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António Sérgio Pedagogo e Político Sérgio (página 3)

Carlos Alberto de Magalhães Gomes Mota
Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6

1º Remodelar a escola primária no sentido de a ligar o mais possível com o trabalho profissional da região e com as necessidades do nosso povo;

2º Instituir a educação cívica pela República Escolar e pela organização corporativa dos grupos de estudantes;

3º Desenvolver e aperfeiçoar o ensino primário superior, tirando-lhe o carácter doutoral, e dando-lhe um carácter de um treino prático para as necessidades da vida do trabalho e da cultura cívica democrática, – de maneira que, a par de uma cultura geral suficiente, prepare para os cargos médios das profissões, como sejam chefes de oficina, empregados de escritório, caixeiros viajantes, regentes agrícolas, etc.;

4º Aumentar as propinas das Universidades, de maneira a dificultar o seu acesso aos pouco aptos para a alta cultura, obtendo dinheiro, ao mesmo tempo, para as bolsas de estudo aos filhos dos pobres que tenham talentos para as altas funções intelectuais. Vim trazer-vos aqui ideias claras e concretas, e não eloquência; não sou orador; e é necessária a divisão do trabalho, e que uns analisem os problemas, enquanto os outros entusiasmam as almas; o espírito mais nobre, mais vasto, entre os democratas da nossa terra, Antero de Quental, escreveu o seguinte: «o entusiasmo é bom, porque eleva o espírito; mas a crítica é melhor ainda, porque o esclarece. » Esclareçamos os problemas, para que tenhamos, o mais breve possível, pedagogia republicana nas escolas portuguesas»62.

Vemos neste discurso indicados os traços fundamentais do pensamento pedagógico de A. Sérgio, que poderíamos resumir desta forma:

1-Remodelar o Ensino Primário, fazendo a "Educação pelo Trabalho";

2-Instituir a Educação Cívica;

3-Dificultar o acesso ao ensino superior aos pouco aptos, facilitando-o aos outros e começar um trabalho de envio (com bolsas) de estudantes para outros Países. Estes traços, mantiveram-se constantes ao longo da sua vasta obra, sendo várias vezes reiterados.

Como indico no título que escolhi para este trabalho, para Sérgio, a Pedagogia, a Cultura e a Democracia são fenómenos interligados, não separáveis uns dos outros. Veremos traços utópicos no pensamento deste autor. No entanto, grande parte das suas ideias podem considerar-se actuais.

Para Sérgio, Educar é favorecer o crescimento da capacidade de racionalização e do espírito crítico, o que só é possível num contexto Democrático envolvente, sendo a Democracia um valor fundamental.

A escola é vista como um local de treino para as reformas sociais; surge deste modo, no seu pensamento pedagógico como factor de Democraticidade; é já isto um traço utópico no seu pensamento pedagógico pois sendo a Democracia educação do povo ou Demopedia e opondo-se à noção marxista de luta de classes, Sérgio considera que as classes sociais devem colaborar, sendo tal espírito de colaboração entre elas obtido na escola que é por ele vista como um dos pilares da Democracia, porque é o contrário do "Magister Dixit", ou seja, do ensino baseado no poder autoritário exercido sobre os alunos. Mas a escola não contém a Sociedade, antes está nela contida e Sérgio procura responder a esta questão dizendo que pela Educação Cívica teremos o factor de unidade entre as visões científicas e o humanismo, sendo ainda preciso criar uma elite dirigente, formada pela minoria dos melhores que estrutura uma nação, sendo este corpo formado desde o ensino secundário. A Educação deve igualar ao máximo as condições externas da partida, embora não se pretenda que todos atinjam, no final as mesmas metas; por isso, Sérgio propõe a criação de uma educação popular, destinada a elevar a preparação cultural dos artífices, operários e camponeses. O nosso autor, como veremos, insistirá sempre nestes seus pontos de vista, muitas vezes parecendo não se dar conta das dificuldades em que o seu discurso cai, levando-o a posições dificilmente defensáveis.

3. 4. António Sérgio: a constância do seu pensamento

António Sérgio foi um pensador com uma grande coerência e manteve sempre as suas Ideias-base. A este respeito já foi referida a observação acerca da obra pedagógica sergiana feita por Daniel Hameline e António Nóvoa na referência intitulada "Produção pedagógica de António Sérgio"63: "Num texto escrito na fase final da sua vida intelectual, espécie de balanço sobre o seu ideário pedagógico, António Sérgio rememora o essencial das teses sobre educação e ensino que defendeu ao longo da sua obra:(...) António Sérgio limita-se no essencial a prolongar as ideias pedagógicas produzidas no quinquénio 1914-1919. "

A Educação Cívica é uma recolha de artigos publicados na revista Águia de Junho a Novembro de 1914 e já foi escrita em Genève, pois António Sérgio diz a Raúl Proença em carta de 17 de Maio de 1914: "Vou ver se posso dar agora para a Águia uma série de artigos que possam continuar o Pela pedagogia do trabalho".

Por outro lado, as Considerações histórico-pedagógicas foram redigidas em 1915, tendo acabado de ser impressas em 26 de Outubro desse ano; a Educação profissional é composta por três cartas enviadas de Genève em 18 de Dezembro de 1915, em 15 de Janeiro de 1916 e em 26 de Julho de 1916.

É verdade que em textos anteriores à sua chegada a Genève, nomeadamente em artigos publicados em A Águia como Pela pedagogia do trabalho de Março de 1914 e na revista A Vida Portuguesa por exemplo, em Golpes de malho em ferro frio de Agosto de 1913, António Sérgio já havia tratado a questão pedagógica. Afirma a necessidade de "educar o português para o trabalho e para a justa vida social" e de construir "uma pedagogia do trabalho e da organização social do trabalho", começando a revelar a sua visão para as questões pedagógicas, que iria desenvolver nos anos seguintes. É entre 1914 e 1916 que António Sérgio se define em matéria pedagógica, influenciado pelas ideias do Instituto Jean Jacques Rousseau. De Genève, António Sérgio propõe a Álvaro Pinto a criação pela "Renascença Portuguesa" de uma Biblioteca de Educação, oferecendo-se para seu director. Curiosamente, quando em 1928, agora na Biblioteca do Educador, também editada sob a sua direcção, António Sérgio prefacia a edição portuguesa do Transformemos a Escola, do seu antigo mestre Adolphe Ferrière utiliza a divisa: "Dois grandes objectivos incumbem à escola do futuro: um deles, a anulação progressiva dos antagonismos sociais, e instauração da sociedade justa, pela Escola Única do Trabalho; outro, a realização da Liberdade na vida da gente adulta, pela educação das crianças no regime da Liberdade".

A defesa de uma escola do trabalho está presente desde muito cedo no discurso pedagógico de António Sérgio; segundo diz trata-se, sobretudo, de assegurar "a união do ensino com a actividade produtora". Para Daniel Hameline e António Nóvoa64, a autonomia da pessoa a formar era outro aspecto fundamental das suas propostas pedagógicas. Em primeiro lugar, a autonomia e a educação cívica aprendem-se praticando-se; defende o Município Escolar; a acção com vista ao Self-Government exerce-se no ambiente escolar e na sociedade exterior e a autonomia não é oferecida pelos governantes, mas conquistada pelos governados65. Daniel Hameline e António Nóvoa66 referem:

"A união do ensino e do trabalho prolongar-se-ia,segundo António Sérgio, graças à criação de escolas de continuação, definidas como instituições vocacionadas para fornecer uma educação completa para uma função definida na sociedade. Aos 12 anos deveria haver uma bifurcação: uns para o ensino primário superior e de continuação; outros para o secundário e universitário. Verifica-se assim que este autor só muito parcialmente defende a ideia da escola única, contrariamente às correntes mais avançadas da pedagogia do princípio do século."

Sérgio pretendia a formação de uma elite dirigente conseguida pelo sistema educativo. A criação da elite deve ser iniciada pelo ensino secundário. O autor é a este respeito textual, pois afirma que "O ensino secundário e o superior devem visar à criação urgente de uma boa elite dirigente (...)"67.

Pretende o alargamento a todos do ensino primário, propondo "(...) uma escola primária de ensino geral que tome por base da função docente o trabalho e as necessidades da vida agrícola"68.

Inclina-se para a criação de uma educação de carácter prático e de cariz popular – distinta nas suas finalidades daquela que deve criar a elite dirigente. Diga-se, em resumo, que Sérgio parece entender a Escola primária como "raiz comum" pela qual todos passariam.

