais e interditar a actividade das congregações religiosas, sobretudo dos Jesuítas. Estes são de novo expulsos de Portugal, repondo-se a lei de Pombal de 1759, apesar da influência dos mesmos ter já diminuído muito em relação ao tempo de Pombal. Serão acusados de conspirarem contra o regime republicano.

O primeiro Decreto Educativo da República diz respeito ao serviço militar, considerando-se que "o serviço militar obrigatório é uma aspiração legítima de todo o regime democrático"54.

Todos os alunos desde os 7 anos eram obrigados aos exercícios militares.

Entretanto, os problemas tradicionais no campo educativo persistiam: analfabetismo, insuficiente número de escolas primárias, deficiente preparação pedagógica e científica dos professores, como sempre, vítimas de maus salários.

Durante a Primeira República, foi produzida uma enorme quantidade de legislação sobre o ensino, mas o documento fundamental foi a reforma de 191155. Foi obra de João de Barros e João de Deus Ramos (filho de João de Deus), deixando como realização mais significativa os Jardins-Escola João de Deus, embora particulares.

Apesar das suas intenções revolucionárias e da negação dos princípios educativos monárquicos, esta reforma representa o seguimento natural da de 1901, nomeadamente no que diz respeito aos programas escolares, ao sistema de nomeação, às diferentes categorias de professores ou ainda ao regime de inspecção do ensino; por outro lado, determina a neutralidade da escola face à religião – "nem por Deus nem contra Deus " –, a coeducação, o ensino primário superior e a descentralização do sistema escolar.

Esta reforma criou 3 graus no Ensino Primário:

1 - Elementar (3 anos);

2 - Complementar (2 anos);

3 - Superior (3 anos).

Em 1919, o grau complementar foi suprimido. O grau superior foi apoiado por grande quantidade de pedagogos que viam nesse nível um esforço para a realização da escola única, da democratização do ensino, da extensão escolar e um instrumento de nivelamento da cultura. Estas escolas, no entanto, funcionaram apenas durante 6 anos, de 1919-20 a 1924-25, o que demonstra mais uma vez a distância entre as intenções e os factos, traço que desde o séc. XVIII, caracterizou as reformas do ensino em Portugal.

Ao pugnar pela descentralização do ensino reedita-se o projecto de Rodrigues Sampaio (1878). A ditadura de Sidónio Paes decreta, em 12/7/1918, que os serviços de instrução primária serão de novo geridos pelo Estado, mas, em 10/5/1919, a descentralização volta à ordem do dia. Criam-se as Juntas Escolares que exercerão a sua actividade de 1919 a 1925.

A 19/5/1925 publica-se um decreto que retira às Juntas a maior parte das suas competências.

O balanço da reforma de 1911 é desanimador: os dois projectos mais audaciosos, o ensino primário superior e a descentralização, não conseguiram estabelecer-se efectivamente. Pela lei de 29 de Março de 1911, a preparação do professorado primário seria feita em escolas normais primárias; estas só começaram a funcionar 7 anos depois da promulgação da lei e em 1922, calculou-se em 3000 o número de professores primários desempregados, pois não foi alargada a rede escolar existente, facto profundamente lamentável. Tal apesar de a República ter visado mudar o ensino primário. O outro grau de ensino visado pelos republicanos foi o superior. O maior êxito da República foi a criação, em 22 de Março de 1911, das Universidades de Lisboa e do Porto. Em 1919, Leonardo Coimbra cria no Porto a Faculdade de Letras, que viria a ser encerrada durante longos anos por Salazar. Em 1923 é elaborado um "Projecto de Reforma da Educação", no seguimento de um inquérito nacional ao corpo de professores.

Esse projecto não chegou a ser discutido no Parlamento. Queria-se fazer face ao estado deplorável do sistema escolar português, procurando torná-lo mais eficaz a nível social. Tal projecto mostrava-se de "acordo com os princípios da pedagogia moderna" e do movimento pedagógico internacional.

Para muitos estudiosos da História da Educação em Portugal, entre os quais António Nóvoa, o autor desse projecto foi Faria de Vasconcelos56. As 24 Bases da Reforma caracterizam-se pela tentativa de construir um conjunto coerente do jardim infantil à universidade, facto que nunca antes havia acontecido.

O projecto previa também a criação de Faculdades de Ciências da Educação, estabelecimentos em que os professores dos diferentes graus seriam formados.