A Escola Primária – que Sérgio quando Ministro da Instrução Pública, procurou transformar – seria uma base, sólida mas despretensiosa nos seus objectivos69; ela estaria ligada com os trabalhos da sua região; notam-se nesta concepção semelhanças com as ideias do professor e pedagogo francês Célestin Freinet, o que não é de estranhar, pois Hameline e Nóvoa, consideram que as influências de outros autores, recebidas por Sérgio foram "adquiridas durante a estada em Genève: algumas obras de John Dewey e de Maria Montessori merecem uma referência especial (...) No entanto no retrato da «família pedagógica» de António Sérgio, encontra-se em lugar de destaque o alemão Georg Kerschensteiner, ladeado pelo americano John Dewey e pelo suíço Adolphe Ferrière. Uma menção também é devida à italiana Maria Montessori, cujos métodos impressionaram fortemente António Sérgio, apesar do seu desacordo com os pressupostos ideológicos e filosóficos desta autora (...) Fica assim estabelecida a genealogia pedagógica de António Sérgio. Nos seus escritos, Sérgio cita Wilson Gill e os métodos do "Município Escolar"70 usados pelos Estados Unidos em Cuba e Porto Rico71. Mas seria através do ensino secundário, e depois, pelo superior que se conseguiria formar a elite.

3. 5. Comparação entre as ideias pedagógicas de Sérgio e as de outros autores; a sua «Família Pedagógica»: autores estrangeiros e portugueses.

Há um paralelismo evidente entre a noção sergiana de "Educação Popular" e a das Altas Escolas Populares Dinamarquesas elogiadas por Faria de Vasconcelos. De resto, já no discurso de Sérgio Educação Republicana encontramos traços de pensamento pedagógico que Faria de Vasconcelos igualmente defende.

Este autor, num texto intitulado As Escolas de Wirth, de Hetherington, de Johnson e de Gruntwig72 de 1934, fala das «Altas Escolas Populares Dinamarquesas» de Grundtwig. Diz Faria de Vasconcelos que funcionam há mais de 80 anos e nos países nórdicos sendo Grundtwig conhecido como "O profeta do Norte". "São internatos temporários para adultos de 18 a 25 anos de idade; a alta escola funciona no inverno, quando o trabalho dos campos pára ou afrouxa; o seu fim não é o de ministrar conhecimentos mas de abrir o espírito. As aulas são em forma de palestras, revendo-se os conteúdos da Escola Primária e estudando história, geografia, literatura, arte, moral e filosofia. Mais de 8000 camponeses passam por ano nas altas escolas, que podem representar um meio de solução dos grandes problemas sociais. " A expressão "«escola activa» foi lançada pelo educador suíço Pierre Bovet e que por outro lado tal expressão era a tradução de outra – alemã – de Kerschensteiner, ratificada por Ferrière, referindo ainda a obra experimental de John Dewey, a escola de Missouri, o sistema de Winnetka e os métodos Montessori, Decroly e Cousinet"73.

Ora estes autores são referidos várias vezes quer por António Sérgio, quer por Faria de Vasconcelos, o que não é para admirar, visto terem ambos passado por Genève, e pelo Instituto Jean-Jacques Rousseau, sendo autores mencionados em escritos de Vasconcelos e sabendo nós que Sérgio, quando Ministro da Instrução procurou tornar conhecidos em Portugal. Vemos, aliás, que as observações de Daniel Hameline e António Nóvoa à obra de Sérgio confirmam esta ideia: existiu uma «família» de educadores que foi de Dewey a Montessori, passando por Kerschensteiner, Freinet e chegando ao próprio Anton Makarenko, que mais ou menos fez escola desde essa época, tornando-se referência obrigatória na cultura Pedagógica. Quando refiro Kerschensteiner, sublinho que para este autor, que foi professor de todos os graus de ensino, a teoria provém da prática, existindo uma permuta contínua entre as duas. Este aspecto continua a pedagogia de Pestalozzi; Kerschennsteiner referia em concreto – como fez Sérgio, a necessidade de formar autónomos, pelo processo educativo; "a educação da personalidade deve organizar-se em torno dos interesses da criança"74. A noção que Kerschensteiner dá de Professor – que identifica com a de educador, é em tudo semelhante à que Sérgio adopta. Quanto a outros autores da «família pedagógica» de Sérgio, destaca-se Decroly, que condensa as suas ideias pedagógicas na frase "A escola pela vida e para a vida". Decroly desenvolve esta ideia de forma muito semelhante à noção sergiana de escola de ligação da escola com o trabalho. Um autor fundamental para a compreensão de Sérgio é Edouard Claparède. Pode considerar-se, como de resto Sérgio fez, quando comparou em importância científica, Claparède com Paul Langevin, que o primeiro pertence a uma corrente pedagógica que procurou tornar os métodos educativos métodos científicos. Claparède procurou estudar com grande rigor a Psicologia, dizendo que a pedagogia deve assentar no conhecimento da criança; "A concepção fundamental da educação e do ensino consiste em situar a criança no centro dos programas e métodos escolares e em considerar a própria educação como uma adaptação progressiva dos processos mentais a determinadas acções condicionadas por certos desejos"75.

Mesmo na questão da Democracia, tão cara a Sérgio, note-se, que Claparède, em 1917, fez um apelo à educação para a Democracia76. Não é demais relembrar que foi Claparède quem fundou com Pierre Bovet e Adolphe Ferrière o Instituto de Ciências da Educação Jean-Jacques Rousseau, em Genebra, frequentado por Sérgio e pela sua mulher Luísa. A importância de Claparède é enorme, sobretudo no domínio da Psicologia, no qual o seu conceito de "Educação Funcional" seria continuado na obra de Jean Piaget, podendo dizer-se que já para Claparède, o pensamento infantil é estruturalmente diferente do pensamento adulto.

Crucial é também, no pensamento pedagógico sergiano, o papel desempenhado pela obra da Pedagoga italiana Maria Montessori – o que, como já se notou, é sublinhado por António Nóvoa. Para Maria Montessori natureza e liberdade são sinónimos – no que também ela se pode considerar uma herdeira de Rousseau. Tal como Sérgio sempre defenderia, também Montessori considerava que não interessa dar ordens, moldar ou formar de forma definitiva o espírito da criança, mas antes criar um ambiente no qual a criança se possa exprimir, experimentando e agindo. Maria Montessori, médica, era adepta de um «naturalismo» educativo: liberdade e descoberta próprias eram as grandes linhas do seu pensamento. Em 6 de Janeiro de 1907 inaugura a Casa dei Bambini (Casa das Crianças), com materiais criteriosamente escolhidos para servirem de estímulo. Já naquele tempo, Maria Montessori considerava que o material adoptado deve possibilitar experimentar e rejeitar, por parte das crianças. Aplica um método rigoroso ao ensino da leitura e escrita; neste método começa-se imediatamente pela escrita, valorizando o trabalho, que leva ao sentimento de dignidade própria. Para ela os grandes problemas da Humanidade surgem do facto de se maltratarem as crianças; Maria Montessori pretendia assim "implementar" as ideias de Rousseau; de facto, foi mais longe do que ele, pois passou da teoria à prática. Julgo que entre os grandes pedagogos do século XX está igualmente Célestin Freinet; normalmente, não são feitas comparações entre as realizações de Freinet e as ideias pedagógicas de António Sérgio. No entanto, penso que existem muitos pontos de contacto entre as posições que ambos defenderam. A técnica da tipografia, desenvolvida por Freinet, em conjunto com outras, como o texto livre, a correspondência entre escolas, o desenho livre e o livro da vida – não existindo livros adoptados são as crianças quem os faz, de acordo com as suas vivências – tudo nos leva às ideias sergianas de cooperação, de cooperativa escolar, de educação pelo trabalho. Também penso que as actividades de Anton Semionovic Makarenko, o levaram a concepções e modelos organizacionais semelhantes, por exemplo, ao de 'Município Escolar', que Sérgio cita em vários textos, defendendo este modelo com entusiasmo. Pode parecer estranho, mas na União Soviética, tiveram difusão as ideias anglosaxónicas sobre Educação – o que explica esta proximidade entre Sérgio e Makarenko77.

No fundo, após a revolução liderada por Lenine em 1917, concebia-se a velha escola como aparelho ao serviço da classe dominante, donde a necessidade de uma nova escola – e aqui entram os modelos anglo-saxónicos – de ligação entre a escola e a vida. Também para Makarenko não há rapazes maus; existem sim vícios da Educação; é o que ele expõe em Poema Pedagógico e Bandeiras nas Torres; é igualmente interessante notar que Anton S. Makarenko defendeu a auto-organização dos alunos, e a dupla e idêntica valorização do trabalho manual e do trabalho intelectual. Podemos ver que nesta época (desde o seu começo até aos anos 30), o século XX conheceu, na vanguarda do seu pensamento Pedagógico, grande unidade, embora por vezes atingida através de percursos muito diferentes. Sérgio, como já disse, não afirma ter como referência nem Freinet nem Makarenko; no entanto, as suas propostas tinham muito de comum com as destes dois grandes Pedagogos.

Em Portugal, além do já citado Faria de Vasconcelos, Pedagogos houve que pertencem ao que designo como «Família Pedagógica» de António Sérgio. Remotamente, vemos em Sérgio a influência de Alexandre Herculano, que em 1838 defendia a necessidade de massificar a educação, constituindo uma Educação Popular. "Nós carecemos mais de ilustrar o povo do que de fazermos sábios"78. Tal como Sérgio, Herculano lutou pelo acesso do povo à cultura. Também "a erradicação do analfabetismo e o ensino elementar chamariam a atenção de outros pedagogos portugueses, de entre os quais salientaremos Castilho e João de Deus"79.