O Ministério da Instrução Pública teve 40 ministros (fora os interinos) em 13 anos, o que dá a média de um ministro por quatro meses. De todos os ministros da Primeira República salienta-se António Sérgio, ministro por dois meses e dez dias, no governo de Álvaro de Castro (18 de Dezembro de 1923 a 28 de Fevereiro de 1924). No final da Primeira República, menos de um terço das crianças frequentava a escola primária; dessas, apenas 4% ingressavam no Liceu. A melhor realização da Primeira República foi, no fundo, a criação das Universidades de Lisboa e do Porto.

À margem do sistema de ensino do Estado, a Primeira República constituiu um importante campo de inovação cultural e educativo. O período republicano viu nascer associações e grupos diversos, portadores de projectos culturais em que trabalharam intelectuais (principalmente pedagogos do Movimento da Escola Nova) e correntes sindicalistas revolucionárias e anarco-sindicalistas do movimento operário, o que, permite afirmar que o melhor da educação republicana se situou fora da escola. Em 28/5/1926, em Braga, uma primeira guarnição militar revolta-se e o General Óscar Carmona impõe,a 7/7/1926, uma ditadura que duraria quase meio século. A era de experimentação social e de inovação pedagógica foi substituída por um período dominado por ideias conservadoras e tradicionalistas. A partir de 1928, o regime reforçou-se com a nomeação de António de Oliveira Salazar para ministro das finanças.

Salazar instalará o "Estado Novo", o qual tem como base social a burguesia, ligada ao capital, à Banca e aos proprietários agrícolas. Logo no seu início, os partidários da ditadura consideravam que não era necessário combater o analfabetismo: "A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa, reside nos seus 75% de analfabetos"57.

Também, em entrevista de 1933, Salazar considerava como não urgente ensinar o povo a ler. Para ele, "a Ditadura é um fenómeno [que tenta] colocar o poder em situação de prestígio e de força contra as arremetidas da desordem, e em condições de trabalhar e agir pela nação"58 – donde se infere o pequeno papel reservado à Educação.

Logo em 1926 se separam os sexos nas escolas. O ensino primário complementar é extinto e considerado gravoso para o orçamento do Estado. A 15 de Junho de 1926, tinham sido extintas as Escolas Normais Superiores. Os professores primários, que na Primeira República dispunham de instituições de classe com órgãos de imprensa como a "União do Professorado Primário Oficial", viram essa instituição acusada de comunista pelo ministro da Instrução Pública, Alfredo de Magalhães, que a extingue em 27/1/1928 e manda prender os professores que a dirigem. Em 1933 é proibida a discussão pública, oral ou por escrito, de assuntos de serviço, prevendo-se suspensão do exercício e vencimento por 30 dias, e demissão no caso de reincidência. Já em 1931 por lei de 30 de Novembro, são criados os "postos de ensino" dirigidos por "regentes escolares", sem qualquer habilitação específica, mas apenas a comprovação de possuírem "a necessária idoneidade moral e intelectual", para tal efeito. A partir de 1932 (Decreto de 19 de Março) o Diário do Governo apresenta 113 frases (de Salazar a Mussolini) como por exemplo: "Obedece e saberás mandar!"; "Se tu soubesses o que custa mandar, gostarias mais de obedecer toda a vida!".

Estas frases seriam expostas nas escolas, nomeadamente nas paredes dos Liceus. Na sua larga maioria, os professores do ensino secundário não eram efectivos, não ganhavam nas férias faziam estágio a expensas próprias e tinham de vencer um dificílimo "Exame de Estado"59. O ministro Cordeiro Ramos multa de 1 e 5 escudos os alunos do ensino secundário admoestados ou repreendidos; de 20 a 80 escudos aos expulsos da sala de aula e de 100 a 300 escudos os alunos suspensos. Os anos 1932-33 constituem o período decisivo de consolidação do regime salazarista: a Constituição de 1933, a publicação do Estatuto Nacional do Trabalho e uma série de medidas legislativas e sociais, assim como a adopção definitiva de uma atitude repressiva, traçam os contornos do Estado Novo.

A Escola deixa de ser considerada um instrumento de transmissão de conhecimentos ("instrução"), para passar a ser encarada como agência de formação da consciência ("educação");com efeito o Estado Novo utilizará a Escola e a Igreja como aparelhos ideológicos do Estado, no sentido Althusseriano. A "escola nacionalista" de Salazar é, antes de tudo, uma empresa de endoutrinamento, relegando para um plano secundário os ideais pedagógicos do liberalismo monárquico e do republicanismo.

De um ponto de vista educativo, o Estado Novo constitui uma ruptura muito mais profunda do que a implantação da República. Baseada no 'slogan' "Deus-Pátria-Família", a trilogia da Educação Nacional, a escola do Estado Novo considera como perigosa a simples aquisição de instrumentos culturais. Para além disso, o Estado Novo pôs em causa a secularização do ensino, na medida em que as referências aos ideais católicos devem constituir o centro da acção pedagógica: a obrigação de colocar um crucifixo, ao lado das imagens do Presidente da República e do Presidente do Conselho de Ministros nas paredes de todas as salas de aula, não é mais do que a efectivação simbólica de um pacto entre o Estado e a Igreja. É importante sublinhar que a ruptura provocada, teve sobretudo consequências a nível qualitativo. Em termos quantitativos a transição da República para o Estado Novo é menos evidente, isto é, os indicadores clássicos (taxas de analfabetismo, taxas de escolarização, desenvolvimento da rede escolar, número de professores, etc.) quase não acusam a mutação sócio-política operada pela contra-revolução de 1926.

Sublinhem-se as "tendências ruralistas" de toda a estratégia educativa do regime. A valorização da vida no campo em detrimento da vida urbana é uma das componentes essenciais dessa política. Mais uma vez a reacção à República – o regime das cidades – é evidente. Salazar é, ele próprio,um «filho do campo»: o conservadorismo rural e

o pensamento católico tradicional são os dois eixos principais da sua ideologia; esta é também profundamente nacionalista, como o demonstram as tentativas para cortar os laços que existiam, nos finais dos anos 20, entre os Pedagogos portugueses e os movimentos internacionais.

Durante as três primeiras décadas do séc. XX, nem a escola enquanto instituição, nem a profissão de professor viram os seus papeis alterados relativamente ao séc. XIX, o que demonstra que o sistema de ensino do Estado possuía já uma apreciável estabilidade.

Durante o século XIX, os professores consagraram-se à propaganda das virtudes da escola. Tinham passado a funcionários públicos com Pombal; o mito da escola, da igualdade de oportunidades, surge no início do séc. XX, sendo os professores "humildes funcionários públicos". Adolfo Lima, em 1915, defende que a educação deve ser confiada à "corporação educativa".

Verificaram-se duas reivindicações: melhoria do nível económico e a valorização sócio-profissional dos professores primários. Como refere António Nóvoa, a construção da profissão de educador está em interacção com o aumento das necessidades do sistema educativo.

O Estado Novo contrariará todas as aspirações dos docentes a uma autonomia.

Por outro lado, o número de professores primários não parára de aumentar desde 1851; triplicara entre 1900 e 1940; paralelamente a isso, o professorado atravessou uma feminização crescente. Entre 1900 e 1940, as mulheres passaram, no corpo de professores de 37% a 76%; tal traduz a degradação do seu status porque indicia baixa remuneração, não encontrando paralelo nos outros graus de ensino. No início do séc. XX os professores primários são recrutados entre as classes sociais desfavorecidas. Para Salazar, ser professor é encarado como algo que tem a ver com "vocação" e "sacerdócio".

Nóvoa considera que a República foi o período de glória dos professores primários, sendo eles solicitados pela sociedade a intervir como mediadores ou reguladores de conflitos. Com o Estado Novo o docente do ensino primário é obrigado, sem embargo, a abandonar todas estas actividades, devendo remeter-se à sua sala, seu único território de acção, o que aliás concorda com o que tem expressado António Nóvoa que pensa que os professores, eliminados os inovadores, têm como traços mais característicos do seu comportamento a "aceitação passiva da ordem instituída e das ideias sociais e políticas dominantes". No centro disto está a definição dos professores, pelo Poder, como "missionários"; sempre foram mal pagos em Portugal; a única excepção são os anos que decorrem entre o fim da Primeira Guerra Mundial (1918) e a implantação do Estado Novo (1926). Podemos assim verificar, que os docentes terão sido bem pagos durante um período de 8 anos, sendo regra geral maltratados, pelo Poder, o que se deu mesmo no caso de ministros republicanos como António Sérgio.