Pode também referir-se Adolfo Coelho, que fundou e dirigiu uma Escola Primária Superior, fundando igualmente um Museu Pedagógico, e, num plano global, tal como Sérgio, defendia "a educação e a instrução entre as condições do ressurgimento nacional"80.

Adolfo Lima, César Porto (que difundiu em Portugal testemunho sobre a Escola na União Soviética), Delfim Santos – autor influenciado pelo existencialismo – ou Irene Lisboa, são também relacionáveis com Sérgio. Todavia é sem dúvida Faria de Vasconcelos quem mais directamente colaborou com António Sérgio, nomeadamente na redacção da reforma educativa João Camoesas, apresentada ao Parlamento em 1923. Sérgio, terá derivado para a luta política, segundo Rogério Fernandes, pela imposição do regime fascista de Salazar. "Sérgio começou por interessar-se intensamente pela pedagogia experimental e pela renovação da escola portuguesa, não apenas através de escritos teóricos (...) mas também através de uma escolinha que chegou a fundar e a dirigir. Uma das instituições em que Sérgio militou activamente como teórico e propagandista dos temas de educação e ensino foi a Sociedade de Estudos Pedagógicos, em cujas sessões de trabalho tomaram parte outros educadores que o fascismo silenciou e perseguiu, e cujo órgão – a Revista de Educação Geral e Técnica – recolheu valiosa colaboração (...) Sérgio apontava a educação e a instrução como factores de ressurgimento nacional. (...) defendeu a reorganização da educação infantil e primária, com integração das actividades intelectuais e manuais (...) no âmbito do ensino secundário, a educação técnicoprofissional coexistiria com uma base humanística e científica muito ampla (...)81".

3. 6. Um elitismo humanista.

Deve valorizar-se o homem em geral, mas reconhecendo-se aos mais capazes e mais bem preparados, uma superioridade que lhes conferirá o uso do poder; será uma superioridade natural, acompanhada de elevado espírito cívico – e de missão – mas não deixará por isso de ser um apelo aos mais capazes – Sérgio fará um apelo com características semelhantes quando considera que a Nação Portuguesa deveria encontrar quem a remodelasse e afirmando mesmo: "se não houver os estadistas-natos, será necessário tirá-los de nós"82 – leia-se «dos intelectuais bem intencionados»; sucedia que os homens do tempo em que Sérgio falava da necessidade de uma elite, desconfiavam desse conceito mas a posição sergiana a este respeito era semelhante à defendida por Einstein – insuspeito de simpatias nazis. Albert Einstein escreveu: "A nossa época é rica em espíritos inventivos, cujas invenções poderiam facilitar as nossas vidas consideravelmente. Atravessamos os mares pela força motriz, utilizando também a força motriz para aliviar a humanidade de quaisquer trabalhos musculares cansativos. No entanto, a produção e a distribuição de comodidades é inteiramente desorganizada, de modo que toda a gente vive no temor de ser eliminada do ciclo económico. Outrossim, homens que vivem em diferentes países matam-se uns aos outros em intervalos regulares, e, como resultado, todos aqueles que pensam no futuro têm que viver no temor. Isto se deve ao facto de que a inteligência e o carácter das massas são incomparavelmente inferiores à inteligência e ao carácter dos poucos que contribuem com algo de valioso para a comunidade. Espero que a posteridade leia essas declarações com um sentimento de orgulho e superioridade justificada"83.

O "Homem Contemporâneo", sobretudo desde a ascensão e queda de Hitler, habituou-se a desconfiar – nomeadamente ao nível dos chamados "intelectuais" – dos apelos às elites, porque tais apelos, como sabemos tinham sido usados pelos fascistas e nazis; todavia, a posição Sergiana a este respeito, era inequívoca: tratava-se (a elite) de uma necessidade fundamental, porque Sérgio entende a elite, como o fazia Einstein84: homens e mulheres mais capazes, mais dotados intelectual e culturalmente, mas também – e por isso – mais nobres, no sentido ético. Ou seja: António Sérgio não fala da necessidade de uma elite num qualquer sentido agressivo, mas pelo contrário, num sentido construtivo; assim a elite não seria formada por gente preparada e com elevado 'Q. I'. mas baixas intenções morais – tal gente existe, e Sérgio sabe-o!

A elite seria formada por pessoas capazes e moralmente superiores – deve manter-se sempre a ligação entre o sistema educativo e a Nação, entre a educação criadora de elites e a correcta condução dos negócios públicos.

Há que afirmar, no entanto, de forma inequívoca, a total diferença entre a noção sergiana de «elite» – definida como conjunto dos mais capazes e também mais éticos, de noções fascizantes ou nazis; de resto, como é sabido, Adolf Hitler considerava «elite» algo absurdo, visto que se referia aos "arianos", ou ao "povo alemão", ou ainda a outros povos, uma vez que ele próprio era austríaco e, contrariando as doutrinas oficiais do racismo-elitismo nazi, Hitler não exitou em apoiar Franco e Mussolini (governantes de países latinos); fez ainda uma mais estranha aliança – do seu próprio ponto de vista racial e ideológico com os japoneses. António Sérgio quando fala da criação de uma elite dirigente, talvez seja utópico85; mas nunca entende essa elite num sentido agressivo, pelo contrário, fá-lo num sentido construtivo.

3. 7. Pedagogia, Cultura e Política: a Revista Águia.

A Revista Águia registou contribuições culturais importantes como a polémica Sérgio/Pascoaes a respeito da Saudade que ficou registada na sua 2ª série. Essa publicação teve como grande impulsionador Álvaro Pinto, que de Dezembro de 1910 a Julho de 1911 dinamizara a sua 1ª série.

Com a revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, viveu-se uma atmosfera de optimismo aparecendo a Renascença Portuguesa, que era um movimento cultural e cívico, marginal em relação a partidos e forças políticas, pretendendo pôr ao serviço da regeneração nacional os portugueses mais capazes, publicando a 2ª série da Revista Águia da qual saíram 118 fascículos, bem como o quinzenário A Vida Portuguesa, tendo fundado cinco universidades populares. Álvaro Pinto era considerado possuidor de uma grande capacidade de trabalho e "apoiava entusiasticamente Sérgio, mesmo nas iniciativas que exorbitavam o âmbito da Renascença"86. Sérgio terá sido convidado para a Renascença por Raúl Proença, Cortesão e pelo próprio Álvaro Pinto. "O seu entusiasmo arrefeceu ao entrar em polémica com Pascoaes"87.

Vemos que houve personagens comuns entre os colaboradores da Águia e os da Seara Nova – um dos quais o próprio António Sérgio. Nas páginas da Águia além da polémica com Pascoaes, tratada noutra alínea deste trabalho, Sérgio explicou desenvolvidamente as teorias pedagógicas de Wilson Gill.

3. 8. Pedagogia, Cultura e Política: a Seara Nova.

As ideias sergianas foram igualmente tratadas nas páginas da revista Seara Nova, inclusivamente no que diz respeito à questão das elites.

"Em 1923, a revista enriqueceu-se com a adesão de um doutrinário de vulto incomparável que por cerca de quinze anos, senão definitivamente, a marcaria com a sua eminente personalidade de pensador e crítico. António Sérgio nasceu em 1883, oriundo de uma família de marinheiros, seguiu a carreira de oficial da armada, que abandonou em 1910 para se consagrar à acção doutrinária. Movia-o o reconhecimento da necessidade de enraizar, na vida social e na esfera da cultura, a epidérmica mutação política representada pela proclamação da República. Na linha de Antero de Quental, combatia, em nome da democracia social, o superficial insurreccionismo «jacobino» predominante nas hostes republicanas"88.

A Seara Nova terá um papel muito importante na vida cultural e política de Portugal, mas não podemos esquecer que foi um movimento que chegou apenas às elites culturais. Por outro lado, os seus elementos provinham dos mais variados sectores profissionais e ideológicos, tendo alguns, mais tarde, colaborado com o regime salazarista, como foi o caso de Quirino de Jesus.

"O lançamento da Seara Nova em 1921 é, basicamente, obra de três grandes figuras intelectuais: Jaime Cortesão, Raúl Proença e Luís da Câmara Reys"89. A Seara Nova desenvolveu Universidades Populares e congregou inúmeras figuras de relevo, de muito diversos quadrantes.

As páginas da revista Seara Nova acolheram indivíduos, nomeadamente goeses, partidários de Ghandi90.

Como nota Sottomayor Cardia, Sérgio atacou o marxismo-leninismo mas também aqui as suas posições eram perfeitamente enquadráveis nas que se revelaram na Seara Nova. Câmara Reys, defendia taxativamente o trabalhismo inglês, tal como António Sérgio. Cita-o Sottomayor Cardia a propósito do partido trabalhista inglês91. No entanto, apesar do pluralismo da Seara, diga-se que Raúl Proença, grande amigo de Sérgio, escreve sobre Lenine: "(...) Deu ao mundo a primeira realização socialista, imperfeita e poderosa como um esboço de titã (...)". Mas nem Raúl Proença se inibia, de escrever, em 1926: "O bolchevismo é violento, agressivo, criminal, antidemocrático, nos métodos e na expressão, uma coisa a proscrever da correcta atitude social do homem de hoje. Mas ao menos esses levaram a educação do povo a uma altura que nunca o cesarismo atingiu; quer dizer, a obra pedagógica que tem criado (e que é formidável)"92.

Note-se a apreciação de Sottomayor Cardia aos escritores seareiros: "Deve ainda recordar-se que os mais representativos escritores do grupo seareiro, do velho Raúl Brandão ao jovem Rodrigues Miguéis passando por Aquilino Ribeiro, deixaram na revista páginas de frontal denúncia das opressões sociais. Logo no primeiro número, Raúl Brandão, que à Seara daria várias páginas de memórias e uma primeira versão de A morte do palhaço, se apresentava com umas Sombras humildes que alertavam: «A aldeia que eu conheço é uma aldeia trágica. A aldeia de Júlio Diniz nunca existiu: é a saudade da vida e mais nada. (...) O homem do campo não tem pão para todo o ano e são raros os que passam de caldo e pão. Tenho entrado em muitas destas casas: são pocilgas com as enxergas podres(...). O lavrador, por um hábito secular, entrega ao senhorio, no fim de cada ano, quase tudo o que a terra lhe produz». Solução? Proclamava-a também com o radicalismo da sua voz angustiada, largamente excedendo as posições dos seareiros doutrinários e políticos: «A terra é de quem a cultiva»".

Sottomayor Cardia nota que quanto aos problemas pedagógicos – que não foram vistos isolados dos outros -o grupo «Seara Nova», se empenhou na realização de uma «Educação Aberta», nomeadamente o seu «Programa mínimo» preconizando a gratuitidade do ensino primário e secundário, a «concessão de bolsas de estudo para o ensino superior aos indivíduos de maior capacidade que não estejam em condições de sustentar-se pelos seus recursos» e a «organização eficaz de obras de assistência escolar».

No que respeita à reorganização dos diversos graus de ensino, podem consultar-se os respectivos tópicos no Programa mínimo; sabemos que Faria de Vasconcelos se propunha desenvolver o assunto nas Bases, começando pelos jardins de infância para concluir na Universidade. De facto, ocupou-se apenas da educação infantil, tendo sido os problemas relativos aos restantes graus de organização escolar debatidos na revista em diversas ocasiões, mas por homens como Aurélio Quintanilha, Luís Simões Raposo, Alberto Pessoa, Jaime Cortesão, Raúl Proença, Câmara Reys, Ferreira de Macedo, Mário de Castro, José Rodrigues Miguéis, Manuel Mendes, Sílvio de Lima, Vitorino Nemésio e outros, além dos já mencionados Faria de Vasconcelos e António Sérgio. A inquietação pedagógica dos seareiros, aliás em si mesma nada excepcional no ambiente cultural de então, transitou da ordem programática à tentativa de actuação prática a nível oficial pelo menos em duas circunstâncias: quando Faria de Vasconcelos e António Sérgio colaboraram activamente no projecto de reforma de João Camoesas e quando António Sérgio ocupou o lugar de ministro.

De sublinhar também a estreita colaboração da Seara com a Universidade Popular e a Universidade Livre, coerentemente subordinada ao ideal de promover a formação de elites nas mais vastas camadas da população como premissa do amplo movimento de opinião consciente sem a qual baldadas seriam todas as tentativas de ressurgimento nacional. Como explica Ferreira de Macedo, o ideal da educação popular outro não era senão o da "educação dos adultos de todas as classes sociais, a educação da massa geral da nação ou a educação social da nação"93.

Para ser a sede do Espírito Democrático, a Escola teria de ser democrática. A Escola do deu tempo, é definida por Sérgio como "uma verdadeira calamidade pública, e uma das causas mais poderosas da lúgubre situação em que nos encontramos(...)"94.

Como já vimos, Sérgio parece acreditar no Ensino em termos «Platónicos»; a Sociedade 'copiaria' este «Modelo» para assim «Ressurgir». Trata-se pois de um autor que enfileira com todos os que acreditaram na «Redenção» da Humanidade pela Educação. A "escola real"-a existente – é criticada por Sérgio, por ser a escola do Autoritarismo, no fundo, do amestramento. Normalmente o professor baseia a sua actuação no "poder Autoritativo"95 , quando deveria baseá-la nos conhecimentos que possui e que deve transmitir ao aluno; quer dizer, Sérgio acentua a importância do chamado "poder cognoscitivo" e do "normativo" – porque educar é sempre transmitir valores – daí a inseparável ligação entre o acto educativo e uma escolha de cariz ético-política – em detrimento de outras formas de poder tais como o físico, por exemplo.

Uma escola em que as relações professor-alunos se baseiem na posição oficial de "superioridade formal"96 do professor em relação ao aluno acaba por ser característica de uma sociedade em que a obediência à autoridade é encarada como uma finalidade última e fundamental da educação e Sérgio pensaria já que um tal culto da obediência pura é característico dos regimes autoritários ou totalitários97, algo que precisamente, pretenderia evitar, dizendo que "(...) nos alicerces dos problemas cívicos está sempre o problema da preparação do espírito – o da concentração reflexiva da inteligência crítica, no pólo oposto da embriaguez emotiva (...)"98 , entendia por Educar, "treinar os jovens na iniciativa, no trabalho do espírito criador e livre, no governo autónomo da sociedade escolar, (na discussão dos problemas sociais-económicos), na mentalidade crítica e experimental (...). Precisamos de uma escola inteiramente diversa de tudo que tivemos até aqui; de uma profundíssima revolução pedagógica. Para revolucionar a fundo a educação portuguesa, para fazer uma escola absolutamente nova, não há sacrifícios que não devamos impor. O esforço, aí, há-de ser gigantesco, e a despesa tem de ser enorme. "Buscai o reino de Deus e a sua justiça, e todas as outras cousas vos serão acrescentadas", disse Jesus Cristo no seu Sermão; "revolucionai a educação do povo (na Escola e na Cooperativa) e todas as outras cousas vos serão acrescentadas", peço eu licença para sustentar"99.

Sérgio aproxima-se muitas vezes de uma linguagem religiosa – o que se nota também nas páginas da Seara Nova – pois fala mesmo de um "Cristianismo Ideal", dizendo: "(...) poderemos entrever que há consonância íntima entre o perfeito misticismo e o racionalismo extremo. Do que dá exemplo um Espinosa, homem cuja intelectualista religião filosófica pode talvez considerar-se um cristianismo ideal; do que se vê alvor num Platão(...)"100.

Pelas suas posições, muito próximas das da Escola Nova, Sérgio defende sempre a Educação Cívica,que é encarada numa visão multifacetada e não redutora da mesma, ou seja "no treino da atitude crítica, no exercício pessoal de um pensar autêntico (...)"101 , conducente, desse modo à tomada de consciência do mundo e da Pátria, da dignidade do outro, da solidariedade social que a todos devemos, iniciada nos bancos da escola pela educação do cidadão no civismo. O seu escrito Educação Cívica, tem particularidades muito interessantes. A sua 1ª edição é de 1915; a 2ª é de 1954; a 3ª é de 1984 (!), publicada pelo Ministério da Educação de Portugal e prefaciada pelo historiador Vitorino Magalhães Godinho; assinale-se que no livro Livros proibidos no regime fascista102, se informa que a História de Portugal e a Educação Cívica, de António Sérgio, foram proibidos103.

A Educação Cívica desenvolve – como já se referiu – as ideias de Wilson Gill, aplicadas em Cuba e Porto Rico. Sérgio cita também abundantemente William R. George, que implementou uma Junior Republic no Estado de Nova York. Nesta obra, Sérgio defende a ideia da ligação da educação ao trabalho; considera que as unidades escolares devem constituir um microcosmos democrático, que sirva de treino para a inserção futura numa sociedade globalmente democrática; na escola os alunos elegeriam os seus «governantes», seriam eles a resolver situações de conflito e aprenderiam um comportamento ético. Para Vitorino Magalhães Godinho, "a Educação Cívica, que Sérgio publica em 1915, não é obra isolada: forma um todo com as Considerações Histórico-Pedagógicas e com as Cartas sobre a Educação Profissional. (...) a educação para a produção (e é essa a educação profissional) é correlativa da educação para a democracia. À partida, dois vectores: por um lado, os interesses espontâneos das crianças; por outro (estamos agora no ângulo social) as actividades económicas locais"104.