A classe docente é vigiada pelos inspectores, também eles antigos professores primários. O corpo de inspectores é definitivamente instituido em 1901. Por leis de 1901 e 1911, são-lhes concedidos salários muito superiores aos dos professores. Contrariando as tendências dominantes durante a 1ª República, que queriam dar valor aos professores primários, em 1930, as escolas do magistério substituem as escolas normais. Significa isto um abaixamento do grau de ensino que será progressivo. Em 19/7/1930, o Decreto Lei que transforma as escolas normais superiores em escolas do magistério primário estará na base de uma política absurda. A formação dos professores primários passa de 4 anos em 1928, para 2 em 1930, para 3 em 1932, chegando-se assim, em 1936, a uma situação de total confusão o que leva o regime ao encerramento das escolas do magistério primário, reabrindo em 1942 com uma organização de acordo com os objectivos ideológicos da ditadura.

Com o salazarismo, o movimento associativo professoral, entra em período de refluxo. Em 1933 decreta-se a instituição dos "Sindicatos Nacionais", sob a tutela do Estado, o que põe definitivamente fim às esperanças de autonomia por parte dos professores primários. Na Primeira República houve contactos directos com movimentos pedagógicos internacionais. As ideias da Educação Nova tiveram grande divulgação em Portugal. Porém, tratou-se de um fenómeno urbano, sendo os seus homens de uma forma geral teóricos e não práticos, afastados da realidade quotidiana.

Pelo contrário, com o Estado Novo institui-se a visão conservadora da educação.

As primeiras décadas do séc. XX foram um período de efervescência teórica; o Estado Novo evitaria a passagem da arte à ciência na educação, preferindo a adopção dos modelos já citados, de sacerdócio, para os professores, impedindo-os de qualquer progresso e autonomia; com isto, interrompia-se o processo de profissionalização do corpo de professores do ensino primário descrito por esse autor e envolvendo 2 dimensões; desta forma, Nóvoa considera que as duas dimensões referidas abrangem os seguintes aspectos: 1-Conhecimento de saberes e dos 'saber-fazer' necessários ao exercício competente da função docente. Estes "saberes" devem ter um referencial teórico e tender para um contacto cada vez maior com as disciplinas ditas científicas; 2-A adesão a valores éticos, estéticos e deontológicos que regem, não só o quotidiano da prática docente, mas também as relações entre os membros do corpo docente e entre estes e o conjunto da sociedade.

Em 24 de Novembro de 1936, publica-se um Decreto-Lei que reconhece o horrível salário dos professores do ensino primário, pois afirma, no seu artº 9º: "O casamento das professoras não poderá realizar-se sem autorização do ministro da Educação, que só deverá concedê-la nos termos seguintes: 1-Ter o pretendente bom comportamento moral e cívico; 2-Ter o pretendente vencimentos ou rendimentos documentalmente comprovados, em harmonia com os da professora. "

As Escolas do Magistério Primário, encerradas em 1936, foram reabertas em 1942 mas apenas em Lisboa, Porto Coimbra e Braga, e o curso passava de três para dois anos (Decreto – Lei de 5/9/1942).

Vinte anos após o termo da Segunda Guerra Mundial, continuava a existir em Portugal a Mocidade Portuguesa – o que era um anacronismo absurdo. Em 12 de Novembro de 1966, sai um decreto que "actualiza" essa organização.

Em 10/2/1968, foi criado o curso de professores do Ciclo Preparatório (do Ensino Secundário) na Telescola, pelo ministro Galvão Teles. A Telescola teve méritos de reconhecer, pois proporcionou a muitas crianças, o acesso ao ensino.

Em Agosto de 1968, Salazar (com cerca de 80 anos) foi obrigado a deixar o governo, exonerado a 27 de Setembro de 1968 e substituído por Marcelo Caetano.

Na educação surge José Hermano Saraiva, que se manteve ano e meio no governo, durante o qual se gerou grave crise na Universidade de Coimbra. "O fomento levado a cabo no sector do Ensino, Letras, Artes e Ciências, obedecia a uma orientação oficial de enaltecer os valores do Nacionalismo. Houve, no entanto, uma produção extremamente fulgurante em meios independentes ou da Oposição ao Regime e não poucos autores pagaram com o exílio a sua criatividade. Importa realçar pensadores como António Sérgio e Leonardo Coimbra, historiadores como Jaime Cortesão, poetas como José Régio, artistas como Almada Negreiros, escritores como Ferreira de Castro e Jorge de Sena "60.

Como se sabe Sérgio morre nesta última fase do regime, já com Marcelo Caetano no poder.

3. Pensamento Pedagógico de António Sérgio: uma visão Global sobre Educação e Homem

3. 1. A Obra Sergiana: Temáticas fundamentais.