Já vimos do que trata Sérgio na sua Educação Cívica. É contudo de sublinhar uma ou outra passagem desse escrito. Na edição de 1984 lê-se: "(...) o que eu tenho em mente pedindo uma educação anglo-saxónica: uma disciplina do carácter que, ao invés das tendências fantasistas, sentimentais e sonhadoras que aí loam, fosse um desenvolvimento da iniciativa, da vontade criadora, da responsabilidade, do autodomínio, do self-government!"105. Para Sérgio, "Trazemo-la da escola, a albarda da resignação!". Com efeito, "se as ciências nos facultam métodos, nos dão modelos do que é a verdade, nos habituam a discernir as evidências, têm (elas) ao mesmo tempo, quando reduzidas a si próprias, muito graves inconvenientes. Que é a ciência positiva separada da moralidade, senão uma forma superior da força, e mais perigosa que a força bruta, porque mais poderosa do que ela é?"106. Para ele, "(...) a atitude "exclusivamente científica" leva a excluir da própria ciência a face humana que ela contém (...)107. Sérgio considerava que "apesar dos seus erros, absurdos, contradições e paradoxos, a obra de Rousseau permanece actual sob todos os seus aspectos"108 , referindo que o mesmo autor "não crê que a ciência (...) possa fundar uma Moral "109.

Assim, refere que as ciências devem ser enquadradas numa concepção filosófica110.

Mas para Sérgio "A dissertação moral não basta, é necessária a acção moral (...)"111. Para este autor, "(...) tudo no mundo se repercute em tudo, constituindo um círculo de acções recíprocas: e é desses planos de viver futuro que poderá resultar para os Portugueses de hoje uma verdadeira consciência social. A vida é tensão, actividade, avanço; não é ser, mas devir; não é estar, mas ir-sendo: e o laço fraterno e unificante não se há-de buscar numa coisa estática, como o acervo histórico e tradicional: o que dá vida a um povo é um plano de acção, o querer um futuro, o correr para uma meta, – a ideia-força de um melhor amanhã que iremos criar por uma faina estrénua, por um plano sugestivo de porvir comum, por uma ideia compreensiva de melhoramento social. Não é o tradicionalismo, mas o futurismo, o que dá robustez e coesão a um povo; é o amanhã o que organiza o hoje, e a ideia de uma empresa a realizar com alma o que infunde estrutura a uma nação. Espanta a impossibilidade de fazer ver aos nossos técnicos portugueses em matéria de instrução pública, – tracejadores de programas, fazedores de compêndios, publicistas famosos, etc. , etc. , – que a mera divulgação de conhecimentos não tem valor cultural-pedagógico, e que só presta, no ensino, o trabalho efectivo de investigação, o esforço de relacionar e de compreender os fenómenos. Enquanto os pedagogos oficiais se não compenetrarem desta ideia – que é a ideia básica da pedagogia – o estudo das línguas estrangeiras, no que seja trabalho de traduzir textos, poderá valer muitíssimo mais que o estudo usual das matérias científicas: porque, desde que o aluno tem por dever traduzir um texto que ele ignora, existe sempre um esforço próprio, um trabalho efectivo do seu intelecto, muitíssimo superior, como tal, ao facto de receber passivamente as conclusões de qualquer ciência, transmitidas quase sempre – pelo menos nas primeiras classes, que são precisamente as mais importantes, – de maneira absurda e desconexa, ininteligente e muito dogmática, como nos nossos compêndios e nas nossas aulas, porque assim mesmo o exige o programa".

3. 9. António Sérgio escritor de contos infantis e inovador da Língua Portuguesa.

Ao longo da sua vida Sérgio escreveu poesia e também contos infantis, editados pela Livraria Sá Da Costa. Essas obras, Os Dez Anõezinhos da Tia Verde-Água, Na Terra e no Mar, Contos Gregos e Os Conselheiros do Califa, têm nítidas intenções didácticas, sendo de destacar a condenação (por exemplo em Os Conselheiros do Califa), dos impostos excessivos lançados pelos governantes, uma abordagem nitidamente contra as ditaduras; mas em O cavalo de Alexandre, Sérgio gaba as virtudes dos bons observadores; em Filémon e Báucis, descreve os antigos gregos; em Os Dez anõezinhos e a tia Verde-Água, fala às crianças da importância de ser metódico no trabalho.

Como escritor, tem de se referir que Sérgio introduziu termos novos na língua portuguesa tais como "devir", "percepcionar", "experienciar", "autodomínio", etc.

A maioria destes neologismos prende-se com a gnoseologia. Usamo-los hoje correntemente (para descrever na nossa língua os fragmentos Heraclitianos, por exemplo), sem nos lembrarmos de que foi Sérgio quem os introduziu, cumprindo assim um belo objectivo – o de "aperfeiçoar a língua portuguesa"112. É esta talvez a maior homenagem que se pode fazer a alguém: utilizar as suas ideias, sem nos apercebermos de quem as pensou.

Pode dizer-se que de facto as ideias dos homens são fundamentais também quando, ao criar uma palavra nova, se consegue captar nela uma ideia e transmiti-la aos outros, porque todo o conhecimento humano se baseia na troca de informações. Desde os seus contos infantis até à sua contribuição para a língua portuguesa, em tudo Sérgio se revela um autor empenhado e importante não só no domínio pedagógico mas no da cultura e da política.

3. 10. António Sérgio: Educação e Cultura.

A problemática cultural é, claramente gnoseológica e para Sérgio fundamento das outras: desta forma, qualquer problema, qualquer acção, qualquer pensamento começa e acaba no homem, entendido como ser pensante. A atitude que ele apresentar, demonstrará a sua especificidade cultural, definirá a sua capacidade adquirida, trabalhada, de responder aos desafios da natureza e da sociedade113.

Sérgio entende o papel da cultura numa perspectiva técnico-funcionalista. – donde infira que a actividade humana desempenha uma função social, mas a cultura como um todo exerce uma função de emancipação do homem e a cultura é ou deveria ser, racional e racionalizável, encaminhar-nos-ia-mos para um único modelo cultural, com variantes geográficas114. A emancipação cultural começaria em cada um de nós.

A vida de Sérgio decorreu numa época muito conturbada, na encruzilhada de múltiplas propostas, que ainda não tinham encontrado o seu verdadeiro estatuto; Sérgio temia as posições políticas influenciadas pelas correntes de pensamento que faziam sobressair os factores irracionalistas do comportamento: o português, que ele sempre teve como objectivo atingir e que considerava culturalmente pouco esclarecido, podia cair numa tendência sentimentalista, intuitiva, que por mais que correspondesse a uma tradição histórica não seria suficiente para fazer melhorar o padrão de vida em todas as suas dimensões. Pretende uma cultura, sem saudosismo e sem heróis e nisso terá sido radical, considerando a razão como única condição de humanização – sendo que a razão é humana, as motivações humanas vão muito além do plano racional como o próprio pedagogo se apercebeu115. Já vimos antes que Sérgio defende como medida fundamental para Portugal, a reforma da mentalidade, tarefa fácil de propor, mas de difícil realização, como já se verificou em muitos países e diversas situações histórico-geográficas; ora Sérgio estaria consciente de tal dificuldade, mas julgaria que mais cedo ou mais tarde, se começariam a ver os resultados de um labor constante nesse sentido; para tal era preciso trabalhar em todos os sentidos e com igual profundidade. Sérgio foi um dedicado lutador, repetindo várias vezes, qual a missão que sentia ser a sua: uma missão de apostolado cultural, de filósofo preocupado com a concreta libertação do homem. Diz-nos ele: "o meu homem universal, (...) é o indivíduo simpatizante, multilateral, permeável, aberto a todos os aspectos de actividade mental do seu próximo: ciência, arte, religião, política, técnica, economia, literatura, etc."116.

Sérgio quer abrir os espíritos, formar «autónomos», no fundo fazer cultura, porque o homem culto, para ele, não é apenas aquele que está cheio de conhecimentos; é o que, para além disso os utiliza, constantemente, de forma crítica. Para ele a maioria dos nossos letrados, atraiçoou a sua verdadeira tarefa, de pensadores autónomos, criadores e defensores de ideias humanistas para se tornarem instrumentos do poder político e é por isso que António Sérgio não se quer deixar manobrar e não se põe ao serviço de uma classe, ou partido, mas procura defender e perpetuar os valores e os ideais mais puros da Humanidade. A primeira reforma a fazer, é a reforma cultural, porque a actividade cultural é a que nos torna mais homens, mais conscientes da nossa dignidade e humanidade; a cultura consegue-se por um esforço racional interior, pela procura do pensamento crítico, antidogmático. Caminhar para a cultura é realizar uma ascese, cortar com todos os elos do sensível. – Sérgio utiliza uma linguagem semelhante à Platónica117.O homem culto é aquele que se interroga e reflecte procurando o universal: "A cultura genuína – trabalho do espírito sobre si próprio – não deverá confundir-se com a simples difusão do saber, com a simples recepção de informações cientificas"118. Assim, devemos praticar a «dúvida metódica», fomentando a crítica, a reflexão, a concatenação das ideias, porque, no entender deste pensador, e decorrente do que afirma "há quem saiba muito e não seja culto; há quem saiba pouco e o seja muito"119.

Daqui resulta que o homem culto é aquele que luta para que o dogmatismo não se instaure definitivamente; para António Sérgio, o cientismo apoderou-se da razão dos homens, não os deixando ver para além da sua vivência acomodada, embora afirme a importância do desenvolvimento científico "(...) desde que consideremos esta mesma ciência, não nos enunciados e conclusões externas, mas na ascética íntima do que a está criando quando ela se cria por amor do Espírito, na transparência e plenitude do viver mental" que leva à "prática consciente do viver social, a cultura metódica da urbanidade, o trabalho cooperativo para o bem comum, a abolição de classes na sociedade escolar, o comentário assíduo dos escritores "moralistas" (a subida ao nível da espiritualização autêntica), o exame dos processos mais conducentes a lidarmos bem com o nosso próximo, a dar formosura e finura à vida, a aumentar a liberdade e a tolerância mútua, a diminuir os atritos nas relações sociais"120.

A grande finalidade da luta de Sérgio é a criação de condições para que todo o homem possa ser culto – "homem culto, absolutamente falando, significará um indivíduo de juízo crítico, afinado, objectivo, universalista, liberto das limitações de nacionalidade e de classe, que sabe apreciar as boas obras do espírito e distinguir as excelentes das que o não são, (...)"

É nesta linha de pensamento que em 1946, na revista Vértice escreve: "(...) e somos filósofos na proporção exacta em que nos libertamos dos limites que nos inculcam a raça, a nacionalidade, o sítio, o instante, o culto, o temperamento, a classe, o sexo, a moda, a profissão"121. O conceito de cultura, para Sérgio, tem algo de místico, pois ele afirma: "A santidade é uma ascese, e a cultura também"122.

É fundamental, interpretar em que sentidos, António Sérgio utiliza o conceito de cultura pois considera duas acepções diferentes, que apresenta claramente no texto Miudezas de música, de poesia, de cultura e de cinema123; considera aí uma acepção folclórica (etnográfica, ou sociológica), que designa os estilos de vida de um dado povo, os seus padrões culturais, e uma acepção espiritual (universal, absoluta ou filosófica) que corresponde ao "processo dinâmico de afinar o intelecto e a sensibilidade, de apurar o senso critico, de intensificar a faculdade de bem ajuizar sobre as obras de arte, de literatura, de ciência, de requintar a urbanidade para com o nosso próximo"124.

Estabelecido isto, diz António Sérgio:

  • I) Na acepção folclórica, podemos falar de cultura portuguesa. Na acepção espiritual, de cultura em Portugal;

II) A caracterização da cultura portuguesa, na sua acepção folclórica, não é de fácil concretização e afirmar que uma dada característica é «portuguesa» implicaria o conhecimento de todas as outras culturas – o que é na prática, impossível;

III) As criações da cultura no sentido espiritual, são universais e intemporais;

IV) Será que existe uma maneira de ser, tipicamente portuguesa? Sérgio responde-nos: "Duvido da realidade de uma maneira de ser portuguesa, unitária e indiscutível"125. Faz a distinção entre cultura e civilização, considerando esta como o "conjunto dos processos do viver comum, as instituições, a legislação, a técnica e os vários instrumentos do viver económico"126. Para ele a verdadeira Cultura confunde-se com Democracia, que por outro lado, se confunde com Educação do povo: Democracia é «Demopedia» e esta é «educação do povo»; por isso não se cansou de criticar os que discursam de forma confusa e difícil de entender: "Sempre que um típico intelectual lusitano tem por mira instruir-nos sobre determinado assunto – embrenha-nos na selva de uma introdução genérica – histórico-genéticofilosófico-preparatória, cheia de cipoais onde se nos enreda o espírito e de onde nunca se avista a estrada recta e livre".

Sérgio procurou sempre o contrário do que se refere acima: escrever de forma clara e objectiva, não palavrosa, em resumo, pensar e fazer pensar de forma nítida. Vários estudiosos do pensamento português contemporâneo que analisaram o racionalismo, o humanismo, e, de uma forma geral, o contexto cultural português do século XX, sempre consideraram Sérgio, um homem exemplar de integridade, de autonomia, profundamente empenhado nos problemas fundamentais da Nação portuguesa e do seu povo.

A sua obra é tão variada, que qualquer que seja a perspectiva de análise encontraremos elementos para uma aproximação ou abordagem de índole Histórica, Política, Pedagógica, Filosófica, ou, de forma mais lata, Cultural. Nessa enormíssima e válida obra, encontramos os diversos tipos de actividade teórica e prática interagindo e inseridos no que pensamos que o autor quis que fosse uma «Totalidade Universalizante» na qual o Homem surge como a primeira e última preocupação; os seus escritos, mesmo os de crítica (muitas vezes áspera) a individualidades intelectuais, implícita ou explicitamente tratam do Homem, daquilo que dele se pode considerar essencial: a sua dignidade inerente à sua humanidade.

Quando nos escreveu sobre homens específicos, como Antero de Quental, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Luís de Camões, foi para sublinhar a sua condição de homens, que procuraram a elevação do espírito, embora com todos os seus defeitos de homens. Não quer, por isso, criar mitos.

É o Homem, a Sociedade e a Cultura [recorrendo a estudos de carácter plurifacetado – Histórico / Geográfico / Psico-Sociológicos] a tarefa mais importante que percorre todo o seu trabalho, sendo o projecto social e político inerente a este labor, porque antes de mais o Homem é encarado como um ser social e deste modo, a Sociedade é o seu enquadramento natural, que o reprime e limita, mas por outro lado lhe possibilita as hipóteses de uma total realização, porque ser um homem completamente só é não ser totalmente homem. A sua definição plena passa pela co-existência com os outros homens. [Curiosamente, encontramos aqui parecenças com as teorias de Martin Buber ou Levinas, autores de cariz religioso.]

O destino de Robinson (só, numa ilha), não é um destino humano, diz G. Eisermann que Sérgio cita. O homem vive para si, para os outros e vice-versa. Todos os seus actos, mesmo os biológicos, têm significado social, não se podendo esquecer que O Homem é sempre um ser Biológico, Social e Cultural. É por isso que para Sérgio os conceitos chave são: homem, sociedade, cultura, ou Pedagogia, Cultura e Democracia.

Estes conceitos e suas repercussões são as bases para a leitura de Sérgio e tudo o resto, na sua obra são vias diferentes que acabam por nos reconduzir para os aspectos fundamentais do seu pensamento. Por isso, a sua obra, não sendo um «Sistema» é profundamente coerente, e, como notaram Daniel Hameline e António Nóvoa, é uma obra «constante», ou se preferirmos «repetitiva». Mas isso deve-se aos aspectos que rodearam a vida do autor, que tentou semear uma obra de combate, no plano político, e não só a nível teórico; é preciso notar que a sua acção intelectual é fundamentalmente de intervenção: é a voz de um cidadão que se não conforma com o que considera errado e se passa à sua volta e por isso, a sua trajectória teórico-prática não foi só a de Filósofo mas essencialmente a de Pedagogo, de 'Educador de Gerações', porque é através da Pedagogia que ele pensa alcançar os homens – incluindo os homens comuns – e não só os que estudam; Sérgio pretende sempre voltar-se para os problemas concretos vividos pelos portugueses.

"(...) Como é bela a vida

E a mente clara que se arroja à lida,

E à acção, e à ideia, vai chamando os povos

(...)".

O seu discurso não pode ser abstracto, mas antes uma reflexão crítica de problemas reais; tem dois objectivos: por um lado, a tomada de consciência por parte dos homens desses problemas e da sua possível solução, e por outro lado, treinar o espírito humano na comparticipação e no espírito crítico e actuante, tendo para tal procurado demonstrar sempre optimismo e confiança nas capacidades do homem, embora haja quem afirme que já idoso, terá desanimado; mas, durante a maior parte da sua existência,recusou o pessimismo do existencialismo que [que para Sartre, condena o Homem à sua própria Liberdade, tolhendo-lhe os movimentos], e muito lutou como apóstolo e muito escreveu acerca da sua convicção na ascensão espiritual do Homem. A Cultura, é o exemplo concreto da capacidade humana de ultrapassar os seus próprios limites, produto ela mesma da dialéctica Homem-Sociedade-Natureza, surgindo como efeito desta interacção-construção. Deste modo, para A. Sérgio, a Cultura que nos diz respeito, a Ocidental, retrata mais do que qualquer outra a incongruência humana, pois a par da defesa dos mais altos valores e ideais, encontramos situações desumanizantes: a Cultura, como Sérgio a entende devia ter uma directriz essencialmente moral.

Note-se [de novo] que Sérgio viveu épocas muito conturbadas das quais se destaca o triunfo (embora não definitivo – felizmente – do Nazismo, no «País da Cultura», a Alemanha). É mediante uma espécie de ascese interior que Sérgio propõe, que o homem pode encontrar-se a si mesmo como ser cósmico, como parcela do Universo, pois o homem, é 'fraccionado', mas é possuidor de razão, o que lhe permite alcançar a Unidade, a Totalidade.

A sua vida e escrita germinou noutros seres humanos, fazendo-os pensar; como já vimos, nos seus parâmetros gerais, como Pedagogo,(em termos mundiais) não é inovador; mas a reflexão honesta, a crítica racional, as soluções objectivas, são aspectos que definem muito esquematicamente Sérgio.