Como já referi, Sérgio manteve grande coerência nas suas ideias – o que se reflecte, deste modo, na sua produção teórica. Abordarei esta questão com mais detalhe quando tratar, precisamente, dessa constância de pensamento.

Como balanço sobre o seu ideário pedagógico, podemos rever o essencial das teses sobre Educação e Ensino que defendeu ao longo da sua obra, dizendo que pretendia:

1º - Novos processos de educação infantil, expostos por Luísa Sérgio (sua esposa) em O Método Montessori de 1915;

2º - Ligar a instrução popular às actividades produtoras da região da escola o que sustentou em A função social dos estudantes de 1917 e em Educação Profissional de 1916;

3º - Estudar a História de Portugal seguindo determinantes de carácter económico, por oposição aos que reclamavam uma visão romântica da Expansão e Conquista Portuguesas, nomeadamente nas suas obras:

1 – Considerações histórico-pedagógicas de 1915;

2 – Breve Interpretação da História de Portugal, de 192961; 3 – Introdução Geográfico-Sociológica à História de Portugal, de 1941;

4º – Considerar indispensável a realização de estudos no estrangeiro (que ele próprio fez) e de bolsas para esse efeito, questão que aborda em O Problema da Cultura e o Isolamento dos Povos Peninsulares, de 1914;

5º-Combater o ensino apenas baseado na memória, ideia que defende em Noções de Zoologia, de 1917;

6º-Treinar as crianças para virem a ser cidadãos democratas no futuro, pelo emprego de métodos da democracia política, como defende em Educação Cívica de 1915;

7º-Entender O ensino como factor de ressurgimento nacional, como diz em obra de 1918, com esse título.

Para Daniel Hameline e António Nóvoa, "quando em 1957 relembra o seu projecto pedagógico, António Sérgio remete exclusivamente para textos publicados entre 1914 e 1919. O que Sérgio tinha para dizer sobre o ensino e a educação disse-o nesta altura, realidade de que tem perfeita consciência aos 70 anos de idade, no momento em que olha retrospectivamente para a sua obra pedagógica."

Segundo estes autores, em outros escritos, como O problema pedagógico de 1923, nas Virtudes fundamentais da reforma da educação, também de 1923, nos Aspectos do problema pedagógico em Portugal de 1934, ou em Sobre educação primária e infantil de 1939, quer ainda em vários textos dos Ensaios e em numerosas publicações periódicas, António Sérgio limita-se a prolongar as ideias pedagógicas produzidas de 1914 a 1919. Pode aliás considerar-se uma trilogia escrita entre 1914 e 1916: Educação Cívica; Considerações histórico-pedagógicas e Educação profissional.

Para Hameline e Nóvoa, "Manifestamente, é entre 1914 e 1916 que António Sérgio define o seu querer em matéria pedagógica. E este querer é largamente influenciado pelas ideias em voga no Instituto Jean Jacques Rousseau. Confirma-se assim a importância que a estada em Genève teve na génese do pensamento pedagógico de António Sérgio. Importância que em grande medida, tem passado despercebida."

3. 2. Ideias-Chave da obra de Sérgio: as suas conexões.

Existe um fio condutor no pensamento sergiano que deriva do "Nó" crucial da sua personalidade: Sérgio foi um Democrata. Tudo no seu pensamento tem como pano de fundo esta noção: a Democracia é um valor fundamental. Como referirei na parte deste trabalho em que se procede a uma 'releitura' da sua obra, ele foi um herdeiro da cultura Ocidental nas suas mais profundas raízes, e nunca o escondeu. O conceito de igualdade humana vem das três raízes da civilização ocidental. A ideia judaica de um só Deus foi desenvolvida até à noção de que sendo os homens filhos de Deus são irmãos; não é pois, por acaso, que Sérgio nunca atacou o Cristianismo; para os gregos [embora seja escusado referir os limites desta ideia], a política é uma busca de consensos – opinião oposta à noção fascista segundo a qual a política é baseada na violência e no esmagamento do inimigo. Por último, o conceito de «Governo por elite», em fascismo é baseado no nascimento, na propriedade, na raça ou no sexo; pelo contrário – como notava Einstein, a elite democrática é formada pelos mais capazes e mais éticos. Tenho ainda de referir que Sérgio, por contraposição à ideologia fascista nunca entende o "Chefe" como alguém infalível, mas como todos os Democratas, entende que se devem discutir livremente os problemas: a própria Democracia pode ser discutida. As leis e regras democraticamente elaboradas são para se cumprirem por todos; eis o fulcro do pensamento de Sérgio: rebate, ponto por ponto, as principais ideias do autoritarismo, que são: 1-falta de confiança na racionalidade humana; 2-negação absoluta da igualdade entre os homens e perante as mais diversas situações (como o cumprimento das leis); 3-governo pelo terror e violência, encarando-se a oposição como "inimigo interno", sem direito a expressar qualquer discordância; 4-desrespeito pelos tratados, regras e leis internacionais, o que conduziu os regimes fascistas a horrores como as duas Guerras Mundiais. É contra tudo isto que António Sérgio fala e escreve, num tempo em que estas ideias totalitárias pareciam ir triunfar. É esta a sua Pedagogia: a formação do homem livre.