É um dos herdeiros da chamada Geração de 70, sendo evidente a influência que Antero de Quental exerceu sobre Sérgio, como homem e pensador. Não foi o pensamento de Antero que agradou a Sérgio, mas o Projecto que esteve na base da reunião de um conjunto de homens que, no Século XIX, tentaram fazer progredir Portugal.

Esses homens não conseguiram sair do domínio meramente teórico enquanto António Sérgio surge como descendente directo deles mas se deles herdou, no plano teórico o reformismo social e a tentativa de racionalização da realidade portuguesa, como afirma numa carta a Raúl Proença, [... ] a "obra é semelhante no objectivo, às Conferências Literárias do Casino (...)", parece evidente, pelo testemunho da sua própria vida de resistente, que foi muito para além, inclusive no plano das ideias, que esses seus «mentores»; penso que excedeu os seus mestres, ao privilegiar as reformas concretas e os meios para a sua realização, evitando cair num pessimismo intelectual. Juntou à sua volta, uma elite de homens pertencendo a diversas facções e com opiniões políticas diferentes, mas com o traço de união política marcado pela oposição ao regime saído do 28 de Maio de 1926, que levaria ao poder Salazar.

A sua filiação intelectual127 recua no tempo, pois num artigo escrito em 1938, intitulado Genealogia intelectual, confessa-se profundamente influenciado por Platão, Spinoza e Kant, porque encontrou neles as intuições essenciais que melhor satisfaziam o seu espírito. Diz-nos Sérgio que Platão o influenciou com a sua dialéctica e lógica inspirada na relacionação matemática. Em Spinoza, entusiasmou-o a sua concepção dos objectos na unidade do Todo [Panteísmo] considerando a coerência interna como critério de verdade. De Kant, assimilou a ideia da iniciativa da inteligência no conhecimento, a inteligência como elemento constituinte do objecto. Quanto a ser cartesiano, considera essa expressão pouco precisa, pois para Sérgio "todos os modernos racionalistas são um pouco discípulos de Descartes". Contudo, Sérgio confessa que foi a Geometria Analítica que o despertou e que foi através dela, que Descartes o impressionou. (Há que notar, porém, que Sérgio sempre dedicou particular atenção ao conjunto da obra de Descartes). A nível político recusou a mudança de "ismo" em "ismo". O mesmo não aconteceu com as novidades científicas, pois contactou de perto com personalidades como Paul Langevin e considerava o raciocínio científico o exemplo mais perfeito da racionalidade humana. António Sérgio foi um intelectual do século XX, mas um intelectual português que nunca se eximiu às suas responsabilidades cívicas e éticas, procurando sempre a melhor via, a melhor solução; enquadrado pela circunstância de ser português. Seria hoje bem mais conhecido, por certo, se tivesse nascido em País mais bafejado pela sorte. Desta forma, muitas vezes terá sido incompreendido, uma voz no deserto. Para ele, "(...) razão e cultura, auto-realização pessoal e reforma da sociedade, moral e democracia conjugam-se assim, na sistematização, numa unidade formal"128.

A reflexão sergiana nunca visou a constituição de um sistema filosófico e é verdade o que disse quando afirmou: "repare que uma das ideias fundamentais, de consequências práticas, que está sempre presente em tudo o que escrevo, é a de que não há coisas separadas, a de que não existem na realidade compartimentos estanques, a de que compreender uma coisa é relacioná-la com o todo"129.

É evidente para o autor que o real é uno e as suas diversas manifestações estão urdidas numa concatenação. A abordagem da sua obra será sempre complexa, pois parece a mais apropriada ao conjunto de escritos de um autor que se debruça quase em simultâneo sobre temas aparentemente tão diversos como Política, Economia, Pedagogia e Cultura, interligados por uma teia de relações concomitantes que lhes retira as características de partes. Por isso, estudar e analisar a sua obra torna-se complicado e trabalhoso ao tentar evitar a leitura e reflexão sobre pedaços da sua escrita, o que levaria o leitor a erros de interpretação, devido em parte à sua originalidade de pensamento. O próprio Sérgio, durante o seu longo período de labor intelectual, reiterou explicações e respondeu a críticas que muitas vezes se prolongavam em polémicas130.

Entendeu sempre ser original no pensamento português [já de si escasso] e lutou para não ser considerado uma espécie de representante de qualquer corrente pensamental no seu país, o que terá conseguido, pois não é, nem foi possível colocar-lhe um «rótulo», algo ainda hoje muito praticado, embora muitas vezes tenha sido apontado como marxista e materialista; de facto, disse ser o introdutor em Portugal do materialismo dialéctico, (o que até é discutível, tendo em conta, sobretudo alguns textos de Faria de Vasconcelos) mas a sua preocupação e constante luta para que o sistema económico vigente em Portugal sofresse grandes alterações estruturais, não proveio da perspectiva materialista131. Antes de tudo e acima de tudo, Sérgio afirma-se um idealista, que considera a razão farol de todo o verdadeiro pensamento, sendo compreensível, como fervoroso admirador de Descartes, considerar que a razão é universal. Seja quem for que estude os problemas económicos de Portugal, irá muito provavelmente encontrar as mesmas causas apresentadas por ele, se se colocar na mesma atitude de espírito, e com certeza que concordará com a necessidade de implementar soluções.

Não é um determinado discurso, uma Teoria por mais moderna que seja, por mais que se adapte ao real e o torne compreensível, que vai ser o critério da verdade para Sérgio. Esse é muito anterior ao concreto, ao presente, ao objecto discursivo. A subjectividade ou objectividade do discurso tem a sua origem no próprio pensamento. Ou este é da ordem do inteligível e das ideias ou então sofre de um empirismo que obsta ao verdadeiro conhecimento.

Sérgio procurou apresentar soluções concretas decorrentes das bases teóricas de que parte, mas não foi um puro teorizador, um abstraccionista, alheio à dimensão activa e concretizadora que todo o pensamento humano deve ter e por isso, a sua produção historiográfica é também um exemplo, dos mais completos, do seu posicionamento. Não terá feito Análise Histórica132 por simples erudição, mas como instrumento do presente; assim, não defende a História pela História, mas a História pelas 'pedras vivas', pela contribuição que o passado possa dar para a compreensão de uma situação actual que permitirá a desalienação, a desmistificação da realidade portuguesa.

A Análise Histórica terá sempre o seu efeito positivo, se a sua leitura não padecer dos mesmos erros atribuídos à própria mentalidade. E é neste sentido que Sérgio abriu novas perspectivas à historiografia portuguesa, rasgando os caminhos a novas apreciações históricas realizadas posteriormente, [por Jaime Cortesão, entre outros]133.

A história como mera narrativa de factos amontoados e apelando apenas à memória de quem a estuda tem de ser repensada, praticando-se a explicação crítica, a interpretação sociológica, a problematização; o conhecimento do passado, é entendido por António Sérgio, como uma possível fonte de pistas para se evitarem os erros conhecidos, ou seja, pretende-se ir do passado ao futuro, e pese embora, nos últimos anos (décadas de 80/90) esta meta parecer impossível, na época em que Sérgio defendeu estas ideias, tratava-se de uma concepção muito avançada do papel da História. O passado histórico está intimamente ligado ao presente político, devendo os homens aprender com os ensinamentos do passado, para que possam evitar os mesmos erros, e esta proposta epistemológica passa pela via democrática: a conjuntura política mundial, até meados do século XX, é muito complexa. É uma fase muito conturbada, em que as palavras República ou Socialismo, ou ainda Independência, parecem ser o remédio para todos os males. Como já se recordou no decurso deste texto, verificou-se que a realidade ultrapassou, largamente, estas soluções.

De há muito que para Sérgio, a questão política não se colocava na escolha entre Monarquia, República, Democracia ou Socialismo, mas antes na criação de um regime capaz de implementar as reformas, as estruturas, as vias para o progresso, para a racionalização da vida social e económica dos homens tendo a traumatizante experiência política da 1ª República portuguesa levado o Pedagogo à sua crença no Regime Democrático Cooperativista, considerando este como um fim a atingir134. Sérgio não é apoiante de facções ou ilusões partidárias, mas antes de ideais humanistas e universalistas135. A questão humanista confunde-se com a questão ética, porque a democracia começa no próprio indivíduo e tem de se estender à Política em geral, e assim, ao Estado.

"A nossa vontade é uma vontade geral sempre que se determina pela regra de Kant: "Procede de tal maneira que a razão do acto que praticas se possa erigir numa lei geral, universal" 136.

A educação do sentido crítico é fundamental para este projecto político, pois a velha justificação de que o povo não está preparado é para Sérgio uma falsa questão, porque o povo nunca estará preparado se não se criarem as condições para que a prática política democrática e cívica se concretize. É no interior do próprio indivíduo, que de uma forma socrática, encontra dentro de si os ideais, a virtude, a verdade. "A base da democracia é a virtude, (...) a moralidade cívica de todos nós" 137.