3. 3. António Sérgio fala das suas ideias.

É fundamental citar o pensamento de um autor, quando se pretende descobrir esse mesmo pensamento. Começo este capítulo por me reportar a um discurso de Sérgio, parcialmente elucidativo das suas ideias. Tal discurso, com o título "Educação Republicana" é curioso, vindo de alguém de quem se diz não ser explicitamente Republicano.

Nele, pronunciado por António Sérgio enquanto Ministro da Instrução, no Centro Tomás Cabreira, em 1924, encontramos ideias-chave do pensamento educativo sergiano, importantes sobretudo porque se trata de ideias de alguém que é ministro da educação (naquele tempo "Instrução Pública) e portanto com vontade e poder para alterar a realidade educativa em função dessas mesmas ideias.

Educação Republicana «Fui convidado amàvelmente a assistir a esta festa, e entendi que devia vir, porque tenho atrás de mim uma vasta obra de doutrinação democrática, que venho realizando há uns poucos de anos, que os senhores não conhecem porque ainda não foi vulgarizada – e que seria bom que conhecessem. Pareceu-me que, tratando-se de celebrar uma afirmação republicana, ao mesmo tempo que se inaugura a sala de uma aula, me competia falar a mim, ministro da instrução, da educação republicana, da instrução pública democrática. As mais urgentes necessidades de instrução pública no nosso país são o aperfeiçoamento dos nossos técnicos nas melhores escolas do estrangeiro, e a democratização do nosso ensino. Que se deve entender por democratização ou republicanização do ensino? – É ter escolas onde se pregue a democracia e a república? -Não: é ter escolas onde se adquiram aqueles hábitos, aquelas maneiras de proceder, que devem caracterizar o cidadão republicano.

A pregação de doutrinas políticas, sociais ou religiosas, feita pelos mestres à mocidade, é muitas vezes contraproducente; a melhor mocidade, a de espírito mais vivo, tem tendência a opor-se ao que lhe pregam os seus mestres; saíram muitos ateus do colégio religioso de Campolide; nas escolas da Monarquia surgiu a mocidade republicana; das escolas da República não deixam de ir saindo, agora, muitos jovens que são monárquicos. – Que significa tudo isto? – Significa que o que importa, neste caso, não é pregar a Democracia dentro das aulas da escola pública: o que importa, sobretudo, é fazer da própria escola, do conjunto dos estudantes, uma sociedade democrática. É isto o que tenho pregado, e o que expus há muitos anos, numa série de estudos sobre a educação cívica, mostrando como os alunos de uma escola se podem organizar sob a forma de democracia, elegendo os seus magistrados, desde o presidente da República até aos vereadores e aos juízes, e habituando-se assim a proceder republicanamente. Seria isto, senhores, a democratização da mocidade, não por palavras, mas por actos. Democratizar a escola é, além disso, desvanecer o mais possível a velha distinção das classes liberais e das classes mecânicas, obrigando os futuros cidadãos, a qualquer classe que eles pertençam, ao trabalho manual na escola; dando carácter e base científica e portanto liberal, aos trabalhos mecânicos; colocando nas mesmas escolas, em comunidade de trabalho, os filhos do povo e os da burguesia; e organizando os grupos de alunos em corporações profissionais. Democratizar a escola é ainda dificultar o acesso das altas carreiras universitárias aos filhos dos ricos que não têm capacidade para os mais difíceis trabalhos de ciência e da literatura; e, pelo contrário, facilitar esse acesso aos filhos dos pobres que nasceram com talento. Neste sentido estou procedendo, e continuarei a proceder, se as circunstâncias me permitirem demorar-me no ministério. Para isso apresentarei, à medida que for oportuno, projectos de lei que me permitam:

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


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