Educar a criança na autonomia, no Self-Government, na sua participação activa nos diferentes locais em que vai vivendo, é condição necessária para a concretização do futuro cidadão livre e racional e por isso, se a Educação Cívica é tão fundamental, e o homem como a realidade é um todo complexo, a reforma da Pedagogia é assim vital para a reforma humanista de Sérgio.

Na Pedagogia, Sérgio fundamenta-se nas experiências anglo-saxónicas138.

Profundo conhecedor das mais recentes inovações nesta área, defende a Pedagogia do Trabalho e da acção, [cujo primeiro adepto terá sido Pestalozzi] aproximando-se das teses da Escola Nova, citando autores como Wilson Gill, escrevendo inúmeros textos nos quais defende que o Ensino é a via para o Ressurgimento Nacional. Defende a «importação» de professores do estrangeiro, quando necessário à renovação Pedagógica. Os portugueses estiveram entre os pioneiros, quer nas Descobertas quer no espírito científico, e isso demonstra que é possível retomar esse caminho; todavia, o maior obstáculo é a mentalidade romântica, sebastianista, passadista ou saudosista que se enraizou na mente do povo.

E esta mentalidade negativa torna os problemas insolúveis. Independentemente do problema visado, todos eles reflectem a ausência de uma atitude e raciocínio pragmáticos e disciplinados. [Sérgio fará constante apelo a uma disciplina de raciocínio]. Por isso, defenderá que a verdadeira reforma estrutural é a da mentalidade portuguesa e se não existir uma nova atitude, mais crítica, mais reflexiva, mais problematizadora, um novo posicionamento face ao real e aos problemas, de nada servirão soluções pontuais, provisórias, cuja única eficácia será dar um novo aspecto às velhas questões. Existe um imperativo moral inerente à própria consciência, e como tal, ciência e moralidade, ou melhor dizendo, toda a actividade humana deveria estar subordinada a essa lei racional presente em todos nós, mas em muitos abafada pelas impressões sensíveis, pelas sensações. Serão os que conseguirem libertar-se dessa prisão sem grades, que sentirão "racionalmente a estrutura legalista da consciência de uma espécie de dever ser inteligível, que é paralelo ao dever ser moral; e o saber não pode fundar nem contrariar o sentimento moral, não só porque, limitando-se a procurar aquilo que é, lhe não cabe indicar o que deve ser, mas por esta razão mais primitiva: ser a ciência produto da mesma tendência unificante, ordenadora, dessubjectivadora, que produz a moralidade" 139.

Há uma imanência no interior da Razão que transcende toda a racionalidade, afirmando Sérgio que "as noções primitivas não se definem"

Revemos assim o que já tínhamos afirmado; que a obra de Sérgio não se constitui em Sistema mas possui uma Dimensão Totalizante, que impossibilita uma aproximação reducionista. A sua obra possui uma coerência interna que se verifica, corporizando sempre as mesmas traves-mestras: Pedagogia / Cultura / Democracia; participação e Ética.

É importante constatar que muitos anos depois, autores como Edgar Morin, desenvolveram este tipo de ideias em obras célebres [tais como Ciência com Consciência], quiçá dando razão à célebre tese de Michel Foucault, segundo a qual, em última análise, o «novo» é o «velho» dito de outra maneira.

O aqui e agora, a historicidade e o relativismo são provisórios, mas os verdadeiros produtos da Razão, esses são intemporais e universais; expressões eternas, independentemente do tempo e do espaço.

"Sei (ou julgo sabê-lo) como se barbarizou esta Nação, e o que havia a fazer para a tirar de bárbara; e repito que a reforma mais importante – condição preliminar de todas as outras – é sempre a reforma da mentalidade; e que a disciplina mais necessária para termos a ordem a que todos visamos não é a disciplina que provém da espada, da ditadura, da realeza ou da polícia, – mas a ordem, a honestidade e a disciplina intelectuais". A busca de uma forma de pensar com clareza, a sua escrita objectiva, a enorme variedade de assuntos que tratou, as diversas lutas em que se empenhou, o próprio facto de ter vivido até aos 86 anos, fazem desta figura uma personagem fundamental no pobre panorama das ideias e da cultura portuguesas, incluindo, para mais, a Pedagogia.

A sua mensagem Pedagógica é a maior constante da obra escrita que deixou. De todas as possíveis classificações de Sérgio não será talvez,o termo Filósofo aquele que melhor o «definirá».

Este problema não é simples,pois um dos temas de reflexão de vários intelectuais de Portugal, tem sido saber da existência ou não de uma filosofia especificamente portuguesa. Sobre isto existem múltiplas opiniões;poderemos perguntar, como fez José Marinho140, se será possível conciliar o sentido universal da Filosofia com o conceito de uma filosofia «nacional». Francisco da Gama Caeiro141 considera que "A primeira questão – e primeira porque a mais radical – consistirá em esclarecer se a Filosofia, tal como nos surge, pode suportar, sem com isso sofrer, uma determinação qualquer: – quer esta seja de origem temática (Filosofia Política, Filosofia Matemática, Filosofia das Ciências) (...)."

Joaquim de Carvalho, na História de Portugal (de Barcelos), no capítulo «Cultura filosófica e científica» diz que, "a reflexão filosófica tal como a investigação científica, pelo seu carácter a-espacial e intemporal dos Pensamentos, ultrapassa as fronteiras da nacionalidade. Por outro lado, o filósofo é uma pessoa inserida em determinado contexto histórico, logo a sua reflexão nasce com o cunho da época e da sociedade e este vinco determina uma conexão indissolúvel entre a matéria da reflexão, o filósofo que reflecte e o ethos e as apetências da sociedade e da época em que ele vive".

Para Sérgio, assim como não tem sentido falar de uma Cultura Portuguesa ou Francesa, na acepção absoluta do termo, o mesmo sucede em relação à atitude filosófica.

Aliás afirma numa nota à carta nº5 das Cartas de Problemática que foram problemas decorrentes da implantação da República que o desviaram para a Sociologia, a Pedagogia, a Economia, a História, as teorias políticas, etc.

3. 11. Sérgio Polemista: a constante explicação e defesa das suas ideias.

Há quem considere o pendor polémico sergiano de "feição meramente circunstancial e monitória" 142, que vencia os seus interlocutores "mais por artifícios de estilo do que pela análise metódica dos juízos alheios".

Foi António Quadros que mais críticas fez ao pensamento e polemismo sergianos. Considerando-o um furacão da vida cultural portuguesa, pensa que a sua influência terá sido mais negativa do que positiva, devido ao facto do seu pensamento ser fundamentalmente 'redutor' e 'maniqueista'. Quanto ao "polemismo sergiano, afirma que geralmente Sérgio começa por desconcertar o adversário e por colocá-lo na situação de um pobre diabo iludido" 143. Também Joel Serrão pensa "que no ardor da peleja educativa e polemizante, António Sérgio tenha, porventura, ultrapassado, algumas vezes, os limites da caridade e da paciência evangélicas,isso parece certo" 144.

António Sérgio não se «zangava», apenas ganhava calor nas suas intervenções – é esta a minha opinião – pois queria ser um autor de combate. "Tenho um génio doce, zango-me muitíssimo poucas vezes e só depois de me ter enchido de razão" 145.

A intenção de Sérgio era a de encontrar solução para os problemas concretos da sociedade portuguesa. Na opinião de Vasco Magalhães-Vilhena, que julgo extremamente honesta – pois era adversário e crítico intelectual de Sérgio – o seu pendor polémico surgia porque "(...) Sérgio sempre buscou resolutamente que haja influição dos seus escritos sobre as condições que os suscitaram, através da modificação da intelectualidade, desta maneira a obra sergiana imbrincando dialecticamente na realidade nacional a que sempre se reporta e que, em definitivo reflecte" 146.

Amigos de Sérgio como o seu velho companheiro seareiro Jaime Cortesão, não terão entendido o estilo de António Sérgio. "Como é um espírito de cultura e tendência universalista, vá de zurzir o nacionalismo na arte e na educação, fazendo por vezes confusões lastimáveis e ultrapassando aquele meio termo que em muitos casos é a virtude por ser a verdade" 147. António Quadros, acusa Sérgio de um "pseudo-racionalismo" e de "falso espírito crítico" que só serviram para um "abaixamento do nível intelectual (...)" 148.

Já Eduardo Lourenço afirma que as polémicas são condizentes com a expressão escrita de Sérgio. Existe nele uma coerência e firmeza de pensamento aliada à crença de que a sua razão. "a Dúvida de António Sérgio é a Musa que o acompanha no passeio através do jardim alheio. No seu próprio jardim, a musa chama-se Razão, (...)" 149.

Para Sérgio, "a polémica é necessária ao progredir científico, ao avançar da cultura" 150. Hoje, não há tempo para pensar, e as polémicas desapareceram – pelo menos em Portugal – o que resulta em grande empobrecimento intelectual. Sérgio polemizava para, à maneira socrática, espicaçar os espíritos e, à maneira cartesiana, propunha a dúvida, para estimular o espírito crítico.

Partes: 1, 2, 3, 4, 5, 6


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